sábado, 23 de julho de 2022

Mc 3.1-6 Como ser cristão sem ser religioso?

 




 

 

 

Introdução

 

Uma das ovelhas mais memoriáveis que tive foi o Sr Jorge Sahium. Quando cheguei para pastorear a igreja de Anápolis, ele já era bem idoso, e numa das visitas que lhe fiz   quando ele estava com 90 anos, ele fez brincadeiras sobre sua idade dizendo: "Pastor, eu morro de medo de ficar velho". Parece um contrassenso dizer o que vou dizer, mas vou parafrasear o Sr Jorge: "Morro de medo de me tornar um religioso".

 

A religiosidade humana muitas vezes vai na contramão da história em relação ao projeto de Deus para nossa vida. Leia Mt 23, onde Jesus está denunciando todo tempo os riscos da religiosidade. Billy Graham afirmou: "Muitas pessoas se tornam religiosas o suficiente para não serem tocadas e confrontadas pelo Evangelho".

 

A religiosidade pode nos tornar estéreis, e secar nosso coração e mente. Algumas das pessoas mais intragáveis, duras, preconceituosas e chatas que conheço são marcadas pela sua intolerância e dureza religiosa. Temos que aprender como ser cristãos sem sermos religiosos, já que o religioso pode atravessar o mar para fazer um prosélito e colocá-lo no inferno duas vezes mais, como afirmou Jesus (Mt 23.15).

 

Neste texto Jesus está lidando de forma direta com este segmento mais perverso da religiosidade. Aliás, jesus foi muito mais duro com os religiosos de seu tempo do que com aqueles que se encontravam na lista dos “pecadores”, afinal, Jesus chegou a ser criticado pelos religiosos do seu tempo por ser amigo dos “publicanos e pecadores.” (Mt 11.19)

 

A verdade é que a religião pode nos afastar de Deus de forma violenta. Neste relato de Mc 3.1-6, Jesus entra na sinagoga, num sábado, para cumprir sua função como judeu. Ao contrário daqueles que hoje decidem se tornar não praticante, Jesus era um judeu praticante. Ele cumpriu toda a lei. Seus pais o levaram para ser circuncidado. Ele tinha compromisso de ler a Torah (A Lei do Antigo Testamento), todos os sábados, ele guardava a lei. Portanto, se você acha que pode ser “evangélico sem ser praticante”, você não está seguindo o seu mestre, que era judeu praticante.

 

O problema não estava na sua prática religiosa. O problema estava em como se pratica a religião, e as possíveis distorções que isto pode causar em nossas vidas. A religião pode nos desfocar do propósito de Deus, e não é sem razão que há um livro na Bíblia escrito especialmente para corrigir as distorções dos “judaizantes”, porque perderam o foco na centralidade do plano de Deus. Jesus tentou, por diversas vezes, colocar as coisas no seu devido lugar, quando lidava com os religiosos. Entretanto, nem sempre isto era fácil, e muitas vezes não produzia qualquer efeito.

 

 

Quais são os perigos da religiosidade

 

  1. Guardar a Lei, mas não o Espírito da Lei – Os religiosos descritos neste texto guardavam o sábado, mas nenhum deles perguntou porque o sábado fora dado.

 

Jesus tenta mostrar que o sábado fora dado para a vida. Deus não precisava de descanso, no entanto o criou para o sábado, pensando no homem, a fim de que ele pudesse restaurar sua energia. Este é o conceito do shabath. O sábado seria uma oportunidade para que a alma pudesse ser restaurada. Esta quebra de atividades seria positiva para o ser humano. Deus estava pensando no bem-estar do homem ao criar o sábado, contudo, os homens o transformaram num instrumento de opressão. Um jogo de poder nas mãos dos religiosos.

 

Alguns estudiosos têm indagado se o sábado não seria o ápice da criação, já que no sexto dia Deus fez o homem mas a criação foi concluída no sábado.

 

Qual é a função do sábado?

Dentre várias funções existe a de se tornar um tempo para reorganizar a mente e as emoções, recarregar as baterias. Estudos têm sido feito para demonstrar quanto o descanso pode ser eficiente para o ser humano.

 

O sábado tem também uma função social, numa sociedade escravocrata, o escravo era alguém sem identidade e valor. Então, era natural serem submetidos a horas intermináveis de trabalho, sem descanso, sem repouso. O sábado, obrigava os senhores judeus a não explorarem seus escravos nestes dias. Pessoas ambiciosas poderiam instrumentalizá-los de forma desumana para tirar o máximo proveito de sua produtividade, esquecendo-se de suas necessidades biológicas.

 

O sábado tinha ainda uma função ecológica. Até mesmo o animal e a terra precisavam de descanso. Teria assim uma implicação de respeito à natureza e ao meio ambiente. No sistema levítico era decretado que a terra tivesse também um ano sabático.

 

No entanto, os religiosos tomaram o lado pior deste mandamento, transformando-o num instrumento de opressão religiosa. A lei que fora dada para vida tornara-se em morte. Deus deseja orientar, guiar, dar sabedoria pela lei. Sua lei é perfeita e restaura a alma, dá sabedoria aos símplices, e agora se tornara numa lei de opressão.

 

Os religiosos censuram Jesus porque come no sábado (Mc 2.23-24), e o censuram por fazer o bem, curando num sábado (Mc 3.5). Eles não haviam entendido o espírito da lei. O homem não foi feito por causa do sábado, mas o sábado por causa do homem.

 

  1. Transformar a religiosidade num fim em si mesma – Qual era o propósito da Lei? Trazer o homem para perto de Deus. Mas a Lei não tocava em aspectos internos, não lidava com a alma humana. Já que não tem poder de penetrar o interior, cuida apenas do exterior do homem (Mc 7.6-10).

 

Então o alvo do homem não era a glória de Deus, mas simplesmente guardar a lei pela lei em si. Eles não entendiam que a lei fora dada para vida. Esta é uma diferença crucial com o Evangelho, já que toca o coração humano, a pessoa pode ser transformada pelo poder que emana do Espírito de Deus.

 

Poucas pessoas têm entendido isto. Alguns ainda diferenciam maturidade emocional de maturidade espiritual.

 

Muitos religiosos têm atração pelo poder, querem controlar, manipular. Certa feita numa reunião de Presbitério disse o seguinte: "a impressão que eu tenho é que vocês conspiram contra o Reino de Deus". Já havia ouvido coisa similar, numa reunião com o grupo de liderança cristã em Brasília, quando o então Ministro Aldo Fagundes afirmou que a liderança de sua igreja conspirava contra a santidade.

 

Conclusão

 

Por que a fé cristã se diferencia da religião?

 

  1. A fé cristã mira mais no valor da vida humana e menos nos rituais religiosos.

 

O que Jesus faz neste texto? Chama o homem para o centro. "Vem para o meio!" (Mc 3.3). Se nossa religiosidade não coloca o valor do homem no centro de nossa teologia, estamos perdendo a referência de Deus. "A religião pura e sem mácula para com nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo." (Tg 2.27) Jesus chama a atenção daqueles religiosos tão preocupados com a lei do Antigo Testamento, ao perguntar-lhes: "É lícito fazer o bem ou o mal?" (Mc 3.4)

 

Como cristãos somos conhecidos por regrinhas: "Não fume, não beba, não dance, não jogue". Não dá para a gente ser conhecido de forma mais humana? Os cristãos são respeitáveis com as jovens; tratam bem o meio ambiente, tratam seus funcionários com dignidade, os maridos cristãos tratam suas mulheres de forma mais cuidadosa? Cuidam dos pobres, lutam pela dignidade do ser humano? Naturalmente não estou aqui fazendo uma apologia destas práticas acima, mas o que gostaria é de que pudéssemos ter uma visão mais madura das coisas espirituais.

 

Era isto que Deus queria mostrar ao seu povo quando falou que não mais escreveria sua lei em tábuas de pedras e sim no coração. Deus está interessado na plenitude da vida interior. Portanto, tudo que fizermos para restaurar o homem à sua dignidade é o que Deus espera de nós.

 

No livro O Profeta Pródigo, Tim Keller afirma como a atitude do profeta Jonas se torna complicada na relação com as pessoas: “Por duas vezes Jonas se ve num encontro com pessoas diferentes dele no que diz respeito à religião e a raça. Em ambas as ocasiões, seu comportamento é de desdém e nada útil, enquanto todos os pagãos têm sistematicamente uma atitude mais admirável que a dele (...) Por que o capitão censura Jonas? Porque Jonas não está interessado em seu bem comum (...) o capitão insiste enfaticamente para que Jonas faça o que puder por todos eles (...) Jonas não usa os recursos de sua fé de forma solidaria ao sofrimento de seus concidadãos humanos (...) amando seu próximo e servindo suas necessidades práticas.” (São Paulo, Ed. Vida Nova, 2019, p. 41-42)

 

  1. A fé cristã confronta nossas motivações – Aqueles homens estavam na sinagoga, diante do salvador do mundo, mas qual era o propósito de estarem reunidos num culto ao Deus todo poderoso? "E estavam observando a Jesus para ver se o curaria em dia de sábado, a fim de o acusarem" (Mc 3.2). Por isto, ao terminar o culto, saíram dali para conspirar em como lhe tirar a vida (Mc 3.6).

 

Vinham a Igreja e saiam pior, para pecar. Usavam o tempo da igreja para maquinar o que poderiam fazer depois do culto. É bom lembrar que o primeiro assassinato aconteceu logo depois de um culto. Caim matou seu irmão Abel, depois de terem participado de uma cerimonia de oferendas a Yahweh. Paulo afirma que muitas pessoas se reuniam nos cultos para pior, e não para melhor (1 Co 11). Em Timóteo, afirma que na igreja existiam aqueles que penetravam sorrateiramente nas casas e conseguiam cativar "mulherinhas sobrecarregadas de pecados, conduzidas de várias paixões" (2 Tm 3.6).

 

Jesus confronta aqueles homens com suas atitudes, suas motivações para estarem na casa de Deus. Qual é o propósito de nossa religiosidade?

 

Certa vez, um casal muito simpático começou a frequentar uma igreja que eu pastoreava. Eles estavam vindo de uma igreja que havia se esfacelado por causa do pecado moral de seu pastor, então, desconfiavam agora de tudo e todos. Então, depois do culto, eles me cumprimentavam na porta da igreja, entre risos e abraços e me diziam: “Pastor, estou te avaliando.” Um dia, porém, eu resolvi conversar com eles e lhes disse: “Vocês têm me avaliado várias vezes, isto significa que todas as vezes que vocês vêm à igreja, vocês não estão abertos para ouvir a palavra de Deus, mas estão prontos para questionar as verdades de Deus. Durante este tempo, vocês não têm compromisso com a igreja, vocês não se sentem livres para adorar porque estão numa atitude de suspeita, não colocam as vidas de vocês a serviço do reino, não contribuem porque vocês não acreditam na liderança desta igreja. Minha sugestão para vocês é que procurem uma igreja na qual vocês possam olhar para o pastor e dizer: “Este aqui é um homem de Deus. Esta igreja é biblicamente séria, e eu preciso parar de ficar avaliando a igreja e permitir que eu possa contribuir para esta igreja.” Pelo que sei, este casal nunca mais retornou à nossa igreja.

 

Qual é a motivação que tenho para o culto? Para a igreja? Para as coisas de Deus? Como me comprometo com elas? Me assento no culto para julgar os outros ou para derramar minha alma diante de Deus? Para adorar a Deus ou para encontrar um motivo para crítica ou condenação como fizeram estas pessoas quando Jesus convidou o homem enfermo para se colocar diante de todos?

 

  1. A fé cristã Focaliza no ponto certo – “Olhando-os ao redor, indignado e condoído com a dureza do seu coração, disse ao homem: Estende a mão. Estendeu-a, e a mão lhe foi restaurada.”(Mc 3.5)

 

O que está no foco central aqui é a vida humana, sua cura e restauração. A glória de Deus se revela quando a vida do ser humano, criado por Deus para ser pleno, se plenifica de fato. Vocês já pararam para perceber que toda cura bíblica tem o objetivo de restaurar o homem à sua condição de normalidade?

 

O alvo de Deus é que o cego veja

O surdo ouça

O paralitico ande

O morto ressuscite

Aquele que se encontra escravizado pelo diabo seja liberto.

 

Por que Jesus age em nossa vida? Para nos curar! Ricardo Barbosa disse que prefere a palavra redenção, e acho a sugestão dele pertinente. A obra de Deus a nosso favor é um resgate, trazendo-nos novamente à condição plena de vida. É isto que o Evangelho de Cristo faz no coração do homem pecador, desorientado, sem rumo, sem direção.

 

Jesus se condói e fica indignado com a atitude dos religiosos porque eles não conseguem entender o propósito de Deus na vida daquele homem, na sua restauração e mesmo participando de uma cerimônia religiosa tinham perdido o sentido de estarem ali . Quão longe estavam da visão de Deus. Queriam tanto guardar o sábado, e não se lembravam do significado do sábado, que visava o bem-estar do homem e sua dignidade. Queriam tanto guardar a Lei, mas não entendiam o foco central da lei, que era dar vida ao ser humano.

 

  1. A fé cristã não está centrada no que fazemos, mas no que Deus faz – A grande verdade é que o Evangelho não é sobre nossas habilidades, competências, virtudes, mas sobre Deus.

 

Por exemplo, se você colocar sua moral na frente você rejeita o evangelho.

Se você pensar que é você quem faz, você perdeu o Evangelho.

Se você tentar fazer qualquer coisa para Deus, achando que com isto você vai impressioná-lo, ao invés de fazer as coisas por Deus, porque ele fez (gratidão), você não está entendendo realmente o evangelho. "Se o maior pecador que você conhece não é você, você precisa se conhecer." - C.S. Lewis.

 

O autor aos hebreus afirma: “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é fruto dos lábios que confessam o seu nome.” (Hb 13.15). O que é um sacrifício? É algo que fazemos para Deus. Mas que tipo de sacrifício ele deseja de nós?  Sacrifício de louvor. De alguém que reconhece o que Deus fez por ele, e com gratidão oferece a Deus o seu culto. Seu culto não é para impressionar a Deus. O seu culto é para agradar a Deus. O religioso acha que o centro do culto é ele mesmo, mas o Evangelho coloca o centro do culto em Deus.

 

Os cristãos de Galácia, perderam a referência da autêntica fé cristã e começaram a pensar que tudo dependia deles, e Paulo os faz lembrar que Deus é quem está no centro.

 

Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus exposto como crucificado? Quero apenas saber isto de vós; recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé?” (Gl 3.1,2)

 

À Igreja de Corinto Paulo é ainda mais claro:

Não que por nós mesmos sejamos capazes de fazer alguma coisa como se partisse de nó; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus, o qual nos habilitou a sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata mas o espírito vivifica.” (2 Co 3.5-6)

 

Na carta ao jovem pastor Tito ele afirma: “Não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo a sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar renovador e regenerador do Espírito Santo.” (Tt 3.5).

 

A fé cristã não é sobre o que fazemos, mas sobre o que Deus faz. Não fazemos as coisas para Deus como uma razão para auto exaltação, mas fazemos como gratidão, declarando nossa alegria pelo que recebemos e nossa gratidão pelo que ele fez.

 

O Evangelho “não é fundamentalmente um modo de vida. Não é algo que fazemos, mas que foi feito por nós e ao qual devemos responder. O evangelho não diz respeito ao que fazemos, mas ao que foi feito por nós; mesmo assim, o evangelho resulta em um modo de viver completamente novo.” (Tim Keller

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O evangelho é, portanto, a notícia do nosso resgate. Estávamos escravizados, perdidos e separados, mas pela obra de Cristo na Cruz fomos libertos, resgatados e reconciliados.

 

Michael Horton, afirma no seu livro “Cristianismo Sem Cristo”, o seguinte:

“Todas as religiões – incluindo o ‘cristianismo sem Cristo’, que não é cristianismo de jeito nenhum – pressupõem alguma forma de redenção por esforço próprio. É sempre surpreendente, irracional e até mesmo ofensivo para os seres humanos ouvir que a salvação não depende da decisão ou do esforço humano, mas de Deus, que mostra misericórdia (Rm 9.16).”

 

Sua conclusão é a seguinte:

“Então, há realmente apenas duas religiões no mundo: a religião do esforço humano para ascender a Deus por meio de obras, sentimentos, atitudes e experiências piedosas, e a religião das boas-novas da descida misericordiosa de Deus até nós em seu Filho. As religiões, filosofias, ideologias e espiritualidades do mundo diferem apenas nos detalhes. Independente de estarmos falando de Dalai Lama ou do Dr. Phil, do Islã ou da Oprah, de liberais ou conservadores, a convicção mais intuitiva é a de que somos boas pessoas que precisam de bons conselhos, não pecadores impotentes que precisam de boas-novas.” 

 

 

 

 

 


Um comentário:

  1. Bom dia. 'Há livro na Bíblia escrito especialmente para corrigir as distorções dos “judaizantes”. Que livro é esse Pastor?

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