A leitura de Eclesiastes desafia nossa mente por causa de seu estilo literário, de sua construção gramatical e de sua proposta. Ao iniciarmos sua leitura observamos que estamos nos aproximando de uma discussão que tem sido o cerne da filosofia antiga e moderna. Por isto precisamos nos aproximar com atenção, cuidado, fazendo as perguntas essenciais quando observamos um texto bíblico:
- Qual é a ideia original do texto? Seu contexto e linguagem
- Qual a proposta do autor? O que estava na mente de Salomão ao escrever este livro autobiográfico?
- Como este texto interpela a minha mente e meu coração?
- O que Deus quer me ensinar através deste livro?
Todas as vezes que nos aproximamos de qualquer livro da Bíblia precisamos entender seu ambiente e seu estilo literário. Existem géneros proféticos, narrativos, descritivos, poéticos. Eclesiastes é classificado como um livro poético. Ele faz parte dos livros de sabedoria judaica, que são cinco: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cantares. As tradicionais escolas de interpretação reformadas, usam o método histórico gramatical para interpretar a Bíblia.
O autor se declara Qohélet, que em hebraico pode ser traduzido como aquele que fala, ou “o pregador”. Haroldo de Campos preferiu usar uma paráfrase nesta tradução chamando-o de “O que sabe.”[1]
Eclesiastes precisa ser entendido dentro do seu contexto histórico, cultura, tempo, linguagem, ambiente, mas precisa ser lido com uma cuidadosa observação exegética e gramatical. É necessário entender qual era a ideia original do autor ao escrevê-lo e qual seu gênero literário.
Poucos livros da Bíblia desafiam tanto o leitor cristão quanto Eclesiastes, o livro do “Qoeleth”. Isto porque, muitas das suas formulações entram em choque com outras verdades e proposições da Bíblia. Seria a Bíblia uma livro contraditório? Ao apresentar pressupostos teológicos, éticos e escatológicos divergentes de outros textos? Certamente que não! A Bíblia é uma unidade harmônica. Se não há contradição, precisamos examiná-lo com mais cuidado para penetrar nestas áreas mais obscurecidas e interpretamos dentro de seu contexto e dentro de sua proposta. Com muita propriedade o Pr. Ari Veloso afirmava: “Ou você ensina este livro à Igreja, ou o diabo o ensina de forma deturpada”.
Eclesiastes nega ou contradiz determinados pressupostos cristãos essenciais, como a visão de Deus, o sentido da existência, o conceito de justiça, trabalho, existência, lazer e valores e vida após a morte. Em alguns momentos suas afirmações são mais existencialistas que cristãs, mas epicuristas que reformadas.
Para ler Eclesiastes, torna-se mister encontrar sua chave hermenêutica.
Este livro faz parte do cânon judaico, mas durante muito tempo houve grande discussão se ele deveria ou não ser reconhecido como um livro sagrado. Muitas escolas criticavam o fato dele fazer parte desta coleção de livros sagrados. Nós cremos que Deus agiu não apenas inspirando toda a Bíblia, e cremos também que Deus preservou os textos sagrados na história orientando aqueles que foram responsáveis na seleção do cânon escriturístico, para que tais livros fossem fizessem parte do que hoje chamamos de Escrituras Sagradas[2]. Nenhum texto é mais sagrado que outro, afinal “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para educação na justiça, a fim de que todo homem seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.” (2 Tm 3.16-17). Sendo este livro tão controvertido, por que Deus permitiu que ele fosse anexado aos demais livros, fazendo parte do cânon?[3]
Eclesiastes muito provavelmente foi escrito por Salomão, um rei profundamente comprometido com o Senhor no início do seu reinado, até o tempo em que seu coração se desviou, enveredando-se pela idolatria, acúmulo de posses e casamento misto (2 Rs 11.3), e foi consumido pela vaidade e desejo de reconhecimento e aclamação pública. Seus casamentos com mulheres que adoravam outros deuses, desviou os olhos do Deus de Israel e o sincretismo religioso penetrou em Jerusalém, a ponto de, com recursos do palácio e autorização de Salomão, construírem templos aos deueses pagãos e oferecer sacrifícios a Moloque, um Deus pagão que exigia que em seus rituais jogassem crianças vivas no fogo como sacrifício, conforme o relato de 2 Rs 11.4-8.
No período em que esteve afastado de Deus, Salomão escreveu este livro, cujo conteúdo central é a questão do vazio. Trata-se da reflexão de um homem longe dos caminhos de Deus, refletindo sobre sua existência humana e seu significado. Por esta razão, cremos que este livro é inspirado por Deus, mas não transmite o pensamento de Deus, e sim o do homem secular, desesperadamente tentando encontrar sentido. Salomão sintetizou a vida afirmando que “tudo era vaidade, e correr atrás do vento” (Ec 2.11).
A palavra vaidade seria melhor traduzida por “vazio”. O hebraico não possui o recurso do superlativo. Ao repetir o termo acentua-se a enfase. A palavra “vaidade” aparece 35 vezes no livro. Ela vem do hebraico “hebhel”. O refrão Hebhel Habhalim, é traduzido por “vaidade de vaidades”, outros tradutores preferem traduzir este termo por “vazio”. A NIV em inglês preferiu atualizar o termo traduzindo-o como “meaningless” (ausência de sentido). Literalmente poderíamos traduzir esta palavra como “bolha de sabão”, “transitório” ou “sem permanência”. Deus permitiu que este livro fizesse parte do cânon e viesse até nós para que percebessemos o que acontece ao homem quando se distancia de Deus, como se sente o homem sem esperança e distanciado de Deus. Sem Deus resta apenas o desespero, a angústia, a monotonia, o vazio e o despropósito da existência. Trata-se, portanto, de um livro profundamente contemporâneo.
Sendo um livro profundamente existencial, sua reflexão gira em torno de coisas que acontecem “debaixo do sol”, expressão que aparece 29 vezes no texto. Obviamente, o homem sem Deus pode ter insights positivos sobre a vida, nem tudo que o pagão produz, nem todo seu pensamento é equivocado em si. Muitas leis e textos sobre a ética, escritos por estes homens são universalmente aceitos, e possui princípios verdadeiros que possuem similaridade com a cosmovisão cristã. O homem não iluminado, apesar de não ter a revelação do Espírito Santo em seu coração, e no meio do seu caos interior, possui a centelha divina por ser criado à sua imagem e semelhança, e recebe desta revelação “natural”, que lhe permite ter ensaios éticos e filosóficos positivos. Nem tudo que é humano é diabólico.
Muito do que Salomão escreveu ainda que estando longe de Deus, como um homem natural, por causa da centelha divina presente no seu coração e no coração do homem mesmo distante de Deus, traz lampejos das verdades eternas, mas nem tudo que o homem sem Deus diz, e o que Salomão escreveu em Eclesiastes, reflete o pensamento de Deus. A sabedoria humana esbarra na realidade de um coração que, como Adão, preferiu as sugestões luciféricas à submissão de sua mente a Deus, e desta forma se opõe àquilo que era verdadeiro e bom. O homem, em seu estado natural, se encontra espiritualmente longe de Deus e não compreende as coisas de Deus.
Para missiólogos, esta centelha divina no homem natural é chamado de “a semente do verbo”, ou como Don Richardson preferiu: “O fator Melquisedeque”[4]. Determinados aspectos de culturas pagãs refletem traços da graça comum em suas percepções, são parciais revelações de Deus inseridas na mente do homem que possui a eternidade em seus corações (Ec 3.8), fruto da graça natural de Deus. Paulo afirma sobre os pagãos: “Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se.” (Rm 2.15) Há no coração humano este “arquétipo divino”, um certo vislumbre ainda que pálido de quem é Deus e de suas verdades. Os homens, por mais embrutecidos e ignorantes que sejam acerca das coisas de Deus ainda podem ter algumas percepções daquilo que é ética e esteticamente correto.
Este é o caso do escritor de Eclesiastes.
Há princípios morais, éticos e declarações religiosas neste texto que são verdadeiras na perspectiva hebraico-cristã, ainda que muitas outras sejam heréticas. Precisamos ler Eclesiastes como alguém que come um peixe com espinho, separando aquilo que é edificante daquilo que pode engasgar e matar. Apesar de ser um livro inspirado, nem todas as proposições de Eclesiastes traduzem o pensamento de Deus, muitas vezes o que vemos é o homem Salomão, longe de Deus, perdido em suas elocubraçõ
es filosóficas, tentando achar o fio condutor de sua vida, depois de ter-se afastado de Deus. Eclesiastes reflete a visão obnubilada e erodida pelo pecado, manchada pela luxúria, pelo orgulho e pela arrogância de Salomão e seu desejo de ser maior que todos e demonstrar sua opulência e riqueza. Salomão se perdeu na sua glória e luxo. Ele se distanciou de Deus e conheceu o caos, o vazio e a angústia. E Deus então disse: Escreva! Eu quero que todos entendam o que acontece com o homem quando ele resolve construir sua história rejeitando os meus princípios. Salomão encontrou apenas o vazio longe de Deus.
Por trazer o pensamento do homem sem Deus, este é o melhor livro para entendermos como pensa o homem distanciado de Deus, como ele age, quais seus valores e ética. Este livro se torna extremamente contemporâneo, relevante e uma poderosa ferramenta para a evangelização do homem secularizado. Um incrédulo, ao ler este livro certamente vai se identificar com seu dialético discurso e aprová-lo. Este livro, sem dúvida é proto-existencialista. É o documento mais remoto que existe sobre o existencialismo, e seu nefasto resultado: tédio, vazio, angústia e desespero. Este livro poderia ter sido escrito por Camus, Jaspers, Sartre ou até mesmo Nietzsche
.
Machado de Assis, escritor brasileiro existencialista e pessimista ao extremo com a humanidade, crítico de Deus e da religião, todos os dias após o almoço, deleitava-se com porções do livro de Eclesiastes. Teria sido muito importante que ele entendesse e gostasse também do Evangelho de João.
Queremos ainda, reafirmar que em nenhum momento estamos negando sua inspiração. É bom lembrar que “Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (2 Tm 3.16) e que “tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança.” (Rm 15.4-5)
Se você deseja ler mais sobre este assunto, a segunda e terceira palestra encontram-se neste link
https://revsamucasermoes.blogspot.com/2022/03/a-sacralidade-de-eclesiastes.html
para assistir ao video:
https://www.youtube.com/watch?v=TEWzHANcNLM&t=1127s
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