“Foi, pois, Bate-Seba ter com o rei Salomão, para falar-lhe por Adonias. O rei se levantou a encontrar-se com ela e se inclinou diante dela; então, se assentou no seu trono e mandou pôr uma cadeira para sua mãe, e ela se assentou à sua mão direita.” (1 Rs 2.19)
Introdução
Não é fácil lidar com nossos pais quando eles pecam, demonstram fraqueza de caráter, se mostram contraditórios, abusivos ou injustos. Muitos filhos simplesmente se desorientam diante da falha de seus pais, justamente porque eles deveriam ser o exemplo de pessoas honradas, e que nos puniram tantas vezes por causa dos erros que cometemos.
Como lidar com os pais quando descobrimos que eles pecam, mentem, falham? Descobrir que nossos pais não são perfeitos pode ser desestruturante na mente e nas emoções de muitos filhos. Sabemos que todos somos pecadores, mas descobrir ou perceber o pecado em nossos pais pode ser uma das experiencias mais devastadoras da alma. Precisamos aprender a lidar com o fracasso de nossos pais, perdoá-los, e entender a grande verdade bíblica de que “não há justo sequer um diante de Deus”. Mas que é uma experiencia difícil, certamente é. Eu passei por algo similar na minha vida e sei como isto é dolorido.
Este texto nos fala de Salomão, e de seu relacionamento com sua mãe. O que Salomão faz é notório.
Salomão recebe sua mãe na sala do trono, e tudo indica que esta foi a primeira vez que ela foi vê-lo depois que ele assumiu o trono de Davi, e sua reação foi de honra a uma mulher cuja biografia não era de uma santa. Quando ela se aproxima do trono real, logo após a sua coroação, ele se curva diante dela (segundo o protocolo, era ela quem deveria se curvar diante do rei) e manda colocar um trono ao seu lado para que ela possa se assentar ao seu lado, e a dignifica e honra. (1 Rs 2.19).
Quem era sua mãe?
Ela fora a “Mônica Lewinsky” de Davi. Entretanto, Salomão a trata com dignidade, a promove e a reconhece como mãe. Isto para mim é um bom exemplo de amar sem idealizar. Ela era aos olhos da população a mulher que havia gerado um drama sem precedente em Israel, mas ainda assim era a mãe, e este a faz assentar-se no trono, ao seu lado. Tudo mundo sabia do currículo de Batheseba, e ele não era nada bom, mas ainda assim, Salomão a honra curvando-se diante dela e fazendo-a assentar-se ao seu lado.
Este episódio nos lembra alguns princípios:
1. Nossos pais falham, mas isto não nos dá o direito de desprezá-los.
Israel estava passando por um momento sensível de transição. Seu pai, o amado rei, havia acabado de morrer, e a transição do reinado não foi algo tranquilo. Muita competição.
Salomão não era o sucessor natural de Davi de acordo com a Bíblia:
“Estes foram os filhos de Davi, que lhe nasceram em Hebrom: o primogênito, Amnom, de Ainoã, a jezreelita; o segundo, Daniel, de Abigail, a carmelita; o terceiro, Absalão, filho de Maaca, filha de Talmai, rei de Gesur; o quarto, Adonias, filho de Hagite; o quinto, Sefatias, de Abital; o sexto, Itreão, de Eglá, sua mulher. Seis filhos lhe nasceram em Hebrom, porque ali reinou sete anos e seis meses; e trinta e três anos reinou em Jerusalém. Estes lhe nasceram em Jerusalém: Simeia, Sobabe, Natã e Salomão; estes quatro lhe nasceram de Bate-Seba, filha de Amiel.” (1 Cr 3.15)
O filho primogênito de Davi, foi Amnon, que se envolveu num escandaloso incesto com sua irmã Tamar, estuprando-a. tempos depois seria assassinado por seu irmão Absalão. O segundo foi Daniel, e a Bíblia nada diz a seu respeito, dando-nos a impressão de que morreu ainda criança. O terceiro foi Abalão, que tentou assassinar Davi para usurpar o reinado. O quarto, Adonias, que foi executado a mando de Salomão por causa de um pedido esdruxulo que fez, quando decidiu pedir que a concubina de Davi seu pai, lhe fosse dado como esposa. Salomão buscava um motivo para tirar Adonias da concorrência ao trono. Por estar Adonias hierarquicamente adiante dele, e anteriormente ter tentado assumir o trono no vácuo e indecisão de seu pai Davi, era sempre uma ameaça e um risco de tentar dar outro golpe de estado. Então, o seu pedido petulante se transformou em sua condenação e sentença de morte.
Todos conheciam a mãe de Salomão em Israel. Sua história, o seu envolvimento adulterino com o rei, o escândalo que abalou o reinado de Davi era público, envolvendo uma trama, assassinato, traição. Batheseba não era das mulheres mais bem faladas e nem tinha boa reputação em Israel. A atitude de Salomão a dignifica. Ele sabe de tudo que aconteceu com sua mãe, mas ainda assim entende que precisa honrá-lo. Não poderia deixá-la eternamente condenada nem no ostracismo por causa de seu passado. O que Salomão faz com sua mãe a resgata da vergonha de seu pecado e a restaura publicamente.
Nossos pais são pecadores. Eles falham, se equivocam, exageram, mas isto não dá a nós, o direito de, como filhos, desprezá-los ou nos afastarmos deles. Apesar da dor e da vergonha que eles podem ter causado em nós, deve existir um momento de restauração e perdão, de cura e resgate. Foi isto que Salomão fez com sua mãe.
2. Honrar pai e mãe não é apenas um mandamento, mas uma benção.
Por que devemos honrar nossos pais? Existem pelo menos quatro razões para honrarmos:
- Honrar aos pais traz honra – Se é correto afirmar que pais se sentem honrados quando os filhos são honrados, devemos também entender que filhos que honram os pais também recebem honrarias.
Em Pv. 30.17 há uma observação muito séria sobre a desconsideração de filhos para os pais. “Os olhos de quem zomba do pai ou de quem despreza a obediência á sua mãe, corvos do ribeiro os arrancarão e pelos filhotes da águia serão comidos”.
É uma advertência grave porque tem os olhos apontam para a capacidade de visão e interpretação dos fatos, de fazer leituras corretas da vida. Ter os olhos arrancados significa não ser capazes de enxergar e ver a vida com clareza. A perda de visão atinge os afetos, torna as emoções confusas, afeta a espiritualidade. Obviamente esta é uma linguagem simbólica, mas o sentido salta aos olhos do leitor atento. Não honrar os pais, retira de nós a capacidade de enxergar corretamente a vida, afinal, os olhos são a lâmpada da alma...
Talvez seja por isto que este mandamento seja o primeiro mandamento com promessa. “Honra a teu pai e a tua mãe, como o Senhor, teu Deus te ordenou, para que se prolonguem os teus dias e para que te vá bem na terra que o Senhor, teu Deus, te dá”. (Dt 5.15).
Para termos benção do Senhor e alegria na vida precisamos honrar nossos pais.
- Precisamos honrar nossos pais por Deus ordenou que assim o fizéssemos - “Honra a teu pai e a tua mãe, como o Senhor, teu Deus te ordenou” (Dt 5.15).
Honrar os pais não é convenção social, nem foi articulado por homens, mas pelo próprio Deus. Este é o quinto mandamento, e implica que, na síntese de todos os mandamentos que Deus queria dar ao povo, este foi o primeiro relacionado aos relacionamentos. Deus nos ordenou. Esta é uma ordem da criação. Tem a ver com o design e a gênese humana.
Esta deveria ser uma razão mais que suficiente para que honrássemos os nossos pais. O livro de provérbios é cheio de recomendações sobre este assunto: “Quem maltrata o pai, e expulsa a mãe é filho indigno e infame” (Pc 19.26). Honrar significa considerar com dignidade, atender suas necessidades com respeito. É mais que obediência, embora isto esteja implícito na honra.
C. Para que se prolonguem seus dias na terra - Este mandamento é também curioso, porque é o único mandamento com uma promessa.
“Honra o teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias
na terra que o Senhor Deus te dá” (Ex 20.12).
Honra os pais significa qualidade de vida para os filhos.
Não existe filho “abençoado” que não possua uma relação de cuidado, zelo e honra pelos pais, por mais difíceis e complicados que estes sejam. E olha que já pais bem complicadinhos por ai... Gostaria ainda de ressaltar que este mandamento não é uma carta branca para pais levianos, pérfidos e irresponsáveis.
Este texto parece apontar para a longevidade da vida. Filhos que possuem relação positiva com seus pais têm maior capacidade de viver longamente. Se você deseja ter longos dias na terra, é melhor honrar pai e mãe.
- Para que te vá bem na terra - Numa época em que a autoridade é tão relativizada, precisamos lembrar do propósito de Deus ao estabelecer a família.
Este mandamento impõe à comunidade o cuidado com os idosos que já não são mais produtivos. Possui uma dimensão social. Somente a consciência que não foi sensibilizada por Deus enxerga os seres humanos como meros agentes de produção. Por isto, não existe aposentadoria que substitua a responsabilidade de honra dos filhos para com seus pais.
Honrar ao pai e mãe traz qualidade de vida para nós.
Muitas vezes vejo pessoas tão preocupadas em cuidar de sua saúde física, comida naturalista, nada de fritura, carne, coca cola nem pensar, muita academia e malhação para que tenham saúde no final da vida, mas aqui encontramos uma boa recomendação aos fisiculturistas e vegetarianos, que prezam tanto pela qualidade de vida e bem-estar: “Honra ao teu pai e tua mãe para que te vá bem!”. Vivemos dias em que as pessoas valorizam tanto a academia porque querem ter um estilo de vida saudável. A Bíblia fala pouco sobre exercícios físicos, mas fala que precisamos cuidar de nossos relacionamentos se quisermos qualidade de vida. Não conheço gente abençoada e plena sem honrar os seus pais.
3. A história de Batheseba neste relato bíblico mostra-nos o triunfo da graça.
Batheseba recebe honra quando ela não deveria receber honra, senão escarnio, julgamento e desprezo.
Salomão, entretanto, trata sua mãe com deferência. Coloca-a numa posição de autoridade e lhe demonstra respeito. Mas não é apenas Salomão que faz isto com ela.
Veja o que lemos na Genealogia de Jesus:
“Jessé gerou ao rei Davi; e o rei Davi, a Salomão, da que fora mulher de Urias.” (Mt 1.6).
Batheseba é incluída na genealogia de Cristo, e isto é estranho por duas razões:
-A primeira é que na genealogia judaica o nome das mulheres não era relevante, ainda que para que uma pessoa seja judia, ela deve nascer de ventre de uma mulher de Israel.
-A segunda, pelo seu péssimo currículo. Ela não era uma santa. Então, para que lembrar que “aquela que fora mulher de Urias” faz parte da genealogia de Jesus. Tantas outras mulheres com muito mais virtude foram omitidas, por que então citar esta mulher?
O fato do nome de Batheseba aparecer na genealogia de Cristo revela a graça de Deus.
Deus não está interessado no nosso currículo nem na nossa performance, porque ele é especialista em transformar gente sem valor em gente valorosa. Dar reconhecimento a pessoas sem dignidade, resgatar vidas desprezadas socialmente. Deus é especialista em reparar gente torta. O carpinteiro de Nazaré é especialista em pegar madeira bruta e dar formas.
O grande poder da graça é o de restaurar pessoas.
Desta forma, a atitude de Salomão para com sua mãe revela o amor de Deus e o acolhimento que ele nos dá. Deus escolheu pessoas que nada são para confundir as que são. Para mostrar que a graça dele é restauradora, renovadora, e Deus pode e quer fazer coisas novas. Que Deus pode pegar uma pessoa com um histórico tão escandaloso, e dar vida.
Muitas vezes olhamos para o nosso histórico pessoal e familiar. Nenhuma virtude, nenhum mérito, história familiares e pessoais escabrosas. Olhe para sua família. Sei de fatos em minha família que fariam estremecer os murais de minha história pessoal. Deus, contudo, tem uma profunda capacidade de transformar vidas, de refazer contextos históricos, de pegar as pessoas mais estabanadas da vida e inseri-las na sua genealogia.
A genealogia de Jesus é marcada por pessoas destroçadas, sem valor, sem nome e sem dignidade, mas a sua graça refez todas estas coisas.
Conclusão
Uma das pessoas cuja história entrelaçou com a minha e em quem pude ver a graça de Deus de forma tão abundante foi uma tia, irmã de minha mãe. Sua vida foi um acúmulo de desatino, pecado, vida torta, desestrutura emocional e psicológica. Como o pecado cobra um pedágio muito alto e traz uma conta difícil de ser paga, ela teve períodos de sua vida em que apresentou graves distúrbios psiquiátricos com traços de esquzofrenia. Mas pela infinita graça de Deus, ela começou a frequentar uma igreja e fazia questão de levar seus dois filhos, de maridos diferentes, para frequentar a escola dominical. Meus primos cresceram recebendo a influência e cuidado de pastores e de uma igreja amorosa, que muitas vezes levava os meninos para casa. Os dois se tornaram membros da igreja e nunca se afastaram de Jesus. Ela também, aos poucos, foi recuperando sua capacidade e organização mental, e também foi batizada. Na última visita que meus pais lhe fizeram minha mãe lhe perguntou: “Você tem medo de morrer?” E ela, no seu estilo despachado e direto respondeu: “Que medo de morrer Zilá, quem tem Jesus não tem medo da morte!” Aquela mulher de história de desatino e desacerto, era uma filha de Deus, resgatada pelo sangue de Cristo.
Foi isto o que Jesus se propôs a fazer por nós na cruz. Nós estávamos afastados de Deus. Paulo afirma que afastados de Deus, estávamos sem Cristo, separados da comunidade de Deus, estanhos às alianças da promessa e sem esperança, “mas, agora, em Cristo Jesus, vós que estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo.” (Ef 2.13)
Salomão deu dignidade à sua mãe, curvando-se diante dela e colocando-a para se assentar ao seu lado no trono. Não há relato de nenhuma outra mãe da bíblia que tenha recebido tamanha honra de seu filho. Salomão a resgata, o histórico desatinado de sua vida não pode ser apagado, sua vergonha pública não pode ser esquecida, mas ela pode ser restaurada e perdoada, e receber honra e dignidade.
É assim que Jesus faz conosco. Ele nos coloca para assentar com ele no trono, ele convida a nós, cuja dignidade é tão questionada e nos dá lugar de honra. Assim é a graça de Deus. Não é meritória, é gratuita. Não é por merecimento é pela sua misericórdia.
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