O vale de ossos secos
Ez 37
Introdução:
O clima era desesperador. No ano 722 a.C., O exército Assírio já havia invadido a Samaria, a capital do reino do Norte, acabando para sempre com esta nação, que durara 210 anos, desde a sua divisão com o reino do Sul no ano 931 a.C., Agora o exército rumava na direção de Jerusalém, o reino do Sul, Judá e Benjamin, que mais estruturado, com grandes muralhas. A queda de Jerusalém se dá no ano 587 a.C., portanto 130 anos depois. Havia um clima de negativismo e violência na sociedade, a economia do país não ia bem, a cidade ficou cercada por dois anos, com privação de tudo e o medo constantemente rondando.
A leitura deste texto de Ezequiel 37 demonstra claramente o ambiente de morte que rondava. O povo de Israel tinha perdido sua perspectiva histórica, e a esperança se dissolvera.
Uma parábola de crise
Ezequiel 37 é uma parábola de uma grande crise: o povo judeu estava sob ameaça. A cultura e a religião se desfazendo, a imagem de Deus se perdendo nas novas gerações, decadência moral, liderança politica e religiosa inescrupulosa, um povo vivendo sem alegria, sem voz profética. Neste contexto, Ezequiel tem uma terrível visão: “Veio sobre mim a mão do Senhor; ele me levou pelo Espírito do Senhor e me deixou no meio de um vale que estava cheio de ossos” (Ez 37.1).
Deus o levou e o deixou no meio deste vale de ossos secos.
Não gosto de pensar nesta ideia de Deus me conduzindo para um lugar tão desolado. Ezequiel não se dirigiu a este lugar por opção, e sua experiência não foi circunstancial nem superficial, já que o “Senhor o fez andar ao redor deles” (Ez 37.2). Ezequiel teve com conviver com a morte, sentir o drama daquela visão esquelética, ver o cenário tétrico. Ele faz parte deste ambiente de horror. Deus o força a andar em volta, pelo ar putrefato, assumindo e respirando a tragédia. É uma descrição tensa, onde o silêncio do deserto e a solidão são tangíveis, ambiente de morte, sinistro.
Ezequiel não fez opção por esta caminhada. o “Senhor o fez andar ao redor deles”, ele foi empurrado para este ambiente, assim como os discípulos não fizeram opção para a travessia do Mar da Galileia naquela fatídica noite em que sentiram a morte muito de perto. Em Mt 14.23 vemos que Jesus “compeliu os discípulos a atravessarem”. Não foi uma escolha, eles foram levados a entrar no barco.
Ninguém faz opção pela dor e pelos vales cheios de ossos secos, ninguém deseja passar por aflições, crises e cenários de morte. No entanto, o Senhor leva o profeta, e o deixa naquele ambiente, fazendo-o andar por ele. O Senhor leva o profeta a ver de perto a desolação, a assimilar a morte, a se assustar com ossos espalhados, e o profeta é deixado num ambiente vazio, com cheiro de morte, andando um tanto quanto catatônico por aquele lugar.
O que fazer na crise?
No meio deste ambiente de morte, Deus pergunta a Ezequiel: “Filho do homem, acaso, poderão reviver estes ossos?” (Ez 37.3).
A pergunta exige uma reflexão e uma resposta muito difícil de ser dada. Como responderíamos a esta pergunta?
Alguns diriam: Não!
O cenário é tão macabro, as perspectiva tão sombrias, que nem sempre é possível exercer a fé e dizer sim. Não é muito fácil dizer sim quando tudo parece dizer não. Quando não conseguimos dizer sim, nos fechamos à intervenção divina e à possibilidade de Deus agir. Quando isto acontece, passamos a orar sem esperar, sem realmente crer. Não somos capazes de exercitar a fé. A Bíblia afirma que “Sem fé, é impossível agradar a Deus, porque é necessário que pois é necessário que aqueles que dele se aproximam, creiam que ele existe, e é galardoador daqueles que o buscam” (Hb 11.6). Ao nos aproximarmos de Deus, precisamos crer que ele existe e que ele pode responder. E quando não mais conseguimos crer? Como disse o poeta: “O que fazer, se o coração não consegue mais crer, o que sabe ser verdade?”
Marta tipifica bem pessoas assim.
Quando Jesus afirma “Teu irmão há de ressurgir” Marta responde: “Eu sei, replicou Marta, que ele há de ressurgir na ressurreição, no último dia” (Mt 11.23,24).
Ela cria na ressurreição do último dia, mas Jesus estava falando de uma intervenção sobrenatural naquela hora. Marta demonstra como é possível termos bons conceitos sobre teologia e ainda assim viver na incredulidade, ou com dificuldade de entender que Deus pode intervir na história presente.
Alguns diriam: “Sim!”
São aqueles que se sentem confiantes em fazerem afirmações sobre sua fé, e creem, a despeito de todos os fatos contrários. Este tipo de fé é capaz de abrir-se para as possibilidades da ação do Deus que opera milagres. Crentes ousados alimentam um tipo de fé bíblico que “move montanhas”. A Bíblia afirma que “Abraão, esperando contra a esperança, creu, para vir a ser pai de muitas nações, segundo lhe fora dito: Assim será a tua descendência” (Rm 4.18). São pessoas que “por meio da fé, subjugaram reinos, praticaram a justiça, obtiveram promessas, fecharam a boca de leões, extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, da fraqueza tiraram força, fizeram-se poderosos em guerra, puseram em fuga exércitos de estrangeiros” (Hb 11.33-34).
São homens e mulheres de fé, que fundamentam sua vida na compreensão real de que Deus “é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos conforme o seu poder que opera em nós.” (Ef 3.20). São estes os que dizem sim diante das perguntas inusitadas e confusas que Deus faz. Louvado seja Deus por este tipo de fé maravilhosa que impulsiona o reino de Deus e tem grandes sonhos e expectativas de Deus.
Outros dizem: “Tu o sabes”.
Foi isto o que aconteceu com Ezequiel.
Quando Deus lhe perguntou: “Filho do homem, acaso, poderão reviver estes ossos? Respondi: Senhor, tu o sabes” (Ez 37.3).
Esta é a pergunta que Deus muitas vezes faz diante das realidades “impossíveis”. Você crê que algo pode acontecer? Você acredita em intervenções sobrenaturais? E na maioria das vezes nossa resposta é dúbia quanto a do profeta: “Senhor, tu o sabes!” Eu não se consigo realmente crer...
Esta resposta é muito comum quando estamos no meio de uma forte crise pessoal, e quando isto se dá, sofremos uma distensão entre a possibilidade de Deus agir e a dura e brutal realidade que nos cerca. Por isto, não raras vezes nossa resposta é dialética. Não é totalmente aberta, nem é fechada. Senhor, tu o sabes... É a resposta da limitação, do homem que não vê nenhuma possibilidade histórica, mas ainda assim consegue vislumbrar, ainda que de forma opaca, o poder de Deus.
É a afirmação do cego que diz: “Se quiseres, tu podes”.
Ou do homem que vai ao encontro de Cristo, por causa da possessão de seu filho e ao indagar se seria possível a libertação, ouviu de Jesus: “Tudo é possível ao que crê”. Quando Jesus lhe pergunta se ele crê, o pai responde de forma ambígua: “Eu creio, Senhor, ajuda-me na minha falta de fé”. Você entende o significado de crer, mas ainda falta fé? Já passou por esta dura experiência?
Muitas vezes respondemos como Ezequiel, cheios de dúvida, com incredulidade no coração, reticência na alma, porque os fatos são duros demais, ou estamos tão frágeis, vivendo numa ambivalência espiritual tão profunda que temos dificuldade de admitir que nada é impossível para Deus, embora creiamos, em algum nível subjetivo, que isto é verdade.
É assim que Jeremias responde a Deus, diante da cidade destruída: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança”. Os fatos conspiram, apontam para impossibilidades, mas a fé consegue discernir no meio do caos o ilimitado poder de Deus. Jeremias precisa lembrar o que lhe pode dar esperança. Assim fez também Ezequiel. “Senhor, tu o sabes!”
Ao responder com esta ambigüidade, Deus faz alguns desafios ao profeta:
Primeiro, não aceitar ossos secos como condição definitiva.
Muitas vezes ao olharmos o contexto e as dificuldades, achamos que nada pode mudar. O definitivo é imutável. As palavras “nunca” e “impossível” não fazem sentido diante do seu poder . Afinal, “existe alguma coisa demasiadamente difícil para Deus?”.
Segundo, Deus desafia o profeta a confrontar o caos histórico.
Deus poderia dar dado uma ordem direta ao caos, mas ordena a Ezequiel que ele o faça: “Profetiza a estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor” (Ez 37.4). Ao profeta frágil e dúbio, Deus dá ordem de enfrentamento e o profeta obedece. não seria melhor que Deus fizesse sem ter que colocar o profeta nesta condição de autoridade sobre os ossos secos? Se estivéssemos lá, talvez tivéssemos argumentado com Deus e tentado convencê-lo de que o fizesse sem nos envolver, afinal, o profeta não tinha uma clara convicção de que as condições seriam alteradas. No entanto, o profeta obedece: “Então profetizei segundo me fora ordenado” (Ez 37.7). O profeta proclama a transformação sobre o caos.
Como se processa o milagre?
Deus desafia o profeta a fazer declarações contrárias à tudo quanto o bom senso parecia indicar. Deus dá ordem ao ambiente desorganizado e desestruturado, usando a sua boca e “enquanto eu profetizava, houve um ruído, um barulho de ossos que batiam contra ossos e se ajuntavam, cada osso ao seu osso” (Ez 37.7). Quando o profeta declara as palavras de Deus, a realidade começa a sofrer transformação. A realidade muda, antes mesmo dele terminar de falar. “Enquanto eu profetizava”... O caos se organiza enquanto a palavra de fé é proclamada.
Não sei exatamente como esta realidade se aplica ao nosso dia, mas uma coisa é certa, quando nos firmamos em Deus, novas realidades começam a surgir. São vidas destroçadas que se erguem em nome de Jesus, casamentos que são restaurados pela obra de Cristo, doenças e enfermidades que são curadas em nome de Jesus, igrejas divididas começam a experimentar novo poder. Deus transforma o caos. Ossos secos, mediante a palavra do Senhor, podem novamente se organizar e se estruturar. O caos não é definitivo quando Deus ainda não deu a última palavra.
Inicialmente Deus trabalha mudando a estrutura orgânica, porque os ossos são os primeiros a se juntar, cada osso ao seu osso. Isto tem a ver com um mínimo de organização. Osso é a estrutura que sustenta o corpo, e ao redor do qual tudo se firma, é a estrutura esquelética do organismo. São as formas que se estruturam.
Muitas vidas, lares e igrejas precisam, antes de mais nada do mínimo de ordem nesta estrutura óssea. São pessoas desintegradas, com fraturas expostas; são famílias que não sabem mais o papel de cada um, a vida está bagunçada, as finanças desorganizadas, o lar desestruturado. Da mesma forma isto se dá nas igrejas que estão confusas na sua missão, onde ninguém sabe o que fazer nem para onde ir. Os ossos precisam se juntar.
Em seguida, Deus dá a estrutura emocional.
Deus coloca carne, tendões e pele. É o sistema nervoso que precisa surgir.
Deus dá nova sensibilidade àqueles que se encontram amortecidos, que não sentem mais prazer nem alegria. Deus põe tendões, é o corpo amortecido que reage e se estrutura. Carne é hedonismo, prazer, gosto, poesia, música, vida, relacionamentos, toques, afetividade. Nervos são sentimentos, emulações de amor, afetos, carinho, carícia, sexualidade, abraços e beijos.
Muitas pessoas perderam a capacidade afetiva e precisam ser restauradas. Falta tendão, nervo, pele. Todas estas coisas são sensórias e apontam para nossa humanidade. No entanto, muitos não conseguem mais abraçar, beijar, receber e dar carinho, não sabem mais como fazer. Não sabem abraçar, amar, sentir... precisam de restauração.
Muitos lares esqueceram a capacidade da afetividade. Pais que não sabem mais abraçar, cônjuges que não sabem mais namorar, perderam a capacidade de enternuramento. Se perderam entre tapas e beijos. Viraram porco espinho, sem linguagem de afeto, sensualidade e sexualidade.
Igrejas também podem perder a capacidade de amar.
São líderes eternamente em conflito, pastores neurotizados e adoecidos, liderança doente e patologizada, família pastoral adoecida, filhos de presbíteros e diáconos vivendo vida dissoluta, luta por poder, estilo novelesco de ser, conflitos históricos intermináveis e mal resolvidos. Precisamos nos apoderar da palavra que dá vida aos ossos secos para se juntarem, aos tendões, carnes e peles para sentirem, tocarem e amarem. Se há alguma coisa errada com nossa afetividade, certamente nossa espiritualidade não é bíblica.
Por último, Deus dá vida, colocando neles o Espírito
“Profetizei como ele me ordenara, e o espírito entrou neles, e viveram e se puseram em pé, um exército sobremodo numeroso” (Ez 37.8). Não adianta ter ordem e sensibilidade, se não existe vida. Corpo sem alma é cadáver. Nosso Deus é o Deus de vivos e não de mortos.
Prestem atenção na construção gramatical deste texto. Se você observar bem, vai perceber que o termo “espírito”, acontece sempre com letra minúscula. (Ez 37.8,9,10), mas quando chega no vs. 14, já aparece em maiúsculo. “Porem em vós o meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra. Então sabereis que eu, o Senhor, disse isto e o fiz, diz o Senhor”. Por que esta diferença?
Todos precisamos de um “espírito” renovado. Precisamos de ânimo, encorajamento, alegria. Mas sem o “Espírito de Deus”, isto não vai acontecer. O que o texto afirma é que Deus fará algo surpreendente em nossa vida, “Eis que abrirei a vossa sepultura, e vos farei sair dela” (Ez 37.12). Deus quer fazer algo sobrenatural em nós, e isto acontece quando seu Espírito Santo é derramado sobre nós.
Stanley Jones afirma que a palavra mais presente na bíblia é Vida. Não adianta termos igrejas organizadas, mas sem vida; lares socialmente ajustados, mas sem vida; pessoas politicamente corretas, mas sem vida.
A didática divina
Este texto é pedagógico.
Deus quer nos ensinar através da experiência do profeta. E isto é necessário antes de tudo, para entendermos que a desesperança não pode ser ponto final. “Então, me disse: Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel, eis que dizem: os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; estamos de todo exterminados” (Ez 37.11). O povo de Israel havia desistido de crer e sonhar que algo novo e surpreendente pudesse acontecer na sua história. Não é assim que tantas vezes encaramos nossa própria vida?
Deus deseja que seu povo tenha esperança, que as pessoas alimentem consigo a esperança das coisas mudarem, que nossos lares creiam que uma nova perspectiva pode surgir; faz parte do plano de Deus que as igrejas construam sonhos, e que parem de olhar para o fracasso e para a morte, e desanimar porque os ossos estão secos. Precisamos olhar a história com sonhos, visões e projetos, tirar nossos olhos dos ossos secos. A desesperança é a pior arma contra nós mesmos. “Eis que dizem” (Ez 37.11). Estes são os piores sentimentos e comentários que facilmente destroem nossas vidas.
Finalmente, Deus deseja restaurar o caos, para que isto sirva de testemunho.
“Sabereis que eu sou o Senhor, quando eu abrir a vossa sepultura e vos
fizer sair dela, ó povo meu” (Ez 37.11).
A obra que Deus faz em nossa vida deve servir de testemunho e encorajamento para outros. É desta forma que saberemos quem é o Senhor. Só quando somos surpreendidos pela obra de Deus é que entendemos quem está no controle de todas as situações mais absurdas e caóticas. Deus é Deus! Ele nunca perdeu sua capacidade de agir. Seu braço nunca se encurtou. “Acaso existe coisa demasiadamente difícil para mim?”
É impossível continuar o mesmo diante dos milagres que Deus faz, e as pessoas vão saber quem é Deus quando o vale de ossos secos se transformar num cenário de vida, de sentimentos, de ternura, de pele e tendões. O livramento traz reconhecimento, glória e louvor para o nome do Senhor.