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paz
Da glória, para o silêncio
A história de Mefibosete é uma das mais fascinantes da Bíblia, apesar dele ser tão desconhecido e um enigmático personagem das Escrituras. Eu particularmente sou fascinado pela sua história. Ele foi neto de Saul e filho do grande amigo de Davi, Jonatas.
Seu nascimento se deu na nobreza, era um príncipe, iria andar pelo palácio na sua infância, seria cortejado entre as amas, e tendo prerrogativas reais, mas ainda muito novo, seu avô Saul, o rei de Israel e seu pai, Jônatas, o sucessor e príncipe herdeiro, morreram na batalha, e de uma hora para outra, tudo se desmorona. Ele não apenas perde todos os direitos reais, mas corre risco de vida, e precisa sair imediatamente de Jerusalém para não morrer. Na fuga, sua ama o deixa cair, ele quebra severamente a perna, se torna coxo, perdendo os movimentos dos pés.
Eles o levam para uma região inóspita e quase inacessível entre as montanhas da Judéia, para ser literalmente exilado. Ele foi para a cidade de Lo De-bar, que curiosamente significa, “cidade do esquecimento”. O prefixo "Lo" é de negação, o equivalente a “não”, em hebraico, e Debar, palavra. Etmologicamente Lo-Debar seria melhor traduzido como “sem palavras”. Uma cidade “sem-palavras” para descrever. Sua história é radicalmente mudada. Escondido, exilado, em sigilo, fica na cidade onde o silêncio e o ostracismo prevalecem. Onde falar é proibido. Aquele que poderia se tornar o futuro rei de Israel, agora vive no esquecimento e abandono, vivendo como um camponês, e ainda com um grave problema: ele era deficiente físico, sua saúde era debilitada. Órfão, esquecido, sem poder revelar sua identidade para não morrer. Mefibosete deixa de ser uma pessoa normal, não consegue andar normalmente e carregará para sempre esta marca da deficiência.
Agora encontra-se esquecido em Lo-Debar, onde falar era proibido.
Seu passado? Silêncio!
Seu futuro? Silêncio!
Sua família? Silêncio!
Conviver com o silêncio não é nada fácil. Que o diga Jó, que ficou sem ouvir a voz de Deus, quando queria uma resposta que pudesse ajudá-lo a compreender seu estado caótico e de sofrimento. Mefibosete nem sequer pode declarar sua identidade. Mefibosete é obrigado a se recolher. A se calar. Viver na cidade do silêncio, nas fronteiras do esquecimento.
Recentemente assisti um filme no qual a pessoa perguntava: “Por que Deus se mantém em silêncio nos dias difíceis? Quando estamos nas horas mais pesadas?” E a pessoa respondeu: “É bom considerar que o bom mestre, se mantém em silêncio na hora das provas”.
Do silêncio, para a nobreza
Um dia, porém, o silêncio de Mefibosete seria quebrado. De uma forma inusitada e surpreendente, ele recebe uma visita do antigo servo de seu pai, Ziba, informando que o rei já sabia de sua existência e que sua identidade foi descoberta. O rei o chamava para se apresentar no palácio em Jerusalém. Ele precisava sair das sombras, o rei soube que ele era filho de Jônatas e queria falar com ele. Esta notícia deve ter sido muito angustiante. Ele leva sua vida pacata, de camponês, tentando se esconder, com risco de permanente de conspiração e morte, e agora é descoberto. Sua identidade é revelada. Ele precisa se encontrar com o rei.
O texto descreve a tensão presente no encontro.
Ele se curva reverentemente diante de Davi, que faz questão de lhe dizer, antes de qualquer coisa: “Não temas, porque usarei de bondade para contigo”. Davi certamente percebia a tensão presente e como Mefibosete estava fragilizado. Que palavras poderiam ser mais restauradoras que estas? Quando Davi revela seu plano, Ele novamente se inclina diante de Davi e diz: “Quem é teu servo, para teres olhado para um cão morto como eu?” (2 Sm 9.8). Um homem aleijado, vindo da região do silêncio, correndo sempre risco de vida, recebe agora o libertador veredito de absolvição. Não mais silêncio, mas honra. Ele ouve do rei: “te restituirei todas as terras de Saul, teu pai, e tu comerás pão, para sempre à minha mesa”.
O que fez Davi?
a. Ignorou sua deficiência (2 Sm 9.3)
b. Ignorou sua condição de silêncio e medo (2 Rs 9.7)
c. Restituiu suas propriedades (2 Rs 9.7)
d. Deu honra e intimidade, convidando-o para assentar-se consigo à mesa: “comeu, pois Mefibosete, à mesa de Davi, como um dos filhos do rei” (2 Sm 9.11).
Este é o retrato da vida de muitas pessoas, que passam por tragédias e perdas. Poderiam ter uma vida de sucesso, honra, situação financeira melhor, mas por um infortúnio, são obrigadas a viver na miséria, tendo apenas uma vida de memória dos anos de glamour, e o presente carregado de ameaça, porque sua identidade, se revelada, pode condená-lo à morte.
Assim como Mefibosete, há muitos que não podem falar, não tem voz, vivem condenadas à culpa, ao fracasso, à condenação. Como imaginar que um dia um homem como este poderia voltar ao palácio, sair da zona do medo e do silêncio?
Este texto é uma boa parábola do que Deus faz conosco. Fala-nos do caráter imerecido da graça. De um Deus que resgata, encontra-nos no ostracismo, e nos busca independentemente de nossa condição física, moral e espiritual. Que ao invés de nos dar a espada, nos convida para nos assentarmos com ele à mesa, e nos trata como um dos seus filhos.
Este texto aponta para o aspecto surpreendente da graça, que põe fim ao cativeiro do silêncio e do medo. Pessoas que são surpreendidas por Deus. O tempo do silêncio acabou. O Salmo 23 fala de algo estranho: “preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários”. Esta é uma figura estranha, não é? Gostamos de ter mesa posta na presença de amigos e não de adversários e inimigos. O que significa isto? Deus nos surpreende dando-nos honra diante de pessoas que sempre nos trataram com injustiça. Deus move o coração de Davi, aparentemente do nada, para alcançar e resgatar a vida de Mefibosete.
“Por acaso não ha alguém da casa de Saul para que eu use de bondade para com ele?” (2 Sm 9.1).
Isto poderia soar como uma armadilha, uma emboscada do rei, para destruir e erradicar totalmente a memória do rei Saul que o perseguiu e procurou matá-lo várias vezes. Este era um procedimento padrão naqueles dias: um rei assumiu o trono e matava todos os descendentes do antigo rei para que não houvesse possibilidade de conspiração ou de um levante.
Antes de mais nada, quem se lembra de Mefibosete é o próprio Deus, que leva Davi a ter tal sentimento de restauração.
Deus restaura (restituindo suas propriedades confiscadas), e dá honra (convidando a assentar-se à mesa como um dos filhos).
Este texto nos revela como Deus pode mudar nossa história. São muitos que por desatinos, pecados, decisões erradas, são levados a viver no silêncio da culpa, da vergonha, prisioneiros de seu passado, sem honra, “sem palavras”, em Lo-debar.
Só a graça de Deus pode restaurar pessoas assim.
Deus rejeita a nossa rejeição.
Não é maravilhoso?
No livro de Isaias, temos um texto surpreendente. Deus convida seu povo: “Vinde, pois e arrazoemos. Ainda que os vossos pecados sejam vermelhos como o carmesim, eles se tornarão brancos como a neve” (Is 1.18).
O que Deus propõe neste texto?
Ele convida o povo para um embate judicial. Arrazoar é colocar as cartas na mesa, ver quem tem razão. Mas Deus neste caso, não está convidando o povo para refletir sobre seu pecado, seu passado de derrota e fracasso, mas sobre a dimensão de seu perdão: Ainda que os vossos pecados sejam vermelhos como o carmesim, eles se tornarão brancos como a neve”.
Conclusão
Lamentavelmente a história de Mefibosete não se encerra aqui na sua restauração. Poderia ser uma história com final feliz, mas sabe o que acontece alguns anos depois? Absalão, filho de Davi, tenta usurpar o trono e estes dias se tornaram os mais difíceis da vida de Davi. Ele tinha que se defender de um golpe engendrado pelo próprio filho, que queria o trono. Mefibosete estava no palácio, com privilégios da nobreza, assentando-se à mesa do rei.
Sabe o que ele fez nesta hora de crise do governo. Algumas pessoas que ainda queriam o retorno dos herdeiros de Saul ao trono e o procuraram querendo fazer um levante a favor da casa de Saul, e ele assume oposição, e fica torcendo pela desgraça de Davi (2 Rs 16.3). Ele torce pela queda do rei que o restaurou. Trai. Conspira. Encontra aliados políticos. Forma seu comitê de oportunistas.
O que o levou a isto senão a sua falta de gratidão?
A verdade é que sua condição havia sido mudada, mas não seu coração.
Posteriormente, quando Davi reassume novamente seu reinado, ele precisou se reencontrar com Davi, e o encontro não foi nada fácil, e ficou marcado por um duro discurso de Davi contra sua atitude (2 Sm 19.24-30). Mefibosete fica cheio de desculpas, se defendendo, mas Davi não aceita sua conversa, explicações e justificativas (2 Sm 19.29). Davi o confronta, demonstra irritação com o que ele fez, e ordena que divida suas terras com seu servo, Ziba, que de forma aberta e corajosa, apoiou Davi quando seu futuro era incerto. Ziba tornou-se um servo leal. Mefibosete revelou que seu coração anda não havia sido tocado, apesar de toda graça e misericórdia recebida.
Mais uma vez, este é um bom retrato do que nos acontece diante da bondade de Deus.
Deus nos liberta da condição de esquecimento, restitui nossa história, dá lugar de honra e intimidade, mas o que fazemos? Nem sempre o nosso coração está resolvido. No fundo ainda aspiramos coisas que não deveríamos aspirar, traímos gente que nos ama, negamos a Deus, conspiramos, assumimos a duplicidade. Mefibosete tem sorte de preservar sua vida, ele merecia a morte, mas encontra liberdade. Poderia ter todas as suas terras confiscadas novamente, mas ainda assim Davi demonstra compaixão e o deixa viver.
Tal é o nosso retrato diante de Deus.
Imerecedores da graça, recebemos dignidade, somos amados unilateralmente, mas apesar disto insistimos com nosso coração duro, mal resolvido, aspirando coisas que não deveriam mais ocupar nosso coração.
A história de Mefibosete fala de quem somos. Falhos, imerecedores, ingratos, indignos. Apesar de tudo que recebemos somos tão imperfeitos na nossa amizade e amor.
A história de Mefibosete fala também de nossa condição e do tratamento recebido por Deus. Paulo afirma: “O amor de Cristo nos constrange”. Sua disposição em nos buscar, restituir, nos amar, nos tratar como filho, nos dar honra e dignidade. Este é o retrato do Evangelho. Assim é a graça de Deus para conosco.
A Bíblia afirma que “Porque Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Dificilmente, alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores.” (Rm 5.6-8).
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