segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Ex 20.13 “Não matarás”.




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Introdução:


De todos os mandamentos, um dos mais cruciais em todas as culturas é o sexto mandamento. Principalmente porque ele coloca na perspectiva correta a vida e tenta garantir a sobrevivência da raça humana. Uma sociedade que não respeita a vida, se torna bárbara. A história está repleta de culturas nas quais o valor da vida não era considerado algo sagrado. A fé cristã, sempre mudou esta perspectiva. Os dez mandamentos tornaram-se um ponto de partida essencial toda vez que a questão da vida torna-se objeto de estudo.

A sacralidade da existência:

Este mandamento aprecia a vida e a coloca na correta perspectiva. Nele aprendemos a sacralidade da existência, reconhecemos que a vida é um dom de Deus. Não pode ser banalizada, manipulada, nem explorada como um objeto comercial. Não se pode desconsiderar seu precioso valor.

O verbo “viver” em inglês é “to live”. Se invertermos este termo “live”, teremos outra palavra sugestiva: “evil” (mal). Assim como na língua inglesa precisamos considerar que o mal é oposto à vida. Matar é desprezar o valor e significado da existência e desconsiderar que Deus é o Senhor da vida. Onde encontramos pessoas e estruturas que desvalorizam a vida, teremos ali a expressão do mal, seja qual for a explicação que se dê a esta atitude, ela será sempre maligna. O bem exalta a vida. Deus valoriza a vida!

Por isto não temos o direito de tirar a vida do outro, uma vez que a vida é doação divina. Apenas Deus, que a dá, pode tirá-la, no seu tempo, da sua forma, dentro de seus propósitos. Dar e tirar a vida são prerrogativas divinas.

Nossa sociedade tende a relativizar o valor da vida e a banalizá-la. Acostumamos facilmente com a morte, nos tornamos apáticos. Apatia (a-pathos) é uma fuga do sentir. Ela opera como o instinto da morte de Freud. Assim é que estatísticas como o assassinato de mais de 60 mil pessoas no Brasil em 2017 não nos assusta mais, nem os outros 38 mil que mortos nas estradas brasileiras vítimas de um trânsito caótico e violento. Isto demonstra quão pouco a vida é valorizada em nosso país.

Centenas de pessoas morrem de igual forma de fome, guerras vazias, prepotência de ditadores em outras partes do mundo. Não seria esta uma forma de co-participação no projeto da anti-vida? Não seria isto uma forma de matar?

A Igreja de Cristo precisa se manifestar contra qualquer forma de anti-vida, seja ela pessoal ou social. A vida é o bem mais precioso que temos, e a única coisa que não se pode recuperar na vida. Existem muitas formas de matar. Por exemplo, decretar leis injustas que impedem a vida é uma destas formas.

Este texto, levanta questões para considerarmos, e que infelizmente não poderão ser tratados aqui, mas quero pelo menos citá-los.

A questão da vida:

Lutero é bem abrangente acerca do significado deste mandamento. Para ele, tudo que respira vida deve ser tratado com dignidade: os animais, a  natureza, as florestas, os rios, os oceanos, o ar que respiramos. “O objetivo deste mandamento é, consequentemente, não fazer mal a nada por meio de uma ação perversa”. Não é sem razão que Jesus afirma que peca contra este mandamento não apenas o que mata fisicamente, mas todo coração que pensou mal e se deixou levar por sentimentos de vingança e ódio.

A questão do aborto:

Este mandamento também lida com a trágica situação do infanticídio que acontece nas clínicas de abortos clandestinas cujos números chegam aos milhares. O discurso feminista atual para justificar o aborto é que a mulher é dona do seu corpo e por isto pode fazer o que bem entender com ele.

Este argumentação é verdadeira, mas falaciosa, porque parte de uma premissa errada. Toda mulher tem direito sobre seu próprio corpo, por isto pode amputar uma de suas pernas, se assim desejar; ou arrancar um órgão de seu corpo, mas a criança, que está no seu útero, é outro ser dentro do seu corpo. Não faz parte do corpo da mulher. Possui existência individual e separada. Portanto, a prática do aborto é também uma quebra do sexto mandamento.

Jesus dá uma dimensão ainda mais profunda a este mandamento, ensinando que o ódio nutrido e expressões de desprezo, desconsideração e descaso dentro de nossos corações são formas subjetivas de matar o irmão, e quem faz isto incorre no julgamento de Deus (Mt 5.21-26). Matamos com indiferença, apatia, ira e maledicência.

A questão do idoso e do deficiente:

Matamos também idosos e deficientes, quando encontramos neles um valor meramente utilitarista. Nossa sociedade focalizada apenas no sucesso, lucro e conquista tende a destruir aqueles que não são mais úteis. Muitas culturas bárbaras enxergavam o velho como um peso e um estorvo. No Império Romano, o parricídio e o matricídio eram admitidos e praticados, quando a pessoa se tornava idosa demais e onerava financeiramente a família. 

Pena de morte, eutanásia e legitima defesa:

Teria o Estado direito para executar alguém?

Alguns acreditam que a melhor tradução para este texto seria “não assassinarás”. Já que Deus mesmo, ordenava no AT que determinados crimes fossem passiveis de julgamento e execução.

Teria a pessoa direito sobre a vida de outrem quando esta se encontra incapaz de reação pelos meios naturais de responder por si mesma ou clinicamente incapaz?

Seria legitimo que alguém usasse do seu direito de defesa para tirar a vida de outra pessoa?

Seria possível matar alguém na guerra? Um direito civil?
Parece-nos que o texto de fato se refere ao assassinato. No Antigo e no Novo Testamento, uma pessoa podia ser condenada pelo Estado e ser executada, como fizeram com Jesus. O problema mais grave aqui não é se o Estado ou uma corte tem poder de condenar a morte um ser humano. Parece que esta questão teológica não é muito complicada na Bíblia. O grande desafio que se nos impõe é o desafio da correta aplicação da justiça.

Paulo afirma em 1 Tm 1.8: “Sabemos que a lei é boa, se alguém se utiliza dela de forma legítima”. O grande problema na aplicação da pena de morte, ou de matar alguém na guerra, é que, muitas vezes, em nome da lei, se manipula e condena pessoas inocentes. Poderes ditatoriais sempre se utilizaram deste argumento e tiraram a vida de pessoas inocentes, condenando-as por razões de intrigas políticas. Os sistemas judiciais também são falhos e cometem injustiça. O pobre e o fraco sempre sofrem nas mãos do Estado ou de uma justiça corrupta ou manipuladora.

A questão do assassinato:

Este texto nos alerta a não conspirarmos contra qualquer irmão, nem contra nossa própria vida. Alerta-nos também contra o suicídio. Uma vez que você não é o autor da vida, não pode dispor dela para a auto-destruição. A vida é um dom!


A questão do suicídio:

Este texto nos alerta a não conspirarmos contra nossa própria vida. Muitos me perguntam sobre o fato de se um suicida pode ser salvo. Isto tem a ver com uma forma de pensamento dominante em nossa sociedade que afirma que o suicida não pode encontrar a salvação.

Na verdade, a questão deveria ser colocada de forma diferente.
Quando eu penso em dar cabo a minha vida, eu declaro estar contrário ao propósito de Deus em me criar. Eu perdi a capacidade de ver Deus no centro de minha existência para me dar propósito e razão de viver. O suicídio tira de nós a capacidade de pensar no valor que eu tenho diante de Deus. Deus me criou com propósito e com missão. Tirar a minha própria vida significa que eu perdi a capacidade de encontrar propósito na minha própria existência.

Entretanto, precisamos considerar que muitas vezes o suicídio transcende a mera angústia humana, sendo causada por graves enfermidades e patologias. Uma esquizofrenia pode levar ao suicídio, um grave distúrbio psiquiátrico, uma depressão profunda, podem ser a causa do suicídio. Creio que devemos olhar o suicídio com mais compaixão e misericórdia, antes de estabelecer julgamento.

Todavia, é bom considerar que não temos o direito ao suicídio. Porque ele quebra o sexto mandamento que diz: “Não matarás!”

Conclusão:

Uma visão positiva da vida pode alterar nossa visão de universo e de valor próprio, afinal, ideologias são antropologias. É isto que este mandamento pede de nós. Que valorizemos o ser humano uma vez que ele foi criado à imagem e semelhança de Deus.

Jesus não considerou o assassinato como o simples fato de pegar uma arma e disparar contra outra pessoa. Jesus deu um sentido muito mais profundo a este mandamento: 

"Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá’ (tolo), será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco! ’, corre o risco de ir para o fogo do inferno" (Mt 5.21,22).

Para Jesus, não matamos alguém apenas quando agredimos fisicamente. Podemos matar alguém em nosso coração, ou quando agimos de forma insensível e indiferente, quando o desprezamos ou menosprezamos. Para Jesus, matar alguém possui uma dimensão muito mais profunda.

Talvez seja aqui que precisamos analisar nosso coração:
Provavelmente meus leitores nunca mataram alguém intencionalmente (acidentes de carro também podem matar), mas certamente, todos nós já tivemos a tentação de eliminar alguém de forma rude, com xingamentos, ou  ignorando e tratando com indiferença alguém que nos machucou ou nos feriu. 

Jesus deu um sentido mais profundo a esta tema.
Não podemos tratar a questão de "não matarás", de forma superficial.
Precisamos analisar se, em nosso coração, não temos matado pessoas, destruído vidas, causando mortes em nossas relações pessoais. O caminho do evangelho não é o descaso, mas o perdão, restauração e reconciliação. 

Por definição, o evangelho é pró-vida!
Onde os sinais da morte permeiam, a igreja deve entrar com uma ação de resgate e valor à dignidade humana e à vida. 
Numa sociedade que sempre optou pela anti-vida, precisamos reafirmar que a vida é um dom de Deus, e precisamos sempre lutar de forma intencional e intensa, para que a vida possa florescer em sua plenitude.


sábado, 26 de outubro de 2019

1 Sm 15 Saul: Sombras e luzes da Alma II


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Introdução:

Um velho pregador escocês, de um pequeno condado no interior do país, dominicalmente recebia do diácono, um copo de leite quente, para que pudesse estar mais encorajado durante o sermão. Um dia, como o frio ainda estava mais intenso, o diácono adicionou um pouco de rum no leite quente. Quando o velho pastor bebeu aquele leite, olhou para a congregação e disse: Que vaca!

Robert Clinton no livro on becoming a leader, afirma que 2/3 dos líderes cristãos da Bíblia terminaram mal.  Esta é uma estatística assustadora. Personagens como Saul, Salomão, e muitos outros, começaram seus ministérios com muitos acertos e terminaram suas vidas provocando o Senhor e em grave processo de rebeldia.

Nossa alma corre perigo!
Terríveis sombras circundam nossas emoções e mente.

Como vimos no estudo anterior, Saul começou seu reinado com um chamado e unção especial, depois teve experiências carismáticas profetizando no meio de um grupo de profetas, e isto pareceu tão estranho entre o povo, porque Saul não era exatamente este “rapaz espiritual”, que se tornou proverbial em Israel, quando alguma coisa não ia bem, afirmar o seguinte: “Também Saul entre os profetas?”, um tipo de afirmação de um provérbio brasileiro que afirma: “macacos me mordam!” ou “cavalo dado não se olha o dente”.

Apesar de termos uma visão tão negativa de Saul, pudemos ver no estudo anterior que Deus havia colocado nele, muitas características extremamentes positivas, que chamamos de luzes. Saul experimentou momentos memoráveis na relação com Deus, sua experiência de visitação do Espírito Santo, sua capacidade administrativa, sua sensibilidade com o povo, seu zelo e compaixao, e tantas outras virtudes.

O problema de Saul, porém, foi a quantidade de sombras que carregava em sua personalidade. Saul tinha excelentes qualidades, foi brilhante em alguns momentos de sua carreira, mas não conseguiu sustentar as coisas nos mesmos níveis em que começou. Um bom líder é bem sucedido, mas se suas sombras forem grandes demais, quando sua projeção lhe trouxer visibilidade pública, ele será desmascarado e tudo quanto fez será destruído. John Maxwell afirma que “Tudo se levanta e cai pela liderança”.

Saul teve o privilégio de estruturar Israel em torno da monarquia, criar as estruturas e cargos, construir palácios, montar um exército, consolidar uma liderança. Infelizmente, as sombras de sua alma foram devorando sua vida e terminou seus anos de forma patética, longe de Deus, invocando médiuns e espiritas para sua própria condenação (1 Sm 28).

Duas questões tem destruído a vida de muitos líderes?

Uma externa: Paixões do coração.
Muitos líderes sucumbiram nesta armadilha. Encontraram alguém “interessante”, deixaram seu coração ser levado por uma aventura amorosa, desprezaram a Palavra de Deus, deram ouvidos ao seu próprio coração, negaram sua fé, feriram suas famílias, afastaram-se da comunhão da igreja e geraram escândalos na comunidade, trazendo desonra a Deus. Esta não é uma cena muito rara. Lamentavelmente.

Outra interna: Frieza Espiritual.
Muitos líderes nunca causaram escândalo, contudo, seus corações estão frios e apáticos em relação às realidades espirituais. Sua alma corre sério perigo. Vão sendo consumidos pela apatia. Como Clarice Lispector afirmou no seu poema "Não sentir": "O hábito tem-lhe amortecido as quedas, mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida; pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio aviso prévio" (A descoberta do mundo, Rio, Ed. Rocco, 1999, pg 32).

Certamente trata-se de uma cilada envolvente: 
O acadêmico Jean Restand foi o primeiro a perceber que se colocasse uma rã numa vasilha com água quente, ela reagia violentamente e pulava para fora, mas se a água fosse aquecida lentamente, a rã ficaria entorpecida e morreria queimada. As tentações e reflexos morais também tendem paulatinamente a perder seu bom funcionamento quando nos acostumamos com o mal, até que a consciência se torna completamente entorpecida.

O grande desafio não é ser para fora, mas ser para Deus. Por isto, nossas motivações, intenções e razões do coração são escrutinadas por Deus.

A história de Saul demonstra até onde um homem, ao se afastar de Deus, pode se  desviar, e como o coração é capaz de nos trair.

Eis algumas atitudes refletidas no seu caráter que devem nos levar a considerar o nosso próprio coração:

  1. Fazer o que dá conforto e popularidade ao invés de fazer o que Deus manda – (1 Sm 15.11)

O que Deus mandou ele fazer?
Ir à guerra e não trazer qualquer despojo.
Certamente este é um difícil pedido. Os soldados quando iam para Guerra tinham como recompense seus trunfos, arrecadas e jóias de ouro. Neste caso, Deus foi explicito em dizer que não queria que trouxessem nada, era para destruir tudo.

O que Saul fez?
Ele desobedeceu a Deus naquilo que ele havia ordenado.
Por que fez isto? Porque o mandamento de Deus não dava ibope. Como bom político, ele precisava de respaldo das pessoas e do apoio popular.

Sua desobediência nos aponta para alguns perigos:

  1. Ambientes e circunstâncias podem se tornar mais relevantes que princípios. “Forçado pelas circunstâncias” (1 Sm 13.12).

Isto nos leva a pensar que, se não houvesse pressão, e se as pessoas não tivessem tais expectativas sobre ele, sua reação poderia ser diferente. Não é possível que o mesmo se dê conosco?

Um antigo ditado diz que as pessoas são como saquinhos de chá, nunca se sabe o que tem dentro até que se derrame água fervendo sobre elas. Saul cedeu à pressão das circunstâncias. “Os homens são o passatempo preferido das circunstâncias.”

  1. Pessoas se tornam mais importantes que Deus. “Pequei... porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz” (1 Sm 15.24).

A opinião do povo era o que interessava a Saul. Ele sabia o que Deus queria dele, mas a pressão popular exercia grande poder sobre sua vida. Quando confrontado pelo seu pecado, e vendo-se sem defesa, Saul revela qual tinha sido o seu grande problema. Saul precisava ser valorizado, e isto se tornara idolátrico em seu coração, e seu desejo de aprovação humana era maior do que o de glorificar a Deus. “Então, disse Saul a Samuel: Pequei, pois transgredi o mandamento do Senhor e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua voz”(1 Sm 15:24).

Antes de julgarmos a Saul, sejamos honestos.
Qual líder nunca se sentiu pressionado para tomar uma decisão por causa da pressão do grupo e não pela orientação divina? Ninguém gosta de ser rejeitado, existe um desejo íntimo em nós de sermos populares, aceitos, recebermos honra, por isto, tomar atitudes impopulares é muito difícil. O desejo de aceitação e reconhecimento facilmente substitui nossa capacidade de obedecer fielmente a Deus.

Quantos de nós não fomos pressionados e tomamos decisões politicamente corretas, por causa das pessoas que estão ao redor? Tememos a opinião pública, o que vão dizer, o que pensarão a nosso respeito? Popularidade e aceitação pública é um dos grandes riscos da alma humana.  Precisamos de coragem e firmeza para colocar Deus em primazia aos desejos e anseios de nossa família, amigos, e liderados.

Um exemplo pessoal

Um dos casos mais dolorosos no meu ministério se deu no processo de divórcio de um querido casal da igreja. Eles não tinham nenhuma razão para a separação exceto a obstinação que os caracterizava. Quando perguntados porque queriam se separar nos disseram simplesmente: “Somos muito diferentes”…Apesar dos insistentes apelos a lutarem juntos para manterem a unidade e a indissolubilidade do casamento, resolveram se separar, sem briga, sem ameaças, aliás, se tornaram mais amigos depois de separados que quando estavam casados.

Naquela ocasião fui muito direto com ambos, mostrei-lhes que a Bíblia tinha instruções claras sobre este assunto, e que Deus não autorizava tal divórcio. Afirmei-lhes que, dadas as circunstâncias da separação, e pela dureza de seus corações, caso me procurassem para se casar com outra pessoa no futuro, eu não poderia, em sã consciência, realizar a cerimônia.

O divórcio foi consumado e cerca de dois anos depois um deles veio a mim, dizendo que gostaria de se casar novamente e se eu poderia realizar a cerimônia de casamento. Ora, eu era amigo daquela pessoa, ela nunca se afastara da igreja apesar de toda controvérsia, e eu me via agora diante de uma convicção profunda de que o que ele fizera era contra a Palavra de Deus, e que eu não poderia efetuar o seu casamento, mas sabendo que, pela sua liderança e amizade em nossa comunidade eu seria pressionado a realizar a cerimônia.

Tivemos uma conversa pesada. Afirmei-lhe o quanto o amava, mas que não poderia realizar, em sã consciência, realizar seu casamento. Ele me pressionou: ”Neste caso, terei que mudar de igreja, porque o meu pastor não quer me dar a benção”. Declarei-lhe que ele tinha duas opções: largar a igreja por causa de minha decisão, ou entender que ele deveria ficar na igreja, porque o seu pastor era tão sério que, mesmo o amando, não quisera realizar a cerimônia de seu casamento, por questão de consciência.

Eu sabia que minha decisão levantava muitos questionamentos. Várias pessoas vieram me questionar, e eu sei, que para cada pessoa que o questiona pessoalmente, dez outras estarão criticando-o por trás. Mas eu me lembro como o desejo de ser agradável e tomar o caminho mais fácil se tornou tentador para mim.

Este, naturalmente, é um testemunho de como as coisas acontecem, mas é um testemunho vitorioso. Contudo, o que dizer de outras decisões nas quais a gente peca por pressão do povo, faz as coisas com dúvidas morais, porque tememos o povo?

  1. As ambições são maiores que pessoas.

Saul não tinha escrúpulos em usar as pessoas para conseguir alcançar seus alvos políticos. Ele instrumentalizou sua filha Mical, entregando-a a Davi para ser esposa, sem perguntar se era isto que lhe interessava. Posteriormente Mical o enganaria, revelando como a relação dos dois era complexa. Mais tarde, Saul volta à carga e quando Davi foge do palácio, para punir o genro, entrega-a a outro homem. Futuramente um incidente chocante atingiria Israel quando Davi pede de volta a sua esposa.

  1. Demora em fazer altares“Edificou Saul um altar ao Senhor; este foi o primeiro altar que lhe edificou” (1 Sm 14.35)

É curiosa esta observação do texto. Quanto tempo Saul já era rei em Israel? Comentaristas afirmam que quando este altar foi construído ele já estava no reinado de seis a sete anos. Saul ainda não havia feito uma demonstracão espiritual pública para revelar aos seus subordinados, quem era o Deus que ele seguia. Isto tem a ver com testemunho.

O povo de Israel era facilmente induzido a seguir deuses falsos. Saul fundou a monarquia, e antes de ter um governo central, Israel estava sem uma direção clara tanto politica quanto religiosa. As lideranças que surgiam eram esporádicas, e isto levava o povo a não ter uma referência religiosa e moral muito clara. A frase central do livro de Juízes é: “Naquele dia não havia rei em Israel, cada um fazia o que queria”.

Saul não se preocupa com Deus. Não sente necessidade de glorificá-lo. Seu coração é muito secularizado para que coisas espirituais ocupem sua mente.

Muitos eram os desafios políticos, a necessidade de consolidar seu reinado, as exigências sociais e os compromissos foram engolindo Saul, que já não era muito propenso às questões espirituais. Saul não tinha tempo para Deus. Fazer altares é uma forma de trazer Deus de forma comunitária, de colocar Deus no centro. Abraão e Isaque estavam sempre construindo altares, mas Saul tinha muitas outras preocupações maiores em sua alma que o desejo de agradar a Deus. Ele não priorizava Deus.

O primeiro altar não é erguido pelo desejo de comunhão com Deus, mas pelo medo da punição, quando soube da atitude grotesca e escandalosa assumida por seus subordinados, então resolve erguer um altar (1 Sm 14 31-35).

Como poderíamos traduzir esta idéia de fazer altares aos nossos dias?
À semelhança de Saul, vivemos dias que exigem muito de nosso tempo e de nossa mente. Diante de tanta correria, podemos facilmente construir um estilo de vida pagão. Mesmo como pastores e líderes. Assim, Deus  não é focalizado em nossas atividades diárias, nem conectamos Deus ao nosso viver cotidiano. Deus fica de forma periférica na vida. Sabemos de sua existência, entendemos que Ele é real, só que não nos preocupamos em sua glória, nem o tornamos central em nossa vida. Não lhe erguemos altares. Afinal, altares custam dinheiro, e não queremos gastar os nossos recursos para promover a glória de Deus e investir no seu Reino. Erguer altares consomem tempo, e com a agenda tão cheia de atividades, não dispomos deste tempo para Deus. Estamos muito ocupados para orar, ler a Palavra, darmos nossos talentos para o Senhor. Assim, apesar de sermos cristãos, vivemos como pagãos.

Uma das boas lembranças que trago na vida familiar foram os altares erguidos por meus pais. Gente simples, de herança italiana, gostavam de ter amigos ao redor de sua mesa. Muitas vezes recebíamos famílias inteiras, que chegavam sem aviso e agenda. Algo impensável para nossos dias. Meu pai, antes do almoço, de forma solene dizia a todos: “Antes de almoçar, vamos agradecer a Deus o que ele nos tem dado”. E ali, lembrávamos de que Deus deveria ser glorificado pela fartura de alimento, pela vida, e pelos amigos. Forma simples de construir altares!

Tenho provocado muito os noivos para que se lembrem do que pretendem fazer na cerimônia de casamento, Normalmente, gastamos 200 horas preparando a festa, e cerca de três a quatro horas, preparando-se para viver casado. Isto, quando existe alguma disposição para tal preparo. Além de exigir que façam o encontro de Noivos, como condição sine qua non para o casamento, lembro-lhes que seu propósito, na cerimônia, deve ser o de prestar culto a Deus. É possível erguer um altar durante uma cerimônia tão carregada de expectativas sociais? A resposta é que não apenas é possível, mas que  deveria ser um alvo de todo casal cristão. Afinal, mais importante que qualquer pessoa naquele evento, é a pessoa de Jesus!

Muitas vezes tenho pensado sobre o significado da palavra de Deus: ‘Encontrei Davi, filho de Jessé, homem segundo o meu coração; ele fará tudo o que for da minha vontade’.
(At 13.22). O que significa ser “um homem segundo o coração de Deus?” Olhando superficialmente a história de Davi, temos a tentação de achar que Ele teve pecados muito mais graves que os de Saul. Saul não adulterou, nem mandou matar uma pessoa para acobertar seu adultério, no entanto, Deus não tinha prazer no coração de Saul. O que os diferenciava?

Creio que o distintivo de Davi estava na adoracão.
Davi tinha um coração voltado para Deus. Mesmo sendo pecador, ele estava sempre na presença de Deus. Seu prazer estava em Deus, na comunhão com o Pai. Deus conhecia seu coração. Davi fazia altares para Deus, e isto fazia parte do seu estilo de vida. Em Saul, vemos atitude diferente. Levantar altares era algo que ele estava sempre adiando. Não era algo espontâneo no seu coração, nem fazia parte de sua agenda.

  1. Preocupação com a auto-promoção ao invés da glória de Deus – Saul, ao contrário de outros homens piedosos da Bíblia, nunca se preocupou em promover o nome do Senhor no meio de seu povo. O primeiro altar que levantou para o Senhor, demorou cerca de sete anos (1 Sm 15.12).

Saul, contudo, era muito rápido em relação a auto-promoção. Ele era um bom marqueteiro, rápido para chamar atenção sobre si e construir monumentos para perpetuar seu nome, no entanto, demorado em glorificar a Deus. O texto demonstra que no meio da crise, ele se levanta de madrugada e faz um monumento para si (1 Sm 14.35).
Surpreende-nos sua facilidade e rapidez em levantar monumentos para si e a demora em erigir altares para Deus. Saul era auto-centrado. Procurava demasiadamente a glória para si.

Isto pode revelar atitudes espirituais com corações carnais.
O que buscamos? A glória de Deus ou a admiração das pessoas.

Certo pastor muito vaidoso, ouviu um elogio na porta da igreja por um senhora da comunidade. Ele, tentando ser o mais seco possível, disse: “Elogios para mim, são como água nas costas de pato... não penetram...” E a senhora respondeu: “Que não entra é verdade, mas certamente o pato fica todo alegre com a água”.

Muitos dos nossos ministérios e trabalhos estão centrados no desejo de auto-promoção e vaidade, e não no prazer em glorificarmos a Deus. Cultivamos ministérios megalomaníacos porque estamos profundamente auto-centrados e queremos  reconhecimento público de nossa grande habilidade em fazer coisas, nossa aptidão e capacidade administrativa.

Como isto é tentador...

  1. Saul tenta trapacear Deus. “Respondeu Saul: De Amaleque os trouxeram, porque o povo poupou o melhor das ovelhas e dos bois, para os sacrificar ao Senhor, teu Deus; o resto, porém, destruímos totalmente”(1 Sm 15.13) 

Quando Samuel questiona sua rebeldia e desobediência, Saul se justifica.  Trouxe para sacrificar o melhor do rebanho ao Senhor” (1 Sm 15.13,15).

É a velha tendência do coração de tentar trazer rosas e presentes à esposa, quando deveríamos pedir perdão e admitir o erro. Não adianta encher o altar de Deus de ofertas e sacrifícios, se não houver demonstração de arrependimento. Há um grande risco no ser humano de tornar-se religioso o suficiente para não ser quebrantado.

Esta estratégia é antiga, mas nunca funcionou.

Quando Deus procurou Adão, depois dele ter pecado, ele não apenas se justificou, mas acusou a Deus de estar invadindo a sua privacidade. Afinal, ele estava nu e se escondeu por esta razão. Por que Deus não “respeitou” sua individualidade? Deus, porém, não se deixou enrolar pelos seus discursos filosóficos e psicológicos. Adão precisava de arrependimento, mas ele quis convencer a Deus de que alguma coisa estava errada em Deus, e não nele mesmo.

Vendo-se descoberto, Saul articula uma saída honrosa e espiritualiza seu pecado. Saul tenta fazer negociatas com Deus. Tenta justificar sua obediência.

Não é assim que muitas vezes fazemos?
Quando pecamos, ao invés de olharmos para o nosso próprio mal em confissão e arrependimento, substituímos a confissão pelo ativismo, o arrependimento por projetos interessantes. “...fazer mais para Deus…”

Não é difícil ser um líder engajado na igreja, fazer muitas coisas para a igreja e mesmo assim estarmos em pecado. O difícil é a obediência irrestrita, a submissão a Deus, quando aquilo que pensamos parece fazer mais sentido do que o que Deus pediu. Cultuar, para Saul, era uma forma social e política mas Deus não entra no seu discurso repleto de articulações, mesmo porque, Deus não está tanto interessado em nossas ofertas quanto está em nossa pessoa. Afinal, “Obedecer é melhor do que o sacrificar” (1 Sm 15.22). O que interessa para Deus não é o que lhe damos, mas o como lhe damos.


  1. Relacionamento “terceirizado” com Deus – O texto é muito claro em demonstrar como Saul via o Senhor. Ele não fala de Deus como um ser de relacionamento pessoal, mas refere-se ao Senhor como o Deus de Samuel. O pronome pessoal aqui mostra claramente seu sentimento. “O Senhor, Teu Deus” (1 Sm 15.15,21,30). Ele estava distanciado de Deus.

Algum tempo atrás visitei uma missão, cujo pastor tinha um grupo de pessoas, que eram remuneradas para se dedicar a oração. Achei a ideia interessante. É maravilhoso ter pessoas que intercedem dia e noite por nós, e aquele grupo era de fato envolvido neste processo. Todavia, corre-se o risco de deixar que os outros orem, e que recebamos apenas as bençãos de suas orações, sem que nós mesmos tenhamos maiores compromissos espirituais com Deus.

Existe ainda o perigo de termos um relacionamento impessoal, meramente institucionalizado, nos tornarmos pessoas religiosas, e “igrejadas”.

A vida de Saul era sem intimidade com Deus. Ele era “parceiro” de Deus no projeto de dirigir a teocracia israelita, mas se refere a Deus como um desconhecido. Ele fala de Deus de forma impessoal e distante. O narrador faz questão de demonstrar que Saul não vê a Deus como o “seu” Deus, mas como o Deus de Samuel.

  • “...Porque o povo poupou o melhor das ovelhas e dos bois, para os sacrificar ao Senhor, teu Deus, o resto, porém, destruímos totalmente” (1 Sm 15.15)
  • “Mas o povo tomou do despojo ovelhas e bois, o melhor de designado à destruição para oferecer ao Senhor, teu Deus, em Gilgal” (1 Sm.15.21).
  • “Então disse Saul: Pequei, honra-me, porém, agora, diante dos anciãos do eu povo e diante de Israel, e volta comigo, para que adore o Senhor, teu Deus” (1 Sm.15.30).

Saul não tem um Deus pessoal, amigo, companheiro, mas alguém que existe, e é mantido à distância. Não é o seu Deus, mas o Deus de Samuel. Ele até convida Samuel para adorar a Deus, mas vê Deus como alguém que está relacionado ao profeta e não à sua vida.

Quando usamos pronomes pessoais da forma que Saul usou, revelamos nossa intimidade com a pessoa sobre a qual nos referimos. Normalmente sabemos quão distanciados uma pessoa se encontra do seu cônjuge, quando ela começa a se referir ao outro, não mais pelo nome, e muito menos como “meu esposo(a)”, mas como “ele”. Saul não revela intimidade com Deus, Deus é o Deus do outro, não dele próprio. Deus do profeta, não do rei.

É possível fazer ministério e a obra do Senhor sem intimidade?
A resposta é sim!

Entretanto, o que diferencia nossa vida é a compreensão da relação que temos com o Deus a quem servimos. Nada é tão importante que a compreensão do amor de Deus e da nossa identidade vinculada à sua natureza. Nada é mais importante para nossa alma, que normalmente se sente orfã, que se perceber como filho amado de Deus.

Certa feita os setenta discípulos voltaram do ministério, trazendo um relatório impressionante dos feitos portentosos de Deus por meio deles: “voltaram possuídos de alegria, dizendo: Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu nome! Mas ele lhes disse: Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago. Eis aí vos dei autoridade para pisardes serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo, e nada, absolutamnete, vos causará dano. Não obstante, alegrai-vos, não porque os espíritos se vos submetem, e sim porque o vosso nome está arrolado nos céus (Lc 10.17-20).

Saul tinha ministério, mas não tinha relação com o dono do ministério. Jesus percebe também que seus discípulos poderiam se impressionar mais pelos milagres e poderes espirituais em si mesmos, que na relação e na identidade que poderiam encontrar com o Pai.

Quão desafiador isto é para nosso coração…
Saul possuía uma relação de alguém que, por ser rei num sistema teocrático, exercia uma função burocrática com Deus, ele "trabalhava", mas não conhecia Deus.

  1. Não se quebrantar diante da verdade, mas insistir em atitudes externas diante do Deus que não olha para forma, mas para o coração.
Saul reconhece que pecou gravemente contra Deus.
O que ele deveria fazer agora?

Esperava-se que se voltasse para o Senhor em quebrantamento, afinal, “Deus não despreza o coração quebrantado e compungido”. A coisa mais importante de sua vida agora era a restauração de sua comunhão com Deus.

Ao lermos o texto, contudo, vemos uma resposta absurdamente estranha de Saul. O que ele fez?

Ele implora a Samuel que o acompanhe no culto que seria feito com todo Israel, para que ele não deixasse de ser honrado perante os anciãos. “Pequei. Agora, honra-me perante os anciãos” (1 Sm 15.30). Como ele queria ainda honra se ele estava exatamente sendo corrigido por Deus por causa de seu pecado. Como ele poderia ainda pensar em buscar honra? Como ser honrado quando desonramos a Deus? Não era hora de Saul pensar em honra pessoal, mas era hora dele se quebrantar com pano de saco e cinza e se voltar a Deus.

Esta atitude é muito comum entre o povo cristão.
Queremos manter a reputação, de forma idolátrica, quando nossa vida está podre. A verdadeira reputação não é a que os homens nos dão, mas a que Deus dá. A verdadeira honra vem de Deus... Saul quer honra, quer viver de aparência, sua face pública o atrai. Ele iria para aquele encontra de sacrifício a Deus, mas seu coração não era de um verdadeiro adorador. Isto certamente não é  adoração, mas auto-exaltação. Que glória pode haver quando estamos sendo inquiridos e confrontados pelo próprio Deus?

Vejo esta atitude muitas vezes em concílios, quando líderes caem em pecado.
Eles querem manter a reputação, ocultar as provas, não perder o nome. Para isto usam de todas as exceções jurídicas possíveis, reúnem dados mentirosos, criam um processo de mentira, para manter as aparências. Eles querem se proteger. De quem? Que nome devo ter quando estou diante de Deus? Que reputação? Quando pecamos diante de Deus, a coisa mais séria nós já perdemos: nós ferimos a Deus, nós desonramos seu nome. Precisamos de perdão e restauração, e não de álibi.“O que confessa e deixa alcança misericórdia, mas o que endurece o seu coração cairá no mal.”(Pv 29.1)


  1. Impaciência e impetuosidade –Esperou Saul sete dias, segundo o prazo determinado por Samuel, não vindo, porém, Samuel a Gilgal, o povo se foi espalhando dali. Então disse Saul: traze-me aqui o holocausto e ofertas pacíficas. E ofereceu o holocausto” (1 Sm 13:8-9).

Na verdade, parece que este foi seu primeiro e grande tropeço, uma vez que é, a partir dai, que Deus rejeita Saul. Sua incapacidade de esperar em Deus, lhe trouxe graves e irreparáveis perdas.

Impaciência tem a ver com a incapacidade de confiar na provisão de Deus que nos leva a fazer as coisas na base da pressão das cirscunstâncias. Saul admite isto: “Forçado pelas cirscunstâncias”. Toma decisões pela força das cirscunstâncias, age na base do emocional. Saul não hesita em substituir a dependência de Deus pela sua própria força. 

Uma das coisas mais assustadoras nos meios evangélicos é a obsessão para ver as manifestações especiais de Deus acontecendo e quando isto não se dá pela soberania direção de Deus, alguma coisa tem que ser feita para dar a impressão de que Deus está agindo. O resultado é o artificialismo na obra de Deus e a manipulação das profecias. Deixar de agir por princípios para agir pela pressão é um dos maiores equívocos de um líder.

Ler a Bíblia com atenção pode nos livrar um pouco da tentação do urgente.
Entre o início da reconstrução do muro, iniciada por Zorobabel e seu término, concluído por Neemias, existe um intervalo de 22 anos. Na primeira seção do livro de Esdras, vemos uma detalhada informação sobre o tempo que se seguiu ao retorno a Jerusalém dos exilados judeus que estavam na Babilônia (538 a.C.), trazendo de volta riquezas e os utensílios do templo que haviam sido levados. No início havia muita alegria, mas logo o desânimo e a oposição vieram e a obra foi interditada (Ed.4.24), até que veio a palavra profética de Ageu e Zacarias, os chamados profetas da restauração, e a obra fôsse novamente iniciada, depois de 22 anos (516 a.C.).

Quando li com mais atenção este texto, fiquei considerando qual seria minha reação se isto acontecesse comigo. Se Deus parasse meus projetos por 22 anos. Já tentaram imaginar isto no coração de Zorobabel e daqueles que saíram, carregados de ideais, para reconstruir os muros de Jerusalém e que tiveram que esperar tanto tempo até que as questões burocráticas e diplomáticas fosse resolvidas? Muitos de nós teremos ministérios apenas com vinte e poucos anos de duração. Como lidaríamos com uma carga tão grande de frustração e espera?

Mas Deus é Deus! Ele estabelece e remove reis. Faz a sua obra de acordo com a sua cronologia, e nenhum de seus planos pode ser frustrado. No tempo de Deus, na hora de Deus, as coisas vão se encaixar. Precisamos tomar cuidado para não fazer aquilo que Deus não nos chamou a fazer, para resolver o que consideramos ser a lentidão de Deus nos processos que ele mesmo estabelecesse na história.

Muitas vezes, no afâ de vermos a obra de Deus acontecendo, fazemos o que Deus nunca ordenou que fizéssemos, e, às vezes, até aquilo que ele claramente disse para não fazermos. Quantos líderes, usam de uma inapropriada e pecaminosa estratégia para ver a obra de Deus crescer? Dá revelação que Deus nunca deu, faz sinais artificiais que não sinais divinos, mas meramente humanos…Esta impaciência foi o princípio da queda de Saul. Impulsionado por ela, se sentiu compelido a tomar decisões em fatos que ele não era responsável. Isto parece muito com as decisões conciliares e pastorais que são feitas sem que haja tempo para que o Senhor diga se quer ou não.

A impaciência leva-nos a tomar decisões em coisas sobre as quais nao somos responsáveis.Por isto a Bíblia nos ensina: “Aquietai-vos e sabei que eu Sou Deus”. (Sl 46.10). Em outras palavras Deus está nos pedindo para que possamos dar espaço para que Ele aja, do seu jeito, na sua hora. Tudo será feito se apenas sossegarmos e crermos que Ele pode fazer.

A impaciência leva jovens a não esperarem o tempo de Deus nos seus relacionamentos. Leva lideranças a tomares decisões sem ao menos perguntar a Deus o que Ele acha. Leva-nos a assumir posições para as quais Deus não nos chama.

  1. Palavras irrefletidas – “Estavam os homens de Israel angustiados naquele dia, porquanto Saul conjurara o povo, dizendo: Maldito o homem que comer pao antes de anoitecer, para que me vingue de meus inimigos. Pelo que todo o povo se absteve de provar o pão.” (1 Sm 1424).

O povo de Israel estava no meio da guerra com os filisteus, e Saul precipitadamente dá uma ordem esdrúxula, para que o povo de Deus ficasse em jejum durante todo o dia. Certamente há muitos momentos em que o jejum é aceitável e recomendável, mas certamente no meio da guerra, não é uma decisão muito sábia.

Saul, entretanto, querendo parecer um líder forte e impressionar seus líderados, decreta jejum que no final vai expô-lo ao ridículo dinte de seus liderados. O problema não é o jejum, mas o jejum fora da hora. Nenhum guerreiro pode jejuar durante a batalha. Na verdade, precisa se alimentar e alimentar bem…Esta ordem era tão absurda que seu próprio filho afirma: “Meu pai turbou a terra” (1 Sm 14.24). E olha que seu filho Jônatas era um forte aliado, não seu opositor.

O problema de sermos “prontos a falar”, é que quando falamos precipitdamente, ficamos numa situação em que, ou reconhecemos o erro e pedimos perdão de forma clara e inequívoca. (E o Evangelho nos estimula a vivermos uma vida de arrependimento), ou, em casos mais complicados, e infelizmente mais comuns, mantemos a postura de nossa infalibilidade, e tentamos manter situações insustentáveis, apenas para não termos que admitir que erramos.

Certa feita um pastor estava presidindo a reunião do Conselho de Igreja, quando, ao reavaliarem a decisão anterior, chegaram à conclusão de que a decisão fora equivocada e desproposital. Diante do fato, um presbítero sugeriu que dissessem a igreja que haviam  errado e que pediam perdão pelo equívoco. Todavia, um dos membros do conselho reagiu: “Mas onde fica nossa autoridade se dissermos isto?” Ao que, o outro presbítero respondeu sem vacilar: “Irmão, arrependimento é uma virtude cristã”.

Por falar irrefletidamente Saul teve perdas significativas na sua liderança:

(a) - Esvaziamento de sua autoridade – Jônatas, que não ouviu a mensagem, quebrou sua ordem. Saul, para manter sua autoridade, manda matar seu filho. Mas todo o exército, ficou contra ele, posicionando-se a favor de Jônatas.

Líder premeditado, perde o respeito de seus liderados e a autoridade para liderar. Isto não quer dizer que um líder não venha a errar, mas quando um líder está constantemente assumindo posições equivocadas e tomando decisões inconsistentes, ele perde sua liderança. Passa a ser objeto de zombaria, e as pessoas não o respeitam mais.

(b) - Gera comportamentos estranhos e animalescos nos liderados

O texto mostra que, por causa da decisão de Saul, os soldados ficaram esfaimados, e quando foram liberados para comer, eles comiam a carne praticamente crua, ainda com sangue, o que, para a cultura judaica era extremamente agressivo (1 Sm 14.32). Sua decisão coloca seus soldados em risco espiritual, numa situação desnecessária e desumana.

Muitos líderes legalistas agem assim. Impõem cargas pesadas sobre os outros, muitas vezes numa atitude disfarçada de espiritualidade, como no caso de Saul. Igrejas legalistas, moralistas, tendem a serem imaturas emocionalmente e a emitirem comportamentos ingênuos e tolos.

Como dissemos, o jejum não era algo ruim em si mesmo, mas a imposição de tal jejum, naquele contexto específico, tornou-se uma ordenança vazia, que, no final, ao invés de trazer santidade, traz revolta e pecado. O próprio Saul se escandaliza com o que acontece, e resolve fazer, pela primeira vez na sua vida, levantar um altar ao Senhor, temendo que algum castigo de Deus pudesse vir sobre seu exército.

(c) - Expõe pessoas a perigos – Saul expõe seu filho e seu exército ao perigo.

O primeiro foi guerrear sem estar alimentado. Isto enfraqueceu o exército. O texto afirma que “o povo se achava exausto em extremo” (1 Sm 14.31). Saul expôs seu exército ao limite, de forma desnecessária.

Segundo, levou-os a pecar e trazer juízo de Deus. Saul leva Jônatas a pecar, e leva seu exército a pecar (1 Sm 14.33). Existem leis e regulamentos que parecem feitos para ser quebrados e atraírem o juízo de Deus.

  1. Rebeldia – “A rebelião é como pecado de feitiçaria e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar” (1 Sm 15.23).

Ao desobedecer a ordem explícita de Deus, Saul está se rebelando contra Deus. Creio que poucas vezes paramos para pensar na desobediência de uma forma tão grave como esta. Desobediência é conspiração e rebeldia contra o Senhor. Talvez este tenha sido, de todos, o pecado mais grave e sério de Saul: Sua deliberada rebeldia.

Saul quer fazer as coisas a seu modo, do jeito que ele acha que deve fazer, da forma como entende que deve ser feito, e no tempo que acha propício. Ele não se importa com o que Deus diz, nem lhe interessa saber a vontade de Deus, ele faz as coisas a seu bel-prazer. Ele é “dono do seu nariz”, não quer prestar contas a ninguém, e não lhe interessa saber o que Deus quer. Na sua rebeldia, vai se afastando de Deus, perdendo a comunhão com o Pai.

Deus resolve castigar os amalequitas, pela sua postura cruel e arrogante. Quando o povo de Deus veio do Egito, eles não aceitaram que atravessasse seus domínios territoriais. Deus então dá agora uma ordem clara para que Israel não tivesse misericórdia daquele povo. Talvez Samuel já soubesse da índole de Saul, pois ao lhe dar a ordem, fala bem claro e diretamente: “Enviou-me o Senhor a ungir-te rei sobre o seu povo, sobre Israel; atenta, pois, agora, às palavras do Senhor”. ((1 Sm 15.1) Em outras palavras, Samuel o relembra do seu chamado, de sua vocação e diz. Atenta, pois, agora, às palavras do SENHOR”.

A ordem era clara e dura. “Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes”  (1 Sm 15.3) Nenhuma concessão deveria ser feita, nem animais poderiam ser trazidos como despojo. Saul, porém, toma alguns destes animais consigo, dando uma roupagem espiritualizada à sua rebeldia.

Sua desobediência é confrontada por Samuel. Mas como pecadores que somos, facilmente encontramos boas desculpas para nossas atitudes. Saul usa artifícios curiosos para justificar o que fez, ele emprega argumentos espirituais para negar seu pecado. Quando Samuel o encontra, ele tem um discurso bem religioso para se ocultar: “Bendito sejas tu do SENHOR; executei as palavras do SENHOR” (1 Sm 15.13). Então Samuel lhe pergunta: Que balidos, pois, de ovelhas é este nos meus ouvidos e o mugido de bois que ouço? (1 Sm 15.14). Saul, estrategicamente dá duas explicacões para o caso:

(a)    - “De Amaleque os trouxeram”– (1 Sm 15.15). Saul tenta dar a ideia de que ele não tem culpa na atitude que o povo tomou. Ele tenta dividir sua culpa, encontrar bodes expiatórios para se eximir sua responsabilidade. Transfere sua culpa para os outros.

(b)    O povo poupou o melhor das ovelhas e dos bois, para os sacrificar ao Senhor, teu Deus”. (1 Sm 15.15). Isto é, espiritualiza sua atitude. Tenta justificá-la com um argumento espiritual. Encontra um álibi na adoração. Ao fazer isto é como se ele tentasse dizer que, se Samuel fosse um pouquinho mais “espiritual”, entenderia sua atitude, afinal, iriam fazer um sacrifício a Deus.

O mesmo artifício é encontrado nos fariseus e também seria condenada por Jesus: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque devorais as casas das viúvas e, para justificar, fazeis longas orações; por isso, sofrereis juízo mais severo” (Mt 23.14)

Quais artifícios espirituais usamos para acobertar a desobediência e motivações rebeldes?

Um conhecido pastor brasileiro, querendo fazer uma campanha na igreja para um determinado projeto, depois de uma longa mensagem sobre fidelidade financeira e com profundo ardor missionário, resolve em meio a lágrimas, dar seu relógio de ouro, para que a igreja pudesse também responder à urgência do apelo. Naquela semana, outro pastor que estava participando do culto, vai visitá-lo, e, para sua surpresa, o vê com o mesmo relógio que ele oferecera como oferta para a obra. Confrontado, o pastor se defende dizendo: “Ora meu irmão, aquilo era apenas uma teatralização, uma forma de estimular as pessoas a contribuirem”.

A resposta de Samuel expressa o coração de Deus:
“Tem, porventura, o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como idolatria e culto a ídolos do lar. Visto que rejeitaste a palavra do Senhor, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei” (1 Sm 15.22-23).

Rebeldia é uma rejeição deliberada à Palavra de Deus. Não é apenas um escorregão moral, nem um acidente de percurso, mas uma clara decisão de ir contra aquilo que Deus diz. 

Um exemplo simples pode nos ajudar a entender isto:
Imagine um filho que, desastradamente, derruba um vaso caro de sua casa e o quebra. Você pode até ficar chateado, e até mesmo brigar com seu filho, mas o que aconteceu foi acidental. Não é resultado de desobediência. Portanto, não se trata de rebeldia. A Bíblia fala dos "pecados de ignorância". Estes pecados acontecem por desatenção, por desconhecimento, e apesar de serem falhas, não se tratam de uma rebelião contra Deus, ainda que seja pecado, porque "a ignorância da lei, não isenta o culpado". 

Imagine agora outro quadro: você dá uma ordem para seu filho e ele, entendeu o que você falou, mas decide, declaradamente, não obedecer. Neste caso, é rebeldia. Ele sabe o que você disse, mas ignora e afronta as ordens recebidas. Isto é rebeldia. Uma desobediência deliberada. 

Por isto a rebeldia é algo tão sério. É uma atitude intencional de não se submeter. Não é um descuido, nem um "escorregão", ou queda. O apóstolo Pedro fala dos homens que "deliberadamente esquecem" aquilo que é a realidade ou a verdade de Deus (2 Pe 3.15). É, portanto, algo, deliberado. 

Fazemos isto quando nos entregamos a paixões carnais e achamos que tais paixões são mais importantes que a obediência a Deus. Fazemos isto por causa da  obstinação, dureza do coração e resistência a Deus. Mas temos que nos lembrar que rebeldia não é algo sem implicações espirituais, antes é muito mais sério que imaginamos.

Para Deus, a rebelião, nossa decisão de irmos contra aquilo que ele diz “é como o pecado de feitiçaria, e a obstinação é como idolatria e culto a ídolos do lar”.

Pense sobre o que significa isto.
Quando pecamos deliberadamente, por rebeldia e obstinação (cabeça dura), isto é como pecado de feitiçaria.

O que é isto?
É como se você estivesse praticando vudú ou indo ao terreiro de umbanda para consultar um pai de santo, ou estivesse participando de uma sessão espírita, invocando mortos. O texto nos afirma ainda que “a obstinação é como idolatria e culto a ídolos do lar”. Como se você tivesse em sua casa uma imagem de um santo, e se curvasse diante dela. 

As comparações são muito sérias... pense nisto por um instante...

  1. Incapacidade de lidar com as penumbras de sua própria alma“Saul ficou muito irritado, com esse refrão e, aborrecido disse: "Atribuíram a Davi dezenas de milhares, mas a mim apenas milhares. O que mais lhe falta senão o reino? Daí em diante Saul olhava com inveja para Davi. No dia seguinte, um espírito maligno mandado por Deus apoderou-se de Saul e ele entrou em transe profético em sua casa, enquanto Davi tocava harpa, como costumava fazer. Saul estava com uma lança na mão” (1 Sm 18.8-10)

Outra sombra muito forte na vida de Saul, foi sua dificuldade de olhar honestamente para dentro de si mesmo, enxergar seu mal, assustar-se com ele e ser transformado. Saul prefere a via da negação, não a do auto confronto e da confissão. Ele não vê, ou faz de conta que não enxerga, quão doente estava seu coração.

Saul faz exatamente isto, ele não consegue lidar com a ira Deus recomenda. A ira é uma resposta imediata a uma frustração, e pode se transformar em algo pecaminoso ou não.

Por isto a Palavra de Deus recomenda: 
"Irai-vos e não pequeis. Não se ponha o sol sobre a vossa ira". (Ef 4.26). 
Portanto, é possível irar-se, sem pecar. Ficar irritado muitas vezes é um comportamento humano natural e impulsivo. O grande desafio, contudo, é não transformar a irritabilidade em uma ira pecaminosa. Como isto acontece? Quando ela se transforma em ressentimento, amargura, ou torna-se explosiva e violenta. Há o risco de nos adoecer, ou de adoecer os outros. Em ambos é pecaminosa.

Preste, portanto, atenção, no que o texto diz logo em seguida:
"Nem deis lugar ao diabo" (Ef 4.27).
Não é interessante ver como vs. 26, está ligado ao vs. 27?
Ira pode se transformar em uma brecha para a ação maligna. Por meio da ira, Satanás tem obtido muitas vitórias sobre a vida das pessoas, no mundo dos negócios, na família e nas igrejas. 
Nem é uma conjunção aditiva, isto é, ela complementa o texto anterior com o texto atual. O vs 26 se completa no vs. 27. 

Portanto, cuidado com sua ira.
Trate dela de forma confrontativa. Não brinque com sua ira. Ela é um portal imenso para ação maligna na nossa vida.

Saul não entendeu isto e não tratou a ira de forma adequada.
Quando a ira entrava em seu coração, ele não perguntava: Por que estou agindo assim? Antes permitia que ela fecundasse em seu íntimo. Num dia “ele se indignou muito” (1 Sm 18.8), e no dia seguinte, teve uma possessão maligna (1 Sm18.10).

Esta crise de raiva era o resultado de não saber como lidar com suas profundas sombras, e buscar cura. De um dia para outro a ira teve tempo de curtir, ao invés de buscar conselhos, já que sua alma atormentada vivia sempre desconfiando dos outros, e tentar ajuda. Saul abrigou a ira no seu coração ao invés de confrontá-la.

Muitos de nós corremos o mesmo risco. Vemos determinados sentimentos hediondos descendo para nossa alma. Deixamos a amargura penetrar em nossa alma, e ainda a alimentamos. Não nos ocorre confrontar nossa natureza pecaminosa e atitudes mesquinhas. Não gostamos de confrontação e nem de auto confrontação. Não queremos admitir a dura realidade de nossa natureza falida e buscar cura onde podemos encontrá-la.

Negar nossos erros é um grande perigo. Idolatramos a nós mesmos, O coroamento disto é o pecado religioso. As sutilezas de nossos corações, que vai sofisticando a maldade dos nossos  pecados, tornando-os mais complicados.Há muito pecado travestido de piedade e consagração. Religião é retroalimentada pelo pecado original- decidir fora de Deus.

Cruz, pecado, arrependimento e confissão são termos impopulares, evitamos ter que lidar com tais realidades, além do mais são termos que caíram de uso, a ordem hoje é saquear, reivindicar, decretar. Todas linguagens de poder, não linguagem de fraqueza.

A única forma de lidar com as sombras é a confissão sem rodeio, sem desculpas, o choro de uma alma que se vê perturbada mas entende que a obra de Cristo e o poder do Espírito são capazes de nos transforma, que “a graça nos educa” (Tt 2.14). Confissão transforma, desfaz a máscara, desmascara os artifícios frágeis e rompe o mito de Narciso que facilmente nos assedia. A cruz revela o estrago do pecado. Deus precisa mandar o filho para morrer em nosso lugar. Um ditado americano afirma que "sol é o melhor antisséptico". Portanto, deixe a luz do céu entrar nas suas trevas. Não deixe a vergonha e a culpa controlando e orientando a sua história.

Certo dia, depois de uma discussão com minha esposa, sai de casa, como sempre o faço pecaminosamente após tais situações, profundamente amargurado e desgostoso. No caminho, o Espírito de Deus me fez reviver a cena, e perceber que eu havia errado, que minha esposa estava certa, que não havia razão para eu estar irado. Como é difícil olhar para a alma e reconhecer, mesmo num incidente tão corriqueiro que estamos errados. Mais difícil ainda é voltar e dizer, errei, me perdoe! Minha ira não tem motivo algum, esta obstinação do meu coração faz parte da minha natureza pecaminosa e Deus precisa me curar.

A menos que entremos em contacto com nosso mal, que vejamos nosso ser carnal e decidamos trazê-lo para ser restaurado por Jesus, nada poderá ser feito. Quando não nos arrependemos de um pecado, não o confessamos, tendemos a nos tornarmos mais insensíveis, mais fechados e mais endurecidos.

Este é um grande perigo: ver o mal fora de nós mesmos. Sem tristeza de pecado não há alegria da salvação (Sl 32; Tg. 5.16).

Pecado não admitido, não confessado, gera doença, endurecimento. Confissão, se não curar doença, pelo menos cura hipocrisia Ela é sempre positiva, mas como Saul, preferimos negar nossa culpa, transferi-la, projetá-la. "O que endurece o seu coração jamais prosperará, mas o que confessa e deixa, alcançará misericórdia" (Pv 28.13,14). 

Jaqueline, uma mística da Idade média, certa vez afirmou: “No julgamento, Deus não precisa proferir juízo, as pessoas saberão diante de sua glória qual será seu destino. Confessar é antecipar o encontro e garantir a salvação. Confissão gera absolvição legal”.

Quando confesso o meu pecado, abro caminho para transformação, cura. Comunhão só é possível quando as máscaras caem. Na confissão eu me descubro pecador/salvo. O pecado original tenta divinizar o homem e humanizar Deus, a confissão nos traz de volta ao lugar onde sempre temos que ficar. Reconhecendo nossos limites bem como a imensurável graça de Deus.

Uma das leituras obrigatórias para conselheiros e líderes é um texto de Scott Peck, um psiquiatra cristão. Ele afirma:


“Uma característica predominante do comportamento das pessoas malignas é o bode expiatório, porque em seus corações eles se consideram acima da crítica. Sacrificam outros para preservar sua auto-imagem de perfeição. Uma vez que sentem-se impecáveis usam o mecanismo da projeção. Percebem os outros como maus, projetam o seu próprio mal no mundo. O mal ataca o outro ao invés de defrontar-se com suas próprias falhas...Existem pessoas que parecem destituídas de consciência ou superego. Os psiquiatras os denominam de psicopata ou sociopata (…) O mal tem origem não na ausência da culpa, mas no esforço em escapar dela...os malignos odeiam a luz, a luz da bondade que os revela, a luz do escrutínio que os expõe, a luz da verdade que penetra em sua decepção” [1]

Numa palestra sobre confissão Osmar Ludovico afirmou mais ou menos o seguinte:

“A desculpa é o anti-arrependimento. Assim, uma confissão mesclada com desculpa é uma confissão podre; e, quem perdoa alguém que apresentou desculpas, participa de uma farsa. O pedido de perdão é um “sacrifício” em que eu ofereço e imolo o objeto de minha culpa. Eu o descubro, eu o apresento, em todos os seus aspectos e ângulos (para minha vergonha) e o mato, na presença daquela pessoa a quem ele fez mal. Aceito o sacrifício pela pessoa ofendida, nós a enterramos para sempre!”.

Saul não buscou cura para seu comportamento repleto de patologias espirituais. A cura para nossos pecados, para nossa índole demoníaca, para os velhos hábitos tão duros de serem sepultados, é um reconhecimento profundo e dolorido, uma confissão aberta e franca. Só seremos restaurados se percebermos quão doente estamos e buscarmos redenção no sangue do Cordeiro. “No compartilhar de nossas fraquezas, encontramos graça”.[2] Porque Saul não entrava em contacto com as sombras terríveis de sua alma, não resolvia seus conflitos internos e sua alma explodia em raiva, ira e frustração.

Saul não lidou com as brechas da sua alma. Ele não lida com seus pecados de forma honesta e aberta. Ele sempre tenta mascarar os problemas que estão por detrás de sua vida. Prefere o silêncio, a amargura, que a busca de solução para sua alma perturbada. Isto vai gerando espaços na sua alma para que Satanás possa agir. Conflitos não resolvidos, pecados não perdoados, culpa não tratada, amargura infeccionada são quase sempre o pano de fundo para a ação do diabo na vida das pessoas. As manifestações satânicas que acontecem na vida de Saul sempre se deram depois de alguma notícia ruim que ficou mal resolvida.

Um destes exemplos é relatado quando Saul foi rejeitado por Deus por sua desobediência. Naquele dia, Samuel se afastou de Saul e “Nunca mais viu Samuel a Saul até ao dia da sua morte” (1 Sm 15.35).

Samuel é enviado à casa de Jessé, para ungir o futuro rei de Israel. Saul sabe que foi rejeitado por Samuel e isto certamente gerou no seu coração uma profunda ira contra Samuel, angústias na alma e certamente noites mal dormidas. Neste contexto de pressão pública, Saul entra num processo de “tormento espiritual” e o Espírito do Senhor se afasta dele (1 Sm 16.14). A situação se torna tão grave que sua “enfermidade” espiritual torna-se conhecida dos servos que sugerem encontrar alguém que saiba tocar, e chamam Davi para ser o instrumento de Deus para trazer alívio e graça àquele coração atormentado.

Saul torna-se presa de sua amargura, escravo de seu ressentimento. Desenvolve uma atitude de raiva contra a vida e suspeita contra todos. Não retorna ao Senhor para encontrar alento para seu aflito coração, antes passa a infernizar os outros que viviam ao seu redor. Saul se torna irreconhecível, literalmente ele está possesso, um espírito maligno, enviado de Deus, passa a atormentá-lo.[3]

Não é raro permitir que a alma entre num ciclo de amargura e raiva. A ira, quando não trabalhada é fatal para nosso equilíbrio interior.

Scott Peck afirma que “Ira é um elemento crítico em quase todas as desordens psiquiátricas comuns”. Gary Smilley afirma que “quando sepultamos a ira mal resolvida em nós, quase sempre a sepultamos viva. Então ela vem e destrói como ferrugem no carro, como fungos em roupas e livros encaixotados”.

A segunda vez que a Bíblia descreve Saul possesso, tem a ver com sua inveja mal resolvida.

Parte daquela inveja nasceu por causa da indiscrição dos seus liderados. Satanás sabe como um comentário sobre nossa performance pode nos fazer mal, como uma crítica pode nos destruir. O exército de Israel estava retornando de uma bem sucedida batalha, na qual os filisteus foram duramente derrotados. “…as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com tambores, com júbilo e com instrumentos de música. As mulheres se alegravam e, cantando alternadamente diziam: Saul feriu os seus milhares, Mas Davi, os seus dez milhares…” (1 Sm 18.6-7)

Esta indiscrição gera sentimentos muito ruins em seu coração. “Então, Saul se indignou muito, pois estas palavras lhe desagradaram em extremo; e disse: Dez milhares deram elas a Davi, e a mim somente milhares; na verdade, que lhe falta, senão o reino?” (1 Sm 18.8). A partir daquele dia, desenvolve uma atitude de inveja e hostilidade contra Davi, e no dia seguinte…”No dia seguinte, um espírito maligno, da parte de Deus, se apossou de Saul, que teve uma crise de raiva em casa; e davi, como nos outros dias, dedilhava a harpa; Saul, porém, trazia na mão uma lança que arrojou dizendo: Encravarei a Davi na parede. Porém Davi se desviou dele por duas vezes” (1 Sm 18.10-11). A música de Davi, que outrora era terapêutica, restauradora e inspirativa, torna-se agora uma fonte de raiva.
Satanás age em Saul, pelas brechas que seu coração vai deixando. Ele entra pela sua amargura, pela sua inveja, pelas provocações que vai recebendo. Ele não sabe como resolver toda esta ira enterrada viva no seu peito, como lidar com a perda de prestígio e reputação, com a “concorrência”, e entra num quadro patológico e destrutivo.

Quais são as brechas que temos deixado para Satanás em nossas vidas?
Pecados não confessados? 
Relacionamentos cheios de amargura e ressentimentos?
Ira sepultada viva nos destruindo como ferrugem no carro?

Satanás é um ser de sombras, de penumbras, que sabe usar bem as brechas que lhe damos para fazer estragos em nossa alma. Satanás entrou na vida de Saul pela brecha do ódio, da inveja, da amargura e da culpa.

  1. Inveja de quem Deus usa – “as mulheres de todas as cidades de Israel saíram ao encontro do rei Saul, cantando e dançando, com tambores, com júbilo e com instrumentos de música. As mulheres se alegravam e, cantando alternadamente diziam: Saul feriu os seus milhares, Mas Davi, os seus dez milhares…” (1 Sm 18.6-7)

Esta inveja, como mostramos anteriormente, foi acentuada pela indiscrição de sua comunidade. (1 Sm 18.7,8)

Muitas vezes o povo, ao fazer comparações, gera profundos danos no grupo de pastores e líderes de uma igreja local. Quando o líder é tendente à hipocondria e à depressão, como era o caso de Saul, isto traz conseqüências terríveis. O texto de 1 Sm. 18.12 diz que “Saul temia a Davi porque o Senhor era com ele”.

Que motivação terrível para um líder espiritual: Ter inveja do outro porque Deus o usa…

Saul resolve colocar Davi longe de si, sem entender que quando Deus quer promover e honrar a alguém, tal pessoa será bem sucedida onde estiver. O ódio de Saul vai aumentando tanto que ele negocia sua própria filha, instrumentalizando-a (1 Sm18.21). O texto revela que quanto mais Deus ama Davi, mais Saul o odeia, e Saul, “vendo o sucesso de Davi”, desenvolve um medo patológico dele (1 Sm 18.15). A sombra de Davi vai perseguindo Saul, como um fantasma.

Inveja, como afirmou certa vez Roberto Campos, é o mau hálito da alma. Ela penetra na alma da gente, e procura destruir o outro, que é objeto da inveja. Não deseja apenas possuir o que o outro tem, substitui-lo, tomar o seu lugar, mas deseja também acabar com o outro. Não basta estar no lugar do outro, ter o talento do outro, o outro também precisa ser exterminado. “O invejoso emagrece da gordura do outro”.[4] Dói mais no invejoso o sucesso do outro, do que o próprio fracasso.

No caso de Saul, os talentos, o potencial de liderança de Davi não puderam ser usados a seu favor, embora o fossem, ele precisava destruir Davi, e tentou fazer isto algumas vezes. “De todas as características comuns à natureza humana, a inveja é a mais lamentável. A pessoa invejosa não apenas deseja infligir infortúnios aos outros, como também o faz, sempre que pode agir impunemente, mas ela própria se torna infeliz devido à inveja”. [5]     

Obviamente nossa psiquê elabora meios mais sofisticados para destruir o outro.

Depreciar o que o outro faz, acentuar seus defeitos, revelar segredos (se o possuímos), trazer à tona coisas da intimidade, podem ser algumas das malignas estratégias A maledicência e a fofoca tornam-se meios profundamente sofisticados. Na igreja, assume até uma forma espiritualizada. Que tal se a gente revelar o pecado e as sombras do outro de uma forma piedosa numa reunião de oração, com voz impostada e humilde dizendo: “irmãos, o fulano de tal tem passado por várias dificuldades, não posso revelá-las naturalmente, mas precisamos orar por ele…” Isto gera grandes perguntas, açula a imaginação, levanta questionamentos no meio da comunidade. Pela inveja se destrói reputações, lança-se as sementes de desconfiança sobre o caráter e semeia-se dúvidas.

Na verdade, a inveja abriga no íntimo a admiração, ainda que mórbida, pelo outro. Kierkegaard.afirmou que “Inveja é a admiração oculta”. Ela revela o nosso desejo de ter o que pertence ao outro. “As qualidades que admiramos nos outros são geralmente as qualidades que nos faltam”. [6]

Saul várias tentou destruir Davi, acusando-o, levantando suspeitas, questionando suas atitudes.

No caso dos sacerdotes de Nobe (1 Sm 21), Saul sentindo-se traído, quis mostrar que Davi era um monstro e jogar a opinião pública contra ele. Várias vezes, tentou atrair a atenção de Jônatas, seu filho, mostrando-lhe que Davi iria tomar seu lugar, e que ele precisava romper com aquele relacionamento, colocar-se contra Davi. Formas sutis, mas igualmente prejudiciais.

O ministério tem sido um campo propício para a inveja. Pastores são muito avaliados em relação aos resultados que produzem. Embora sucesso não seja o indicador verdadeiro de aprovação por parte de Deus, se a igreja não está crescendo, começam a ser duramente criticados. Ademais, quem já ouviu falar de um pastor de uma igreja inexpressiva sendo convidado para falar em congressos e grandes conferências? O resultado disto é que não raramente é fácil desenvolver inveja pelo sucesso do outro.

Algum tempo atrás ouvi uma pergunta num debate, que, apesar de ser uma pergunta elementar, me fez pensar muito: “Quantos de nós oramos por avivamento nas igrejas que nos rodeiam?” Isto me chocou, porque minha experiência pessoal era que eu orava para que Deus mandasse avivamento e renovação para a minha igreja local. Na verdade, minha preocupação, quase sempre, não era o crescimento do reino de Deus, mas da minha comunidade. O que estava em jogo aqui, não era a glória de Deus, mas minha auto-promoção, o desejo de ser reconhecido, aprovado, de gozar de boa reputação junto aos nossos colegas de ministério.

O que fazer quando estamos orando por avivamento, e ele começa a surgir na comunidade ao lado, e o vento do Espírito ainda não sopra, com a intensidade que desejamos, em nossa comunidade? Será que nossa reação realmente vai ser de alegria, ou de preocupação?  Ai chega aquele irmãozinho piedoso, amigo seu no ministério e faz o seguinte comentário, quase inofensivo, mas que gera um sentimento terrível dentro de sua alma: “Pastor, viu como a igreja tal tem crescido? Precisamos trabalhar para que a nossa tamb’em cresça daquele jeito”.

Você sabe, que você tem feito o melhor, que tem dado de si, mas os resultados simplesmente não chegam da mesma forma. Aí você começa a comparar e julgar a estratégia de ministério do colega, a criticá-lo, etc., mas realmente alguma coisa negativa surge em nosso coração: “O que ele tem que eu não tenho?” ou, “estou fazendo alguma coisa errada?” ou ainda pior, “será que realmente Deus me quer no ministério?”A inveja pode penetrar por estes mecanismos e ser devastador para a alma, chegando ao ponto de você desejar o fracasso da igreja do irmão, afinal, miséria detesta solidão…

 “Quem desejar a felicidade humana, deve aumentar a admiração e diminuir a inveja. A única cura para inveja é a felicidade, e a dificuldade é que a própria inveja constitui  terrível obstáculo à felicidade”. A inveja é parte da expressão do sofrimento daqueles que caminham às cegas pela noite, talvez rumo a um melhor lugar de repouso, talvez apenas ao encontro da morte e da destruição. Para se afastar deste desespero, o homem deve alargar o coração, como alargou o espírito”. [7] 


  1. Sentimento persecutório“E ele lhes disse: "Ouçam, homens de Benjamim! Será que o filho de Jessé lhes dará a todos vocês terras e vinhas? Será que ele os fará todos comandantes de mil e comandantes de cem? É por isso que todos vocês têm conspirado contra mim? Ninguém me informa quando meu filho faz acordo com o filho de Jessé. Nenhum de vocês se preocupa comigo nem me avisa que meu filho incitou meu servo a ficar à minha espreita, como ele hoje faz". (1 Sm 22.7-8).


Outra acentuada sombra na alma de Saul foi o constante sentimento de que as pessoas o estavam perseguindo. É a famosa “teoria conspiratória” que leva a pessoa a crer que alguém está querendo destruí-lo, que existe um inimigo trabalhando contra.

Líderes que desenvolvem tal patologia, não conseguem confiar nos seus liderados e vivem constantemente numa caça às bruxas. Pessoas com tais sentimentos se isolam, porque vivem desconfiadas do que os outros podem estar fazendo contra elas. O grau pode variar, mas a essência é a mesma. Vivem fugindo das suas próprias sombras, encontrando suspeitos em cada esquina, nunca se sentem realmente amados, mas constantemente ameaçados.

Saul vivia com a sensação de que existia uma “conspiração” contra ele, que o levava a ver inimigos por toda parte. Via todos contra si. O resultado disto é que ele foi tomado por auto-comiseração, que o levou a tomar atitudes drásticas contra seus supostos inimigos.

Veja o caso de 1 Sm 22.13-16.

Saul recebe, por meio de um edomita chamado Doegue, a informação de que Nobe, o Deão da casa de profetas, uma espécie de seminário para treinamento de profetas, estava contra ele, porque dera objetos de uso particular daquele santuário para Davi, quando este estava fugindo do rei. Quando Saul ouviu isto, saiu imediatamente para confrontar o  sacerdote. Ora, Nobe não sabia de nada, nem sequer das brigas internas do palácio. Agiu por boa fé, quando Davi, o genro do rei pediu para que ele providenciasse comidas e uma espada por que estava numa missão secreta, Nobe prontamente acreditou nele e o supriu com aquilo que era necessário, acreditando que estava favorecendo o rei. Sua motivação foi extremamente bonita, embora Davi estivesse mentindo.

Quando Saul chega ouve as explanações de Nobe, dá um show de autocomiseração e de auto-piedade. Se faz de coitadinho, põe-se como vítima, “Ninguém há que se doa por mim” (1 Sm 22.8) e acusa seus liderados “não vos compadecestes de mim” (1 Sm 23.21). A teatralização dele é boçal, Saul caiu vitimado pelo seu narcisismo doentio. Ele sofria de uma doença que tem sido hoje chamada de “vitimismo”. Ele acreditava que todos os demais estavam contra ele.

Por causa disto Saul toma uma atitude fria e bárbara. Sentindo-se traído, pede para os seus guerreiros executem aqueles profetas. A cena é tão patética que, correndo o risco de serem disciplinados por sua rebelião, os soldados, acostumados a matar friamente, se recusam a matar aqueles homens de Deus, porque sabiam que aquilo era fruto da insanidade do rei. Só Doegue, um gentio, sem temor de Deus, conseguiu executar aquela tarefa tão louca, apesar dos insistentes apelos de Nobe para que Saul reconsiderasse sua atitude. Tudo em vão. Seu sentimento de que vivia sendo traído e perseguido foi maior que a capacidade de ter bom senso.

Já vi líderes assim. Ficam loucos! Isolam-se!
Nem sua igreja nem sua família o suporta. A insanidade vai aumentando com a passagem do tempo, tornando-se doentes e sós. Vivem acreditando honestamente que estão todos contra ele, não conseguem estabecer relacionamentos de intimidade, não conseguem se dar, sentem-se ameaçados e traidos. Saul vai morrer assim. Sua família vai percebendo que ele era louco, seus súditos percebem a mesma coisa, e ele vai morrendo aos poucos, até não suportar mais e dar fim à sua própria vida.

  1. Envolvimento com bruxaria e mediunidade Então Saul disse aos seus auxiliares: "Procurem uma mulher que invoca espíritos, para que eu a consulte". Eles disseram: "Existe uma em En-Dor". A tradução RA afirma: “Apontai-me uma mulher que seja médium”. (1 Sm 28.7).

Todas as sombras de Saul vão se avolumando até chegar nesta situação extrema. Saul vai procurar uma médium para se consultar com ela. Ele tentou os profetas, mas Deus se manteve silencioso. Procurou os sacerdotes através do Urim e Tumim, mas os céus continuavam fechados. Deus queria o arrependimento de Saul, mas ele não veio. A atitude de Saul foi mais ou menos a seguinte: Já que o Senhor não me fala, vou procurar as entidades... Elas me ouvirão! Que desastre!

Satanás é mestre do engano e da sutileza. Paulatinamente ele vai dilapidando valores existenciais e afastando Saul da presença de Deus. Saul vai permitindo que Satanás aos poucos entre em sua vida, até que ele se torna completamente emaranhado. O que se inicia com conflitos no seu mundo psicológico, torna-se posteriormente as brechas para a apostasia e satanismo.

Sempre me pergunto como é que alguém pode se apostatar da fé? Como é que uma pessoa que cresce no Evangelho, ouvindo a Palavra de Deus, posteriormente se envereda pelos descaminhos de uma seita satânica e pelo misticismo distanciado de Deus? Saul começa seu ministério com profundas experiências com Deus, e termina sua vida num centro espírita, consultando uma médium, tentando falar com mortos.

O texto de 1 Sm. 28 Revela a apostasia de Saul. Sua alma vai se tornando atemorizada, angustiada, sua frustração e ira se tornam cada vez mais acentuadas, Satanás vai penetrando na sua alma e ele não consegue encontrar uma forma de interromper as ações malignas que se desencadeiam nele. Talvez por que fosse arrogante demais para buscar socorro e ajuda sinceras.

Saul vai buscar orientação espiritual, junto à médium de En-Dor. Ele vai atrás da feitiçaria, que ele mesmo havia expulsado e banido de Israel.

Sua situação foi resolvida ao procurar uma médium? Isto mudou sua vida? Seu desespero e angústia foram resolvidos numa consulta às entidades espirituais? Não! pelo contrário. Três dias depois, ele não suportaria a vida e se suicidaria.

Todos estes processos foram mortais desembocando na atitude suicida e desesperadora de sua alma no final de sua vida. São atitudes que o levam a perda da dignidade, de Deus, e até mesmo do sentido e do valor da  vida, esvaziando sua capacidade de ser humano.

A prática da mediunidade é descrita aqui neste texto como o último degrau da apostasia de uma pessoa, é o último estágio da derrocada espiritual de alguém. Quando Saul tenta articular um encontro com o mundo do além via mediunidade, ele não resolve seu problema, antes o aprofunda. Sua alma é tomada de pânico pela experiência mística e falsa da qual participa. Samuel, que supostamente teria vindo, fala corretamente daquilo que todos já sabiam: Que seu reino havia sido tomado e que Davi assumiria o trono em seu lugar. Mas as profecias délficas e vagas que Satanás coloca na boca daquela mulher não se cumprem da forma que foram dita.

A suposta personagem descrita no texto com aparência de Samuel afirma que Saul estaria com ele no outro dia. “Amanhã, tu e teus filhos estareis comigo”. A morte de Saul se deu pelo menos três dias depois (1 Sm 31.1).

Em segundo lugar, afirma que todos os filhos de Saul morreriam com ele, mas nem todos os filhos de Saul morreram. Pelo menos dois continuaram vivos. Um assumiu o reinado em seu lugar, o outro, Mefibosete, que tinha um problema nos pés, receberia tratamento especial de Davi, quando este assumiu o reinado.

Outras questões hermenêuticas mais sérias vem a tona:

ü  Será que Deus, que não falara com Saul nem por sonhos, nem por profetas, nem por Urim e Tumim, iria se sentir pressionado por uma sessão espírita a falar com Saul, num método que ele próprio reprova?

ü  Será que Deus se sentiria pressionado a liberar o seu servo, Samuel, que estava no céu para vir comunicar com os vivos, por causa de uma poderosa sessão espírita?

ü  Será que Jesus se equivocara ao dizer, na parábola do rico e Lázaro, que nenhum outro método espiritual nos seria dado além da Lei e dos profetas, e que as pessoas que não crêem nas Escrituras não se deixaram persuadir “ainda que” viesse alguém depois de morto para lhes falar? (Lc 16)

Além do mais, a sessão mediúnica não ajudou psicologicamente a Saul, nem lhe trouxe qualquer contribuição existencial. Aquela experiência esotérica e maligna, trouxe-lhe ainda mais peso na alma, e ele cai prostrado. Entrou derrotado e saiu ainda pior.

O espiritismo não tem resposta para o coração cansado. Para aqueles que estão cansados e sobrecarregados existe um convite claro de Jesus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28)


Aquela visita à médium gera um resultado catastrófico na vida de Saul, que desiste de lutar e de viver. Não lhe trouxe arrependimento, nem o encorajou.

A Bíblia demonstra de forma clara em outros textos, e de forma implícita neste lugar, quão grave é, aos olhos do Senhor, esta tentação de contactar médiuns. Saul não morre como um herói, mas como fracassado. Lança-se sobre sua própria espada, depois de ter sido ferido, tirando a sua própria vida (1 Sm 31.4). A visita àquela sessão espírita foi letal para a alma de Saul, foi o golpe de morte que ele trouxe sobre si mesmo. Só mesmo um louco para fazer esta trajetória! Curiosamente isto se dá numa busca desenfreada por encontrar a Deus.

Ainda hoje, quem procura ver um sinal de Deus a qualquer preço, perde a Deus e sua própria alma.

Vivemos numa sociedade esotérica, fascinada pelo mágico e pelo sobrenatural. O grande apelo hoje não é o do secularismo, mas o misticismo. Religiões que atraem as pessoas hoje são aquelas que prometem articular o sagrado, fazendo-o visível, tangível. Na verdade esta é uma forma moderna de feitiçaria. Na feitiçaria, busca-se manipular o sagrado, colocando o sobrenatural a nosso favor. O shaman é aquele que consegue colocar as forças do universo para trabalhar debaixo de suas ordens. É aquele que domina o invisível. Esta obsessão é maligna, quer venha em forma de cristais, vidências, tarôs, macumbas, vudús, ou travestida de uma espiritualidade cristã. O grande desejo é de mostrar poder sobre o sobrenatural. De articular este mundo não perceptível. Ter o poder!

Pregadores carismáticos correm o mesmo risco.
O que conta não é a dependência, mas a capacidade de colocar o poder de Deus a nosso favor. Tudo é mágico. Controlamos as enfermidades, controlamos o diabo, controlamos a natureza. Venham para ver! Admirem o poder da feitiçaria eristã, da macumba evangélica.  O poder não é de Deus, antes do pregador poderoso!

Conclusão:

A vida de Saul nos revela que o que importa não é como você começa, mas sim como você termina. O que conta não é a velocidade que você imprime à sua liderança no início dela, mas se você vai chegar no batalhão de frente daqueles que correm. A Bíblia nos diz que “aquele que perseverar até o fim, será salvo”. Fidelidade só no começo da carreira não é suficiente. Há muito campo ainda para correr…Não desanimemos…

Nossa alma tem uma propensão para o mal e para o pecado. Não olhe o mal fora de você. Desde o início da civilização vemos Deus nos advertindo, como fez a Caim: "Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se procederes mal, eis que teu pecado será contra ti, e a ti cumpre dominá-lo (Gn 4.7). A luta contra o pecado é algo constante. Precisamos do Espírito Santo para nos dirigir e nos confrontar. Precisamos do sangue do Cordeiro para nos cobrir, precisamos da graça de Deus para gerar em nós arrependimento. 

O coração é inclinado para as trevas, para a rebeldia, para a inveja, para o distanciamento de Deus. Você é bem pior que você imagina (Jr 17.9). Entretanto, a graça de Deus trabalhando em nós, inclina nossa alma, nos transforma, nos faz desejar a luz, a fugir das trevas. A graça de Deus é bem maior que você imagina que seja.

Conclusão
Questões para discussão:

  1. Por que tão facilmente nossa relação se torna institucionalizada e não pessoal? Você já passou por situação semelhante? Gostaria de compartilhar com o grupo?

  1. Como você lida com a questão da popularidade? Você já passou (ou passa) por situação na qual você tem dificuldade de testemunhar sua fé por necessidade de aprovação pública?

  1. Você já fraquejou na fé por causa das circunstâncias? Alguém disse que “as pessoas são o passatempo das circunstâncias”. O que pensa disto?

  1. Qual é mais fácil: fazer um sacrifício pessoal ou admitir o erro?




Samuel Vieira - Medford, MA 04/05/98 14:49
Refeito, Anápolis, Outubro 2019




[1] . Peck.,Scott  - O povo da mentira, Rio, ed. Imago, 1992, pg. 85,89
[2] .Rubem Alves, O enigma da religião, pg. 118
[3] Conquanto não seja o foco central do tema ora desenvolvido, julguei ser interessante tentar trazer uma luz à possível questão que pode estar agora na sua mente: “Que significa esta idéia de que um espírito maligno, enviado de Deus, atormenta Saul?” (1 Sm 16.14-15). Talvez este texto possa ser respondido com outro enigmático texto paralelo descrito em 1 Rs 22. Micaías, um legítimo profeta de Iawé, vendo-se acuado pelos falsos profetas afirma: “Vi o Senhor assentado no seu trono, e todo o exército di céu estava junto à ele, à sua direita e à sua esquerda. Perguntou o Senhor: Quem enganará a Acabe, para que suba e caía em Ramote-Gileade? Uma dizia desta maneira, e outro, de outra. Então, saiu um espírito, e se apresentou diatne do Senhor, e disse: Eu o enganarei. Perguntou o Senhor. Com quê? Respondeu ele: Sairei e serei espírito mentiroso na boca de todos os seus profetas. Disse o Senhor: Tu o enganarás e ainda prevalecerás; sai e faze-o assim. Eis que o Senhor pôs o espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas e o Senhor falou o que é mau contra ti”.  (1 Rs 22.19-23). De onde saiu aquele espirito enganador e trapaceiro? De diante do Senhor. Saiu com permissão divina.
Existe na teologia bíblica do antigo Testamento, um conceito estranho da Assembléia dos deuses. (Sl 149.1). A tradução RA de almeida chama de “Assembléia dos santos”, mas o torno aqui é dos Elohins (deuses). Esta mesma idéia aparece no Sl 82.1 “Deus assiste na congregação divina; no meio dos deuses, estabelece o seu julgamento” Que significa esta “congregação divina”? Conceito semelhante surge no Sl 89.5 “…e, na assembléia dos santos, a tua fidelidade”. Bem como no verso seguinte, “Deus é sobremodo tremendo na assembléia dos santos” (Sl 89.7). Todos estes textos apontam para a idéia de que existe, na esfera celestial, um encontro entre anjos, potestades e o próprio Deus, uma verdadeira assembléia acontece ali. O livro de Jó, porém, de forma mais explícita, parece levantar a cortina para tentar revelar o que se passa por detrás dos bastidores da história. Deus submete Satanás a um pequeno interrogatório, quando este vem até à sua presença. “Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o Senhor, veio também Satanás entre eles” (Jó 1.6). Satanás não age sem “supervisão”  de Deus, ele não é um ser livre para agir.
Todas estas idéias parecem nos ajudar a entender este conceito de um “espírito maligno, vindo da parte de Deus”  que atormenta Saul. Vir da parte de Deus, significa que Deus houve uma permissão de Deus para que pudessem realizar sua tarefa sinistra.
[4] Horácio: Revista unitas, 1947, pg. 393

[5] Russel, Bertrand., A conquista da felicidade, pg. 80
[6] Hulme, William: Dinâmica da santificação, pg. 55
[7] . Russel, B. Op. Cit. pgs. 81. 89