terça-feira, 12 de outubro de 2021

I Pe 1.1-2 O Escopo da Salvação

 


 


 

 

 

Introdução

 

No primeiro período da década de 60 A.D., os cristãos foram perseguidos duramente em Roma. O Imperador naqueles dias era Nero. Pedro e Paulo perderam suas vidas durante o seu império. O Apóstolo Pedro, percebendo que as coisas iam de mal a pior, escreveu esta carta de instrução e encorajamento ãos cristãos espalhados pelo Império Romano. Os cristãos estavam sendo perseguidos. Muitas acusações surgiram contra eles:

·       Os cristãos foram acusados de antropófagos, pois diziam comer o sangue  e a carne de um certo Jesus

·       Os cristãos foram acusados de praticar incesto – casavam-se com suas irmãs.

·       Foram taxados de revolucionários e rebeldes, pois não se curvavam diante dos deuses pagãos.

·       Nero detestava os cristãos. Outros imperadores também os perseguiram. Pedro escreve esta carta para fortalecer os irmãos.

 

Três razões da perseguição:

 

                             a)- Recusa em adorar os ídolos – Os deuses romanos eram políticos. Rejeitar adorá-los tinha conotação de insubmissão e falta de patriotismo.

 

                             b)- Crítica aos jogos violentos – Os cristãos se opunham as jogos praticados.

 

                             c)- Recusa em se curvar diante do Imperador – Só Deus merece adoração.

 

Este texto nos mostra a Trindade operando em nossas vidas. Para aqueles que não creem na Trindade, este é um dos textos que coloca as três pessoas juntas. Na verdade A Bíblia nos fala de um Deus diferente dos outros deuses, este Deus é um Deus que comunga, traz-nos o modelo de como viver em unidade. Na linguagem de Boff, “A trindade é a melhor comunidade”. Este texto nos fala da participação da Trindade na salvação e santificação do Povo de Deus.

 

Neste texto, a função da Trindade é bem definida. A Bíblia nos mostra como cada uma destas pessoas da Trindade, tem papeis específicos:

 

1.     A obra do Pai

 

a.     Ele nos escolheu segundo sua presciência – “Eleitos segundo a presciência de Deus.” (1 Pe 1.2)

 

Presciência não é predição. Deus não prevê a fé do homem, antes cria fé no homem. Deus não é um mero expectador que aguarda o passo do homem e decide baseado na decisão que o homem assume. A verdade de Deus não depende da capacidade do homem de conciliar na sua mente aquilo que ele não concorda. O cristão não é importante porque ele se considera assim, mas porque Deus o considera assim.

 

Assim diz a Palavra:

Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie.” (Ef 2.8-9). Ninguém poderá se vangloriar diante de Deus por causa de sua justiça pessoal ou por causa de sua performance espiritual ou moral. Somos salvos pela graça. Se é de graça não provém de mérito; se não provém de mérito, é gratuito.

 

Uma das experiências mais difíceis da minha vida se deu quando pastoreava uma grande igreja do Brasil, e fui chamado por um diácono da igreja para acompanhá-lo no aeroporto, porque seu irmão, adotara um filho e ao fazer os exames descobriu que ele era HIV Positivo, ele tinha AIDS. Eles eram pessoas que tinham muita posse, tanto que contrataram um avião particular para virem de sua cidade do interior para trazer aquela criança que havia sido adotada num hospital de Brasília. Chorando a devolveram dizendo que não tinham estrutura emocional para ficar com ela por causa de sua doença. Não conseguiram adotar o filho por causa de sua condição física.

 

Que contraste do amor de Deus para conosco. Deus escolheu nos amar, não porque tivéssemos algo para lhe oferecer, ou porque éramos saudáveis, mas ele nos escolheu sabendo que somos realmente enfermos, e mesmo assim, apesar de nossas doenças, nos chamou para um relacionamento de amor.

 

A Palavra de Deus afirma:

Não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo.” (Tt 3.5)

b.     Ele escolheu nos redimir como filhos, pela sua graça livre e soberana.

 

A Eleição divina não é constrangida por qualquer coisa, nem está condicionada à performance. Ela é baseada apenas na livre escolha de Deus e na sua soberana graça. Deus nos fez seu povo especial, apesar de não termos nada especial em nós mesmos.

 

Assim lemos no Antigo Testamento:

Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu porque fôsseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o Senhor vos amava e, para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o Senhor vos tirou com mão poderosa e vos resgatou da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito.” (Dt 7.7-9)

 

E mais adiante encontramos:

“Quando, pois, o Senhor, teu Deus, os tiver lançado de diante de ti, não digas no teu coração: Por causa da minha justiça é que o Senhor me trouxe a esta terra para a possuir, porque, pela maldade destas gerações, é que o Senhor as lança de diante de ti. Não é por causa da tua justiça, nem pela retitude do teu coração que entras a possuir a sua terra.” (Dt 9.4-5)

Deus escolheu o povo de Israel apesar de que não tinham nada a oferecer a Deus. Sua eleição está baseada no seu amor livre e soberano. Israel foi escolhido sem ter qualquer credencial (Is. 43:20-21) assim como escolheu a Igreja para revelar nela o seu amor (Gl.6:16).Eleição, antes de mais nada demonstra o profundo afeto de Deus por seu povo, e como Deus o considera especial.

 

Aqueles cristãos forasteiros estavam sendo perseguidos por causa de sua fé em Cristo. ao serem dispersos, perderam tudo o que tinham: Bens, posses, identidade, família, suas casas muitas vezes eram queimadas ou ocupadas pelos perseguidores, e eles tinham que fugir para se proteger e proteger sua família e a situação era dramática. Mas agora estavam ouvindo uma declaração profunda de Deus sobre sua realidade espiritual. Eles eram eleitos e especiais em Cristo.

 

Por isto, é importante pensar na expressão inicial de Pedro a estes irmãos, quando diz que eram os “eleitos, que são forasteiros da dispersão no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1 Pe 1.3) Eles haviam se dispersado por várias regiões, deixando sua herança histórica e familiar.

 

Estas declarações são aparentemente contraditórias: Como poderiam ser amados e especiais para Deus quando o cenário de suas vidas e as circunstâncias eram tão adversas? Como entender a bondade de Deus quando o mundo desmoronava, sendo espoliados, acusados e perseguidos?

 

A convicção de quem somos em Deus, nossa identidade em Cristo, é uma das coisas mais preciosas que podemos experimentar. Na verdade, a única coisa que pode nos sustentar em épocas de crises são as convicções pessoais, que temos. Pedro queria que aqueles irmãos entendessem como Deus os via e aquela era a base da sustentação de suas vidas naqueles dias de caos. Quando nossa realidade é dura, a única coisa que pode dar segurança são as profundas convicções de amor que recebemos de Deus.

 

O que pode nos trazer esperança em meio ao caos? Dar sentido diante da instabilidade das coisas?  Nosso mundo exterior pode se manter em pé, mesmo diante das catástrofes, quando o nosso mundo interior está resolvido. O problema não é o que acontece do lado de fora, e sim o que está acontecendo dentro de nós.

 

Veja o que nos acontece quando entendemos que somos filhos amados de Deus:

 

O primeiro sintoma é o da paz e da alegria. Descobrimos uma segurança crescente de que Deus é realmente meu amado Pai celestial, como afirma a Bíblia: “E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele.” (1 Jo 4.16). Quando realmente compreendemos isto, não nos sentimos amedrontados. Não precisamos buscar satisfação em outras coisas além de Jesus, nem nos firmamos em nossos ídolos, como dinheiro, posição ou posses.

 

Um dos maiores problemas de nossa alma é o senso de inadequação e rejeição. A eleição divina livra-nos do senso de reprovação. Deus nos ama apesar do histórico que possuímos, ou do background e do meu currículo. Deus resolveu revelar em mim a sua graça e me restaurar. A pessoa que experimenta o amor de Deus, sente-se aceita, perdoada e totalmente  acolhida porque reconhece que os méritos de Cristo o cobrem realmente. Está confiado em Cristo e encorajado nEle. Porque o Espírito Santo está trabalhando.

 

Foi isto que aqueles irmãos ouviram do apóstolo Pedro: Eles eram forasteiros, mas eram também eleitos. O caos exterior era enfrentado com um profundo significado interior que apenas Deus pode dar.

 

2.     A Obra do Espírito: Ele aplica as verdades de Deus em nossa vida.

 

Depois de falar da obra do Pai, o apóstolo Pedro fala da obra do Espírito. Este Espírito, dado a nós por Jesus, realiza a grande função de inclinar nosso coração para a santificação. “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência” (1 Pe 1.2).

 

Sua ação é silenciosa, mas poderosa e eficaz. O Espírito Santo é uma força ativa, que age em nosso coração. Jesus afirma que é como o vento. “O vento sopra aonde quer, ouves a sua voz, mas Não sabes de onde vem nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito”.(Jo 3.8) Aliás, a Bíblia define o Espírito Santo como um vento, um impulso. No Velho Testamento, ele é chamado de “ruah”, No Novo Testamento, de “pneuma”, e nas duas línguas a tradução mais simples seria, vento, força, sopro.

 

Esta força do Espírito de Deus é que nos impulsiona a santidade, e nos leva a querer e a desejar coisas que nosso coração normalmente não deseja. Este Espírito é Santificador. Ele leva o povo de Deus a ter horror ao pecado e prazer nas coisas de Deus. O Apóstolo Pedro afirma que “fomos eleitos…em santificação do Espírito, para a obediência” (1 Pe 1.2). Isto é, quando Deus nos elege, sabedor de nossa inclinação para nos distanciarmos dele, ele nos envia o Espírito Santo para inclinar nossa vida em direção ele. Sua obra em nós gera santificação. Por isto é certo afirmar que aqueles que dizem conhecer a Deus, mas se inclinam deliberadamente para o pecado, não estão sendo conduzidos e impulsionados pelo Espírito.

 

A. Deus opera em nós santidade - Tanto no Antigo Testamento, quanto no Novo Testamento, a obra da salvação, e da santificação, é efetuada pelo mover do Espírito. No Antigo Testamento Deus afirma “Eu sou o Senhor que vos santifico.” (Ez 37.28).

 

Santificação é uma obra de Deus em nós. A eleição que o Pai efetua, desencadeia uma disposição interior, uma inclinação para seu Espírito. Por isto fomos eleitos em Santificação. Deus não apenas nos convida para sermos santos. “Sede santos porque eu sou Santo” (1 Pe 1.16), mas ele dá condições para que a vida de santidade se revele em nós pelo mover do seu Espírito. Santificação e a vida de Deus em nós. Seu Espírito nos conduz à obediência genuína e ao cumprimento da vontade de Deus.

 

B. Deus nos convida à santidade. No item anterior observamos como o Espírito cria em nós desejo de santidade. Onde as pessoas estiverem vivendo vida santa, isto é resultado da operosidade do Espírito Santo: “Deus é quem efetua em vós, tanto o querer como o realizar.” Fp 2.13).

 

Não apenas a capacitação para efetuar a obra de Deus (O realizar), mas até mesmo a vontade (o querer), ambos são gerados pela ação do Espírito Santo.

 

Mas, ao mesmo tempo que vemos a declaração de que é Deus quem opera em nós a vida de temor e de pureza, observamos também que ele nos ordena desenvolver vida de santidade. Portanto, esta santificação, também chamada de “santificação progressiva”, tem uma ação dupla: Deus faz em nós, e nós devemos buscar a santidade. “Desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor” (Fp. 2.12).

 

Temos aqui a obra de Deus, e a ação humana. Muitas vezes, quando nos sentimos incrédulos, fracos espiritualmente, deveríamos dizer honestamente a Deus: Senhor, meu coração tem se inclinado para o pecado, mas gostaria de lhe pedir que me enviasse o seu Espírito para que minha natureza voltasse para o Senhor. Não tenho desejado ler a Bíblia, tenho amado o pecado, mas opera em mim para que eu viva para ti.

 

Um interessante artigo me veio à mão com cinco perguntas sobre santificação e achei extremamente interessante:

 

q  Adoração – Você está vivendo uma vida que agrada a Deus?

q  Evangelismo – Estou compartilhando de Jesus a outras pessoas?

q  Crescimento espiritual – Estou crescendo diariamente como cristão?

q  Relacionamentos – Que relacionamento preciso reparar na minha vida pessoal e na igreja para glorificar a Deus?

q  Ministério – Como estou suportando a visão do meu pastor e da minha igreja?

 

Talvez estas questões devessem merecer mais atenção do nosso coração nestes dias.

 

3.     A obra do Filho

 

Em terceiro lugar, vem a obra do Filho: “...para obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo, graça e paz vos sejam multiplicadas”. (1 Pe 1.2)

 

No Pacto da Redenção,  o sangue de Cristo exerce um papel fundamental. Na Teologia e cristã, em toda Bíblia, o sangue ocupa um lugar central. Vemos sangue aspergido por todos os lados.

 

No Antigo Testamento temos as narrativas sobre sacrifícios e holocaustos. O altar está encharcado de sangue. O derramamento do sangue de bois e bodes, ocupa um lugar central no culto judaico, prefigurando ou tipificando a obra expiatória de Jesus. O autor da Carta aos hebreus afirma que “Com efeito, quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e, sem derramamento de sangue não há remissão de pecados” (Hb 9.22).

 

No sangue de Cristo somos curados. O Povo de Deus deve aprender a clamar o sangue de Jesus, não apenas como um jargão pentecostal, mas como uma verdade bíblica essencial para nossa vida. Não é importante que o sangue apenas que tenha sido derramado, mas que ele seja aplicado pelo Espírito. Todas as coisas são planejadas pelo Pai e realizadas por Cristo. Jesus é o mediador das bencãos de Deus.

 

Deus planeja, o Filho executa, o Espírito Santo aplica.

 

Deus planejou o sacrifício, Jesus obediente e livremente aceitou o encargo de satisfazer a justiça divina, morrendo pelos pecadores na cruz, e pagando a dívida de nossa culpa. Assim também o sangue tinha um lugar especial na teologia do Antigo Testamento (Ex 24.7-8) Deus realiza sua obra definitiva em Cristo. “Assim também, Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação (Hb 9.28).

 

 

O ponto forte da epístola (v.2b)

 

Para concluir esta Introdução, o apóstolo Pedro fala de duas realidades existenciais extremamente significativas: “Graça e paz, vos sejam multiplicadas.” (1 Pe 1.2) O que pode ser mais importante para nós do que estarmos debaixo da graça e experimentando a paz que vem de Deus?

 

Pedro faz questão de frisar isto. Porque Deus vos elegeu, vocês podem viver debaixo de sua graça e de sua paz, experimentando estas realidades de forma ampliada.

 

A.    Graça multiplicada para problemas monumentais – Deus não dá muito, nem dá muito tarde. Dá tudo que precisamos e no tempo certo. Isto é graça! 

 

Aqueles irmãos estavam debaixo de forte ameaça, mas estavam seguros na providência divina e no seu cuidado. A graça de Deus estava sobre eles e os assistia. Eles precisavam daquela graça para viver, assim como nós precisamos ser alimentados e protegidos por esta graça, que nos aceita incondicionalmente, que nos restaura, e nos chama a viver de acordo com sua vocação.

 

B.     Paz multiplicada em situações desesperadoras –  Muitas vezes somos atirados por circunstâncias que parecem nos engolir e nos devorar, mas Deus sempre vai cuidar do seu povo, com o seu eterno amor. Sua paz há de se revelar no meio do torvelinho, no furor do furacão. Deus há de nos enviar o seu cuidado para que não desfaleçamos.

 

Só podemos experimentar tais realidades, quando compreendemos os recursos espirituais que temos a nossa disposição.

 

Charles Swindol, no seu livro, “vivendo acima da mediocridade”, conta a história de um garoto que participava de um time de futebol e era extremamente displicente e preguiçoso. Apesar de todos os esforços dos companheiros e do treinador, sua disposição para com o time era mínima. Um dia, o técnico recebeu uma informação de que o pai do garoto falecera, e o técnico pensou que agora, mais do que nunca ele se tornaria um problema no time. Na semana seguinte, o time tinha um jogo importante, e para surpresa do grupo, o garoto apareceu por lá. Durante o jogo, no qual o time ia muito mal, ele insistia com o técnico para poder jogar. O técnico temia em colocá-lo no time, porque na verdade ele nunca fizera nada para fortalecer o grupo, mas diante da insistência dele e considerando seu sofrimento, o técnico o colocou por alguns minutos, e aquele garoto jogou como nunca, esforçou-se, impulsionou o time, fez gols, defendeu, atacou. No final do jogo, o técnico surpreso vai conversar com ele e lhe pergunta:

 

‘”Por que você nunca jogou assim antes?”

 

E o garoto respondeu:

 

“Meu Pai era cego, e nunca poderia me ver jogando, agora que ele morreu, eu sei que ele pode me ver, e por isto me esforcei para que ele ficasse orgulhoso de mim”.

 

Apesar de podermos questionar a teologia desta ilustração, ela nos faz entender quão importante é sabermos da importância que somos para Deus, a ponto dele nos eleger, enviar seu filho e morrer por nós, e o seu Espírito para nos impulsionar a uma vida de santidade.

 

Que Deus nos abençoe!

 

Samuel Vieira

 

 

Samuel Vieira

Cambridge, MA – Agosto 02

Anápolis, Outubro 2021

 

 

domingo, 10 de outubro de 2021

Ex 2.1-10 A Subversão divina

 



 

 

Introdução

 

 

A história segue um plano divino e um cronograma divino, e ninguém pode impedir que os planos divinos se cumpram. No livro de Daniel lemos: “O céu domina”. (Dn 4.26) Na carta aos Romanos está escrito: “Os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Rm 11.29).

 

Então, os homens fazem a vontade de Deus de duas formas:

 

(a)-Em obediência, submetendo-se a Deus de forma voluntária como fez Isaias: “Eis-me aqui, envia-me a mim” (Is 6.8), e Maria: “Aqui está a serva do Senhor; que se cumpra em mim conforme a tua palavra” (Lc 1.38)

 

(b)- Involuntariamente – A Bíblia afirma que “O Senhor fez todas as coisas para determinados fins e até o perverso para o dia da calamidade” (Pv 16.4). As Escrituras Sagradas relatam que o povo de Deus estava sendo perseguido, mas os cristãos sabiam que não estavam nas mãos dos opositores, mas sob o controle de Deus, nada do que estava acontecendo era alheio ao plano divino.

 

Levantaram-se os reis da terra, e as autoridades ajuntaram-se à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido; porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram.”

(At 4.26-28)

 

Eles entendiam que o caos e a perseguição não estavam fora do controle divino. Apesar da perseguição, eles estavam fazendo “tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram.” Afinal, o Deus que determina os fins, também determina os meios.

 

Esta é a subversão divina.

Os homens pensam que tem o controle de todas as coisas, mas na verdade, quem tem o controle é Deus. A história de Moisés, seu nascimento nos atribulados dias em que o povo de Deus estava oprimido pelo Egito, a forma como foi levado ao palácio e depois ao deserto, tudo estava dentro dos planos divinos. A história de Moisés mostra como a subversão divina acontece.

 

Primeiro, Deus transforma riscos reais em rotas de libertação.

 

O menino Moisés estava sentenciado à morte. Ele nasceu debaixo de um duro decreto de Faraó de que todas as crianças do sexo masculino que nascesse dos hebreus deveria morrer. Sua mãe Joquebede, ficou grávida, e ao nascer seu querido filho, ela não tinha como escondê-lo por muito tempo.

Então, ela bolou um plano arriscado: colocar seu filho num berço calafetado de betume, e levá-lo ao rio Nilo, que atravessava a cidade, na esperança de que alguma alma caridosa o pudesse acolher. Os riscos eram grandes: Uma onda do rio poderia encher o cesto de água, a proteção do berço poderia ter um vazamento e afundar, se ninguém o encontrasse rapidamente ele morreria de fome ou sede, os soldados poderiam encontrá-lo e executá-lo... Tudo era arriscado, mas na verdade, este mirabolante e estranho plano, esta rota arriscada, era o caminho de Deus para levar aquela criança ao palácio para receber a melhor instrução possível e mais tarde liderasse o seu povo para a liberdade, guiando-o pelo deserto.

 

Deus estava executando seu plano. Nada deste assustador incidente é coincidência ou acaso. Deus está no controle. Este é seu poder subversivo.

 

O mesmo aconteceu com José.

Toda maldade, injustiça e crueldade ao ser vendido como escravo pelos seus próprios irmãos, era o plano de Deus para levar José ao palácio. Os amalequitas o compraram, ele é submetido a uma humilhante condição de escravo, mas este caminho se torna o meio de Deus para executar seu plano na história.

 

Será que conseguimos ver Deus em nossa história, nos dirigindo por estradas impensadas, às vezes dolorida? Temos sido capazes de ver este poder de Deus em transformar as rotas de risco em caminhos de libertação?

 

A subversão divina é claramente percebida por Maria, no seu cântico, magnificat:

 

“Derribou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes.

Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos.”

(Lc 1.52,53)

 

Paulo percebe como Deus age estrategicamente para estabelecer seus planos:

 

Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são.”

(1 Co 1.26-28)

 

Deus transforma riscos reais em rotas de libertação. Grandes perdas podem se transformar em bençãos. Ameaças podem ser meios de libertação.

 

Segundo, Deus transforma ambientes de morte em manifestações da vida.

 

Não há lugar onde a morte era tão banalizada como na casa de Faraó. Eles eram vistos como deuses e tinham o poder da vida e morte. Sob suas ordens as pessoas eram executadas. Ele não hesitou em decretar, por razões de ordem social e econômica, políticas e estratégicas de que todas as crianças judias do sexo masculino deveriam morrer.

 

Da casa de Faraó saem os decretos da morte, da antivida, da condenação, e apesar disto, a casa de Faraó transforma-se no reduto de proteção a Moisés, esta criança condenada à morte.

 

Muitas vezes os milagres de Deus podem ser percebidos nos detalhes. No dia em que Joquebede, a mãe de Moisés, entendeu que não poderia mais ocultar seu bebê e o coloca num rio na esperança de que alguém encontre seu filho, “coincidentemente”, a filha de Faraó desce ao rio, para tomar banho levando consigo toda sua comitiva e ouve o choro da criança. Ela entende o contexto político, e sabe o que está acontecendo, mas agora diante desta criança seu coração é movido de cuidado maternal. Ela decide criá-lo. Na verdade ela rejeita a ordem do pai. Isto poderia causar graves incidentes na corte.

 

Mas o que interessa é esta grande verdade. A casa de Faraó de onde saem os decretos de morte torna-se o lugar onde Moisés crescerá em segurança. Seu pai ordena a morte, Deus usa a filha para decretar vida.

 

É desta forma que Deus age, mudando as circunstâncias para seu propósito. No Leste Europeu, o fechado sistema que tão duramente perseguiu os cristãos, caiu por terra, pelo poder da oração dos cristãos; Na África do Sul, Deus levantou Nelson Mandela, para salvar o povo sul africano da terrível divisão entre negros e brancos e desmantelando pacificamente aquele sistema maligno; Na China, o maior despertamento da fé na história irrompeu em um Estado ateu que tenta de todas as formas cruéis e violentas sufocar a fé cristã. A vida jorra em ambientes de perseguição. A vida ironiza a morte. Deus sempre tem feito isto na história.

 

É a subversão divina que transforma ambientes de morte em manifestações da vida.

 

Gordon MacDonald acompanhou de perto a tragédia dos atos terroristas de 11 Setembro de 2001 em Nova York. Ele descreve muito bem como ambientes de morte podem  ser transformados em manifestações de vida. Ali, trabalhando como voluntário para trazer conforto às pessoas enlutadas ele escreveu:

 

“Deus está aqui? Cheguei à conclusão de que ele está mais próximo deste lugar do que qualquer lugar que tenha visitado. A estranha ironia é que, em meio a esta catástrofe absoluta de proporções indizíveis, há uma beleza na forma pela qual os seres humanos estão agindo, o que desafia a imaginação. Todos – sublinhe isto, todos – são irmãos e irmãs entre si. Não ha nenhum estranho entre os milagres no local de trabalho. Todos conversam, todos cooperam, todos fazem a próxima coisa que precisa ser feita. Nenhuma tarefa é pequena demais, humilde demais ou, por outro lado, grande demais. As lágrimas escorreram livremente, o afeto se expressou de forma mútua e aberta, a exaustão foi desafiada. Todos nós deixamos de nos preocupar conosco mesmos. As palavras “não se trata de mim”,  nunca foram tão verdadeiras. Nenhum culto numa igreja, nenhum santuário de igreja, nenhum culto religiosamente inspirador já falou tão profundamente à minha alma e testemunhou da presença de Deus como aquelas horas na noite passada, no local da tragédia.“

 

Foi assim que Deus fez nessa história de Moisés: Ela faz brotar a vida no ambiente de morte. Do mesmo lugar de onde partiu o decreto para morte de tantas crianças, encontra-se o ambiente no qual Deus preservaria Moisés. Esta é a ironia divina. Esta é a santa subversão.

 

Terceiro, Deus dá condições quando os recursos humanos desaparecem

 

Sempre fico tentando imaginar quais foram os sentimentos ambíguos que a mãe de Moisés teve ao tomar a decisão de colocá-lo num cesto e deixá-lo no rio. Como você que é mãe, e lê este sermão, se sentiria tendo que fazer o mesmo com seu filho?

 

Imagine sua relutância, sua culpa, seus temores, seus conflitos. Abandonar seu filho às margens de um rio, sofrendo as intempéries da água, do calor, da fome e da sede... Por que ela toma esta decisão?

 

O texto responde à esta pergunta: “Não podendo escondê-lo por mais tempo” (Ex 2.3). Na verdade ela toma esta atitude por absoluta impotência. O que fazer quando todos recursos que temos não são suficientes? Como esconder seu filho de três meses dos implacáveis guardas egípcios?

 

Só a situação de absoluta ausência de recursos pode levar uma mãe a tomar uma atitude tão radical. Ela não tinha a quem recorrer, a quem buscar, ela é obrigada a desistir. Esta situação de impotência atinge milhares de pessoas todos os dias, que são obrigadas a viver em condições sub-humanas, simplesmente porque não há recursos disponíveis.

 

Esta é a situação da viúva de Sarepta ao se encontrar com o profeta Elias. Ele lhe pede um pedaço de pão, e ela, resignadamente afirma: “

 

Tão certo como vive o Senhor, teu Deus, nada tenho cozido; há somente um punhado de farinha numa panela e um pouco de azeite numa botija; e, vês aqui, apanhei dois cavacos e vou preparar esse resto de comida para mim e para o meu filho; comê-lo-emos e morreremos.” (1 Rs 17.12)

 

Esta viúva não era uma pessoa avarenta, que não queria distribuir o que tinha. Ela simplesmente não tinha como distribuir. Os recursos não existiam.

 

Pessoas que passam por situações de extrema escassez afirmam que a falta de recursos gera apatia, resignação, desistência. Você não luta mais, pois não crê que algo possa ser feito. É o que acontece com a vítima rendida, abusada e violentada. Com o pai de família sem recursos para colocar alimentos à mesa.

 

Muitas vezes não há recursos para lidar com questões espirituais. A pessoa está presa pela ação do maligno e já buscou soluções em lugares errados. Muitas vezes não há recursos emocionais, e o casamento está chegando ao fim apesar de todos esforços. Outras vezes são pais que precisam lidar com a rebeldia do filho. Faltam recursos humanos, psicológicos, espirituais.

 

Assim aconteceu com a mãe de Moisés. Ela não abriu mão porque faltava amor, mas porque faltava recursos. Sua atitude se torna: “Deus vai cuidar, eu nada posso fazer!” Ao colocá-lo no cesto ela sabia que apenas um milagre mudaria o quadro. Seu filho havia sido condenado à morte antes de nascer, ela adiou o máximo, mas agora nada mais poderia ser feito. Ela preferiu que ele morresse longe dela, ainda que certamente isto se transformaria para sempre num fantasma na sua história.

 

É nesta hora que algo incomum acontece: Deus dá condições quando os recursos humanos desaparecem. O recurso que esta mulher não tinha é providenciado por Deus. Ele está cuidando! Ele vai providenciar o necessário. Os recursos surgem de forma miraculosa e inusitada. Deus providencia os recursos.

 


Conclusão  

 

A subversão divina aponta para três direções:

 

Primeiro, Deus transforma riscos reais em rotas de libertação. A providencia desta mulher não é a melhor, embora seja a única. O risco para a vida daquela criança se transforma no meio da sua proteção. A subversão divina é claramente percebida, ameaças se transformam em rotas de libertação.

 

Segundo, Deus transforma ambientes de morte em manifestações da vida. Do palácio vem a ordem para matar as crianças, mas do palácio vem a filha de Faraó para proteger a criança condenada a morrer.

 

Terceiro, Deus dá condições quando os recursos humanos desaparecem. Esta mulher não tem recursos, sua vida chegou a um poço sem fundo, nada mais pode ser feita. Entretanto, Deus providencia os recursos onde os recursos não existem.

 

Mas a grande subversão, na verdade, acontece na cruz de Cristo. Nada é mais ameaçador e estranho que a cruz. O livro da Lei afirma: “Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro.” (Dt 21.23). O Novo Testamento analisa muito bem esta questão ao afirmar: “

 

“Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro” (Gl 3.13).

 

Nenhum lugar é tão marcado pelo ambiente de morte que a cruz. Ali contemplamos a morte na sua pior expressão, num espetáculo de horror, a cruz é ambiente de execução. Entretanto, na cruz encontramos a vida. Um antigo hino diz o seguinte:

 

“Há uma fonte cheia de sangue das veias de Emanuel

E pecadores mergulhados neste sangue, são purificados de todas as manchas de culpa”

(...) Este sangue nunca perderá seu poder, até que a igreja redimida seja salva, para não mais pecar. (...) Este sangue nos purifica de toda culpa”.

 

A grande subversão de Deus se dá na vida daqueles que, condenados pelos seus pecados, são resgatados para viver para a glória de Deus e consagram sua vida para viver para o Senhor. Pecadores redimidos e restaurados para sua honra e glória.