As diferentes faces da traição
Introdução:
O
livro de Salmos é o mais lido de toda a bíblia. Sua forma literária é atraente,
atualizada, contemporânea e fácil de compreensão, mas acima de tudo, possui um
fator de muita atração: em todos os demais livros temos a sensação de que Deus
está falando conosco, mas neste, somos nós falando com Deus. Por isto alguns
definem este livro como psicoteológico, isto é, a teologia dele se imiscui com
as dores e angustias de nossa alma. Não é em vão que, dos 150 Salmos, 64 deles
são considerados salmos de lamentos: pessoas com dores na alma estão
desabafando diante de Deus.
Este
salmo pertence a classe dos salmos de lamento, contendo passagens de belezas
líricas e piedosa devoção, e de uma angústia avassaladora e desesperadora.
Salmo didático que tem como finalidade precípua o ensino, e é uma oração, como
podemos ver nos versículos iniciais. Ele foi escrito por Davi, num dos momentos
mais angustiantes de sua vida.
Absalão,
seu filho, nunca teve uma relação muito bonita com ele. Além de ser um príncipe
de uma beleza surreal, era também de uma ambição sem limites. Não sendo o
primogênito, restava-lhe pouca chance de assumir o trono, que era o seu desejo
claro. Acima de tudo isto, envolveu-se numa trama familiar profunda. Para
proteger sua irmã Tamar, ele matou o outro irmão, Amnon, sucessor imediato ao
trono.
Seu
carisma, beleza e ambição se tornaram uma obsessão para este jovem. Num golpe
de estado, conseguiu destronar seu próprio pai, expulsá-lo do trono e assumir a
direção de Israel, ainda que de forma muito passageira, já que logo em seguida,
numa batalha entre os insurgentes e o rei, ele foi executado de forma patética,
pendurado pelo cabelo nos ramos de um carvalho, enquanto fugia no meio da
guerra e foi executado pelos soldados de Davi.
Davi
escreveu este salmo justamente no meio de todo este tsunami. Era seu filho,
amado, quem o ameaçava de morte. Como lidar com a realidade quando somos
desapontados pelas pessoas mais inesperadas e apunhalados pelas costas por pessoas
de nossa confiança? O que fazer quando somos traídos?
O
salmo pode ser dividido em algumas partes:
- Sua oração e lamento
- O levantamento do problema
- Sua resposta emocional
- Sua resposta final e a busca de
soluções.
Orando...
Este
salmo é uma oração, não apenas o tipo de oração que normalmente fazemos. Sua
oração se transforma em súplica, que
é um tipo de oração acompanhado de muita emoção e angustia. Súplica é uma
oração feita com lágrimas. Quando nossa dor torna-se visceral.
Tenho
percebido que nem sempre nossa oração é assim... na maioria das vezes ela é
superficial e nunca assume uma dimensão de quebrantamento e dor. Muitos homens
na bíblia oraram desta forma. A oração de Jesus foi tão intensa que se tornou
em sangue.
Davi
está perplexo e perturbado, e por isto clama a Deus para que não se esconda de sua face. Já teve o
sentimento de que Deus “se escondeu” e não pode ser encontrado?
O problema...
Basta
uma leitura mais atenta do texto para vermos qual é o quadro emocional de Davi.
Cada uma das frases dele revela um pouco de sua angústia e condição emocional.
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Perplexidade
– (Vs. 2) Aquela atitude de quem põe a mão à boca de espanto. A perplexidade
brota quando os fatos se sucedem de uma forma e com uma rapidez jamais
esperados.
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Perturbação
(Vs. 2) A visão e a leitura da realidade tornam-se difíceis de serem
analisadas, por causa da falta de sossego de alma. Isto revela uma completa
desestrutura emocional.
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Acusações
constantes (Vs. 3) Davi sente debaixo de enormes pressões e calúnias. Já esteve
em ambientes de trabalho ou familiares onde este titpo de atitude está
presente?
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Hostilidade
profunda (Vs. 3) Davi afirma que estava sendo furiosamente hostilizado. Isto revela o nível de rejeição, desprezo
e críticas que estava recebendo.
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Taquicardia
– (Vs. 4) O seu coração parece bater de forma descoordenada. Ele se sente oprimido
e angustiado. O corpo todo responde a esta descarga de adrenalina e o coração
está batendo aceleradamente.
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Temor,
tremor e horror – Parecem ser a mesma coisa, o que muda é a intensidade. Já foi
tomado por uma sensação de horror? Um sequestro, um tiro, um acidente, sob a
ameaça de alguém? Estes terrores de morte de morte tomam conta de Davi, ele se sente
ameaçado.
O
que está causando esta perplexidade? No vs. 3 ele inicia a descrição do
problema que o angustiava, mas vai descrevê-lo de forma mais clara no vs. 12. Ele
estava sendo traído por alguém de sua confiança.
Psicólogos
estudaram o que causa mais stress nas pessoas, e chegaram a conclusão de que a
traição tem um poder mais destrutivo do que qualquer outra experiência, até
mesmo da morte de um ente querido. Quando o luto acontece, as pessoas são
capazes de explicar e aceitar com menos dor, justificando isto na perspectiva
da realidade da vida, fatalidade, ou vontade de Deus. A traição, contudo, traz
muita ira e ódio, por isto o stress se torna mais acentuado.
O
que aconteceu com Davi? De onde vinha a traição? Ele afirma que era de alguém
intimo:
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Companheiro
de jornada (Vs. 13). Por isto dói tanto. Não era alguém anônimo e desconhecido,
mas alguém do seu circulo de confiança.
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Íntimo
amigo (vs. 13) Quantos amigos íntimos você possui? Homens tem muita dificuldade
em encontrar amigos, e quando são ricos ou poderosos, aumenta ainda mais a
dificuldade de estabelecer intimidade.
·
Companheiro
de recreação (Vs 14) “Juntos andávamos, juntos
nos entretínhamos”. Com quem você gosta de brincar? Quando você quer fazer
um programa alternativo, que não seja nada sério, apenas para se divertir, quem
você chama? Em geral, pessoas que alegram o nosso coração. Com quem você joga
tênis, vídeo game, sequence, dominó
ou peteleco? Pessoas que você aprecia. Você pode andar e fazer projetos com
muitas pessoas que você não possui nenhuma identificação, mas para
entretenimento você quer alguém de sua intimidade.
·
Companheiro
de fé (Vs. 14) “juntos íamos à casa de
Deus”. Era uma pessoa religiosa, irmão na fé, que ia junto com Davi para fazer
orações, levar suas ofertas e adorar a Deus.
Reagindo...
Diante
desta realidade, Davi busca respostas. O que fazer? Ele encontrou três respostas:
Fugir...
Esta
é a primeira e imediata resposta que ele emite, e é desta forma que normalmente
reagimos. Quando somos traídos, massacrados, queremos imediatamente desaparecer
da situação e ambiente que nos oprime e sufoca. “Então, disse eu: quem me dera asas como de pomba! Voaria e fugiria para
longe e ficaria no deserto. Dar-me-ia pressa em abrigar-me do vendaval e da
procela” (Vs. 6-8). É a alternativa
do escapismo, mudar de lugar, sair da cidade, desaparecer, fugir para não sei
onde, tomar as asas de uma pomba. Quantas vezes não pensamos desta forma?
Alguns
anos atrás, uma pessoa conhecida desapareceu. Quando estas coisas acontecem
sempre pensamos o pior: Um sequestro, um latrocínio, uma ocultação de cadáver.
Amigos se mobilizaram nas redes sociais, comunidades inteiras se mobilizaram
para orar por sua vida e pela família que se encontrava desesperada. Depois de
alguns dias, com a policia fazendo investigações o descobriram escondido no
interior de um estado do Nordeste. Ele havia “surtado”, pegou um ônibus
interestadual e só depois de algum tempo a policia descobriu sua pista. Quando
ouvi sua história, no meio de toda perplexidade comentei com algumas pessoas
mais intimas que entendia perfeitamente a tresloucada atitude deste jovem
embora não o justificasse. Quantas vezes pensamos em desaparecer?
Davi
fala em ir para o deserto, virar um passarinho, desaparecer. Ele diz que queria
se abrigar das fortes tempestades, do vendaval e da procela, das condições tão
doloridas que ele agora enfrenta. Diante de grande pressão, muitos entram num
estado catatônico (fuga da realidade). A dor torna-se tão traumática que não
conseguem enfrentá-la de forma madura.
Matar...
Parece
muito estranho encontrar esta alternativa na bíblia, mas curiosamente os salmos
estão repletos de sentimentos de raiva. São os chamados “salmos imprecatórios”,
isto é, com imprecações e desejos de que o inimigo morra, que sejam destruídos.
Alguns destes salmos chegam a nos espantar. Davi fala aqui do seu desejo de que
os inimigos morressem, e que “vivos
desçam à cova” (Vs 15). Não apenas que morressem, mas que fossem sepultados
vivos, com requintes de crueldade. Algumas pessoas que apoiaram Absalão no seu
complô eram seus conselheiros que mudaram politicamente de lado e que agora
conspiravam contra ele.
Davi
revela este lado humano, a ira tantas vezes presente diante da agressão
sofrida. Ele gostaria de ver estes homens mortos. Muitas vezes pensamos em
matar, destruir. São pessoas que quebram os pactos, gente de língua mentirosa,
com “boca mais macia que a manteiga, mas
com o coração cheio de guerra“ (Vs 21).
Já
vi muita gente boa, integra e justa, à beira de um desatino por causa do
sofrimento e traicao. No meu primeiro ano de ministério, tive que intervir num
caso de um rapaz que engravidou uma adolescente na cidade de Formoso-GO, e cujo
pai, que eu conhecia superficialmente, planejava matar aquele rapaz. Ele era um
homem justo e bom, mas vendo a situação de sua filha e sentindo-se desonrado,
decidiu que iria matar o rapaz. Felizmente pudemos conversar, ele admitiu seu
ódio e sua ira, mas decidiu mudar de cidade e não cometer o crime.
Até
a oração de Davi se torna agressiva. (Vs 9). Vemos o mesmo sentimento no
coração do povo de Deus, escravizado na Babilônia e engolindo seco, a agressão
sofrida. “Feliz aquele que pegar teus
filhos e esmagá-los contra a pedra” (Sl 137.9). Sem dúvida alguma, não é o
tipo de oração a se fazer em um culto público. Não é interessante pensar porque
Deus permitiu que este texto tão agressivo se encontre inserida nas “sagradas
escrituras?”. Embora tão forte, não é assim que muitos já se sentiram? Com
vontade de matar e destruir àqueles que lhe fizeram mal?
Orar...
Esta
é a última alternativa do Salmista. Ele sente que precisa orar e derramar sua
alma diante de Deus. A situação é tão pesada e angustiante que o único lugar
onde ele pode ir com segurança é na presença de Deus. Fugir parece ser uma
alternativa muito propicia, mas mesmo mudando de ar, não mudamos de mente. Os
problemas sempre nos acompanham... matar e destruir, pode parecer uma saída
honrosa, mas “a ira do homem não produz justiça divina”. Pessoas que optam pelo
ódio não resolvem a dor do seu coração.
O
Salmista agora decide invocar o Senhor. “Eu,
porém, invocarei a Deus, e o Senhor me salvará. À tarde, pela manhã e ao meio
dia, farei as minhas queixas e lamentarei; e ele ouvirá a minha voz” (Vs.
16). Existe um antigo cântico americano que diz: “Where should I GO but to the Lord?” (Para onde devo ir, a não ser
para o Senhor?)
Davi
decide orar de forma intensa: De manhã, à tarde, ao meio dia. Ele sabe da
natureza do seu problema e da intensidade de sua dor. Então decide ir para a
presença de Deus, colocar o joelho em terra, clamar ao Senhor.
Sua
oração tem alguns pressupostos:
(a)- Deus ouve... - Diz isto em dois
versículos: (Vs 17,19). Ninguém pode orar sem esta consciência. A Bíblia diz
que “é necessário que aqueles que invocam a Deus creia que Ele existe e é
galardoador daqueles que o buscam”. Davi tem a convicção de que Deus o ouvirá.
Como é importante e maravilhoso orar com esta certeza no coração.
(b)- Deus é Justo... “Os homens fraudulentos e
sanguinários não ficarão sem julgamento” (Vs 23). Ele não precisa fazer
justiça com suas mãos nem derramar sangue de outra pessoa, pois Deus fará vingança,
ele julgará com equidade.
(c)- Existem muitas pessoas precisando dar respostas adequadas... Por isto, fala aos seus amigos: “Confia os teus
cuidados ao Senhor, e ele te susterá; jamais permitiria que o justo seja
abalado”(Vs 22). É interessante notar que neste versículo ele não fala mais
na primeira pessoa do singular, mas usa uma forma imperativa, aconselhando
àqueles que viram a sua dor, a responderem corretamente a traição. Isto revela
que Davi já descobriu o segredo para este enfrentamento: “Confia os teus cuidados ao Senhor”. Só pode aconselhar quem já
experimentou o amor e cuidado de Deus diante das ameaças e dos homens maus..
Conclusão
Este
texto é autobiográfico. Davi, inspirado pelo Espírito de Deus, narra toda sua
luta diante da traição e da maldade de pessoas falsas e perversas. Ele descreve
como se sentiu. Não é assim também conosco? Vontade de sumir, desaparecer,
matar, cometer uma sandice? No entanto, o caminho melhor, e o único caminho, é
a presença de Deus. “Deus é nosso refúgio
e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações”.
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