“Mas,
levantando-se no conselho um certo fariseu chamado Gamaliel, doutor da lei,
venerado por todo o povo, mandou que, por um pouco, levassem para fora os
apóstolos; e disse-lhes: Varões israelitas, acautelai-vos a respeito do que
haveis de fazer a estes homens. Porque, antes destes dias, levantou-se Teudas,
dizendo ser alguém; a este se ajuntou o número de uns quatrocentos homens; o
qual foi morto, e 2 todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos e reduzidos
a nada. Depois deste, levantou-se Judas, o galileu, nos dias do alistamento, e
levou muito povo após si; mas também este pereceu, e todos os que lhe deram
ouvidos foram dispersos. E agora digo-vos: Dai de mão a estes homens, e
deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará, mas,
se é de Deus, não podereis desfazê-la, para que não aconteça serdes também
achados combatendo contra Deus”.
Introdução:
Um dos textos mais
emblemáticos de Atos é o relato de uma discussão acontecida dentro do Sinédrio,
para decidir qual ação deveria ser tomada em relação aos discípulos de Cristo e
sua insistência em testemunharem sua ressurreição.
Pela intervenção de
Gamaliel, famoso rabino da seita dos Fariseus, os discípulos foram libertos da
condenação e morte. Muitos tem se valido do argumento de Gamaliel para tratar
de diferenças religiosas e teológicas. Seria o seu conselho verdadeiro e
inspirado? Muitos ao verem religiões esdrúxulas ou heréticas, afirmam:
“Deixa... se essa obra não for de Deus, não perseverará!”. Seu argumento
sofismático: Movimentos fundados por
homens morrem com eles.
Gamaliel lança mão de
dois episódios da história recentes de Israel, citando Teudas e Judas Galileu
que se levantaram formando motins e logo depois desapareceram (Atos 5.36-37) e
afirma que o mesmo aconteceria com o movimento dos discípulos que falavam da
ressurreição de Cristo. Gamaliel interpôs com o recurso da tolerância religiosa
para o Sinédrio e assim, dar a este movimento que Jesus fundou um pouco de
tempo. Se este movimento era como os outros, ele iria entrar em colapso e
morrer sob o seu próprio peso.
Onde está o problema
com o conselho de Gamaliel?
1.
Uma questão
hermenêutica preliminar: A Bíblia possui textos descritivos e normativos. Embora ela
seja toda inspirada, devemos lembrar que nem toda narrativa contém mandamentos
de Deus.
A Bíblia possui até
palavras do diabo sendo ditas aos homens do passado e nem Jesus escapou disto
na sua tentação. Quando um texto é descritivo, ele está apenas relatando o que
aconteceu. Isto não é um mandamento, mas o registro de um fato. Quando a Bíblia
descreve mentiras de Satanás, tais mentiras são narrativas. O adultério de
Davi, é relatado, mas não recomendado. A mentira de Abraão contra sua esposa
foi contada na Bíblia, e embora não haja uma censura explícita quando o texto é
narrado, não significa que este deve ser o comportamento do povo de Deus.
Portanto, nem tudo o que está na Bíblia é um mandamento para o cristão.
Assim devemos encarar
o parecer de Gamaliel.
O que ele fez não é
algo para ser seguido. A Bíblia apenas o descreve, mas não o prescreve. Na
verdade, a história tem demonstrado como o seu argumento é falacioso. Quantas
seitas e movimentos religiosos surgiram antes e depois do cristianismo e que
subsistem até os dias de hoje. A sobrevivência destes grupos revela que Deus os
aprova? O budismo, islamismo, confucionismo, espiritismo, religiões animistas,
pelo fato de sobreviverem são aprovados ou oriundos de Deus?
Os grandes erros de Gamaliel
1.
Ver a história de
Jesus como algo fora de sua vida – Gamaliel defendeu os discípulos com um
argumento de moderação,
Aquela discussão no
Sinédrio se tornou para ele nada mais que uma oportunidade para revelar sua
sabedoria. Como uma discussão acadêmica, feita por diletantismo intelectual. Nada tinha a ver com sua vida, ele nunca assumiu a fé em Jesus. Na
verdade, logo depois da sua defesa, os discípulos foram retirados do Sinédrio e
punidos com severos açoites, antes de serem liberados.
Pilatos lavou suas
mãos e manteve uma atitude de neutralidade diante de Jesus (Mt 27.24); Gamaliel
rejeitou a Jesus de forma educada. Optou pelo recurso da tolerância
displicente. Embora sua intervenção salvasse os discípulos, seu parecer não é
verdadeiro. Ele sugeriu que deixassem passar o tempo para que ficasse evidente
se aquilo era de Deus ou não.
Gamaliel era neto do
grande rabino Hillel, fundador da famosa escola de judaísmo em Jerusalém,
que competia com a Escola de Shammai. Hillel era de uma linha de pensamento
mais liberal. O apóstolo Paulo ao defender sua
formação rabínica afirma que foi criado aos pés de Gamaliel (At 22.3).
2.
Defender a tolerância,
sem considerar a verdade – Ele não estava interessado em saber se aquilo deveria ser
considerado ou não. Os rabinos judaicos estavam sempre falando da chegada
do Messias a qualquer momento, e Gamaliel era um deles, entretanto, não quis
averiguar se havia alguma possibilidade daquele simples carpinteiro de Nazaré ter
algo a ver com as grandiosas profecias com as quais ele sempre lidou como sério
estudante do Antigo Testamento.
Ele não defendeu
aqueles homens por perceber a verdade. Gamaliel se mostrou tolerante contra um
movimento contrário ao judaísmo e apesar de seu argumento ter livrado muitos da
morte, ele não tinha interesse na verdade em si.
Sua atitude tem muito a ver com aquilo que presenciamos em nossos dias. Vivemos numa cultura
na qual a tolerância é palavra chave. O problema é que ela quase sempre se
torna aceitação e conformismo e muitas vezes “a tolerância religiosa é uma
espécie de falta de fé”, como afirmou Bierce. Infelizmente a tolerância tem se
tornado um forte oponente do testemunho e da fé cristã. Vivemos numa sociedade
plural, onde cada um pensa o que quiser, segue o que quer, e acha que todos
estão certos. Esta tentativa de buscar respeito e ser politicamente correto
está fortemente enraizado no mundo acadêmico. É claro que devemos respeitar os
diferentes pontos de vista, mas isto não significa que devemos sancionar todos
diferentes conceitos e ideias quanto à fé e à prática em nossos dias.
Stott afirma que a
unidade não deve ser buscada à despeito da verdade. Paulo recomenda: “Seguindo a verdade em amor, cresçamos em
tudo naquele que é o cabeça – Cristo!” (Ef 4.15). A verdade sem amor nos
transforma em legalistas radicais e zelosos ortodoxos sem entendimento, mas o
amor sem verdade deixa a mentira orientar o nosso coração. Em nome da aceitação e conciliação aceitamos a mentira.
Os dois valores
precisam andar andar juntos. Verdade em amor e amor em verdade. São como duas
asas de um avião. Se tirarmos uma, o avião não decola e nem consegue voar. O
perigo da tolerância é que ela insiste no amor em detrimento da verdade. Não
queremos ofender contudo o evangelho é ofensivo. Como conciliar luz
e trevas em nome da tolerância e pluralidade?
John MacArthur, disse
que “quando a tolerância é valorizada acima da verdade, a causa da verdade
sempre sofre”. A tolerância pode nos tornar coniventes com falsos pensamentos
que estão levando pessoas à morte e estimular a resistência de certos homens
em não se submeterem à autoridade de Deus.
O parecer de Gamaliel não
é inspirado por Deus. Muitos movimentos até mesmo milenares como as falsas
religiões e seitas sobreviveram mesmo sendo opostos à Deus. Nenhum
movimento pode ser considerado aprovado por Deus usando o critério da durabilidade.
Naturalmente seu
conselho é útil para defender a não violência e os julgamentos precipitados dos
homens, entretanto, nenhum dos apóstolos defende o argumento de silenciarmos ou
nos omitirmos ao vermos as heresias prevalecerem nas igrejas e tolerarmos o
erro em nome do amor e da paz cristã.
Embora Paulo tenha
sido educado na escola de Gamaliel, ele ordenou a Tito que fizesse calar a voz
dos falsos mestres que surgiam na igreja (Tt 1.10-11), e ordenou a Timóteo: “Disciplinando com mansidão os que se opõem,
na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem
plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços
do diabo, tendo sido feitos cativos por ele para cumprirem a sua vontade”(2
Tm 2.25-26). Paulo não estava disposto a seguir o conselho de seu antigo mestre.
Seu mestre agora não era Gamaliel, mas Jesus Cristo.
Jesus também não
aconselha uma atitude de indiferença com heresias: “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos
como ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores. Por seus frutos os
conhecereis. Porventura, colhem-se uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos?
[...] Toda árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto,
pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.15-19).
3.
Incredulidade sutil – Este é o terceiro
erro que podemos perceber na vida de Gamaliel. Ele argumenta que este movimento
não podia de ser detido por meio da violência; e deste ponto de vista seu
conselho é eticamente correto. Mas ele não possuía percepção espiritual para
avaliar sua própria posição para com o Evangelho.
M. L Jones afirma que
Gamaliel viu coisas boas no Evangelho, mas ainda assim o rejeitou. O fato de alguém
ver coisas boas nos ensinos do cristianismo não significa que ele é cristão. A
sutil incredulidade e de alto risco, está exatamente na
aceitação parcial do Evangelho. Concordar com determinados aspectos do
Evangelho pode nos deixar numa perigosa zona de conforto espiritual,
transformando-nos numa pessoa respeitada e culta, mas não em um
discípulo de Cristo.
4.
Neutralidade
displicente.
Este é o quarto equívoco de Gamaliel. Ele estava diante de um evento
sobrenatural, mas isto não o levou a se tornar um seguidor de Cristo. Sua
moderação demonstra como uma pessoa educada, coerente, lógica, pacífica, pode
perder aquilo que é essencial na vida.
O problema da nossa
geração não tem sido a intolerância, mas a excessiva tolerância. O problema de
muitos não é se fecharem ao evangelho, mas o de estarem abertos a tudo. O
recente filme Py, relata a travessia de um garoto indiano no mar, com um tigre
não domesticado dentro do barco, e sutilmente mostra como a pluralidade
religiosa pode nos levar a uma diversidade de deuses e ideias. O garoto do
filme adotou três religiões distintas ao mesmo tempo. Era de uma família budista,
se tornou cristão e ao mesmo tempo era muçulmano.
A tolerância religiosa
que diz que todos estão certos e não há uma verdade única, tem sido mais do que
nunca defendida. Gamaliel era moderado, mas o suficiente para não assumir um
compromisso com Jesus. Ele é educadamente um descrente em Cristo.
Os discípulos de
Hillel, seu avô, criam na ressurreição dos mortos. Agora que a ressurreição
estava diante dele ele a tratava com indiferença. Ensinava a vinda do
Messias admitindo a possibilidade de que a qualquer momento da história ele surgisse. Agora o Messias estava diante dele e
ele não o reconhecia. Sua atitude de indiferença e discurso ameno e
conciliador, revela sua descrença apesar de todas as evidências que estavam
diante dele.
Ele era corretamente
educado, politicamente correto, conciliador por natureza, mas o Messias estava
diante dele e ele o rejeitou. Ele demonstrou que não estava interessado em Cristo. Aí
está o perigo do excesso de tolerância. Isto afeta todos os aspectos da vida. Pessoas
respeitáveis demais podem estar fugindo de um confronto inevitável proposto por
Jesus ao afirmar: “Quem comigo não ajunta, espalha”.
Gamaliel é um símbolo
do erro da indecisão.
Ele preferiu assumir
uma atitude de neutralidade diante da verdade que exigia dele uma posição firme
e resoluta. Ele decidiu que preservar a paz, a simpatia, boa reputação e influência
era o mais importante. Esta neutralidade displicente é fatal quando estamos lidando
com questões espirituais. Muitos, como Gamaliel, estão diante poderosas manifestações
de Deus, mas não querer assumir sua fé. Podem até ser um instrumento para libertar outros, mas sem
se render a Cristo e reconhecer que é o Messias.
Conclusão:
Por que Deus deixou escrito este relato na Bíblia?
A.
Primeiramente,
para mostrar que, em sua soberania, usa quem quer. Usou o famoso e
indiferente mestre para preservar a vida dos apóstolos e preparar, pelo menos
inicialmente, a vida de Paulo para a compreensão do verdadeiro conhecimento da
fé.
B.
Para
demonstrar que até mesmo homens de bom senso viram que o cristianismo não
constituía uma ameaça à sociedade. Se Gamaliel tivesse seguido seu próprio
conselho, teria se tornado cristão — pois o cristianismo foi
um sucesso e havia provas abundantes de que Jesus era o Messias.
C.
As
palavras de Gamaliel não formam um princípio doutrinário. Não possuem
qualquer peso teológico, e foram expressas num contexto específico e restrito.
Ele, não assumiu nenhuma responsabilidade com o cristianismo pregado pelos
Apóstolos. Ele era foi político e diplomático, mas nunca foi bíblico e cristão.
Ao olharmos ao nosso
redor e repararmos o crescimento vertiginoso das seitas em nossos dias, fica
claro que o raciocínio de Gamaliel não pode ser aplicado.
D.
Não
é possível ficar neutro. Não há comodidade aqui; não há neutralidade. Não existe
atalho para se chegar a verdade e a salvação, somente pelo Senhor Jesus,
Príncipe e Salvador.
Gamaliel não assumiu a
fé no Messias que se revelou em seus dias. Tantas foram as evidências, tantos
milagres, tantos testemunhas. O velho Simeão que adorava a Deus piedosamente no
templo, ao ver Jesus entrando nos braços de José e Maria, pegou aquela criança
no colo e disse: “Despede em paz teu servo, porque meus olhos já viram o
redentor”. Aquele homem de oração distinguiu o Messias sem nunca ver qualquer ato miraculoso ou sequer uma de suas palavras. Gamaliel estava diante de homens simples, testemunhando um evento
extraordinário, deu um parecer político, moderado, mas não fez o que era
essencial: reconhecer quem era Jesus e se curvar diante de sua majestade.
Que Deus nos ajude a
sermos sensatos para proteger os que são perseguidos... e corajosos para
assumir e reconhecer publicamente a autoridade de Jesus Cristo.