terça-feira, 17 de julho de 2012

Mc 12.13-17 O que é de César?

Introdução:

Este texto suscita uma questão sempre importante: Qual a relação entre Igreja e Estado? Como os discípulos de Cristo devem agir em relação às exigências do governo e o pagamento dos impostos? O que fazer diante de regimes desumanos e ditatoriais? O cristão deve ter participação política? Até onde?
O texto afirma que dois grupos radicais, os fariseus e os herodianos, vieram a Jesus para apanhá-lo nalguma resposta ambígua e assim o entregar às autoridades romanas. Os primeiros eram do tipo xiita muçulmano, o grupo mais radical do judaísmo. Os herodianos eram políticos, que apoiavam Roma, que colocara Herodes com autoridade biônica na Judéia. Por sua natureza, eram grupos muito divergentes nas suas causas que se unem para acusar Jesus, o que moral e espiritualmente era difícil fazê-lo. Eles tinham esperança que Jesus desse uma resposta que poderia comprometê-lo e assim seria entregue para ser julgado pelo tribunal romano. Herodes era o representante de Roma, e tinha uma função delegada por um governo militar, prestando subserviência ao Império.
Por estarem debaixo do governo romano, os judeus eram obrigados a pagar um denário por ano de tributo. Considerando que um denário equivale a 1 dia de salário de um trabalhador, e que, no Brasil, trabalha-se 146 dias por ano para pagamento apenas de impostos, cujo propósito é financiar o estado, acho que Roma não era assim tão complicada...
Uma questão que sempre ocupa o campo da ética cristã, que envolve a política é como Cristo e seus discípulos lidaram com as autoridades? Aparentemente eles nunca tiveram problemas com os sistemas políticos, mas uma leitura mais criteriosa mostra alguns conflitos pesados.
ü        Jesus teve enfrentamento com Herodes – Certa feita ouviu um rumor de que o rei queria interferir no seu ministério e sua resposta foi bem reativa: “Ide dizer a esta raposa que, hoje e amanhã, expulso demônios e curo enfermos e, no terceiro dia, terminarei” (Lc 13.32). Certamente esta não foi uma resposta muito pacífica de Jesus.
ü        Paulo, ao receber uma agressão por ordem do sumo sacerdote afirmou de forma dura: “Deus há de punir-te, parede branqueada! Tu estás sentado para julgar-me segunda a lei, e contra a lei, mandas agredir-me?” (At 23.3).
ü        João Batista foi decapitado por ter agido de forma profética contra a baixa moral do estado, acusando diretamente a Herodes por ter possuído a mulher de seu irmão;
ü        Os discípulos enfrentaram as autoridades judaicas, quando foram ordenados a se silenciar diante da ressurreição de Cristo. “Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus” (At 4.19). 

Apesar destes confrontos, a Bíblia sempre recomenda que o povo de Deus se submeta as autoridades instituídas (Rm13.1; 1 Pe 2.13-17) e ore por elas (2 Tm 3.1-4). Todo cristão deve ser sujeito às autoridades por causa do Senhor. O Senhor é glorificado na nossa sujeição (1 Pe 2.13) já que toda autoridade procede de Deus (Rm 13.1). Portanto, o cristão não é anarquista, mas reconhece o governo.

Todo cristão deve ainda ser sujeito à autoridade por causa do princípio subjacente a ela.  A autoridade está baseada em Deus, sendo “enviada por Deus” (Rm 13.1,14). Deus trabalha com princípios de autoridade. O seu corpo trabalha sob uma cadeia de comandos. A autoridade foi enviada por Deus para manter o propósito para o qual ela foi criada e a vida em comunidade pressupõe autoridade. A sociedade precisa de comando (Jz 21.25), sendo estabelecida para que vivamos vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito (1 Tm 2.2).
No entanto, ao lermos Rm 13, o capítulo das Escrituras mais citado sobre o assunto, vemos que a autoridade foi instituída para atingir dois objetivos:
a)- Castigo dos malfeitores – (Rm 13.14)
b)- Louvor dos que praticam o bem – (Rm 13.14)
Então, surge uma questão hermenêutica de difícil interpretação: E quando a autoridade que deveria estar a serviço do bem, torna-se a âncora para a realização do mal? O que fazer quando a autoridade exacerba seu direito e justiça? A Palavra de Deus estabelece o limite da autoridade.
De acordo com as Escrituras, o objetivo da autoridade é estabelecer Justiça – (Rm 13.14) e quando ela deixa de ser ministro de Deus, perde sua autoridade. A Base do direito comum da Inglaterra afirma: “O poder não vem primeiro na sociedade, antes disto vem a justiça e o direito. O príncipe pode ter o poder de controlar e reinar, mas não tem o direito de fazê-lo sem justiça”. Schaeffer diz: “Porque o poder não vem primeiro, antes a justiça e o direito, o príncipe tem o poder de reinar, mas não sem justiça”. John Knox coloca a questão na clássica discussão: Lex rex ou rex Lex? A Lei reina ou reina o rei?
Segundo Rm 13, a fonte da autoridade é Deus, já que a autoridade é delegada, não autônoma. Ela “está sob Deus”. A autoridade é diaconisa de Deus. “É ministra (diakoneo) de Deus, para teu bem” (Rm 13.4), fazendo a liturgia de Deus na terra: “É ministra (leitourgos) de Deus, vingador” (Rm 13.4). Portanto, o limite da autoridade encontra-se quando ela não mais serve a Deus, sendo estabelecido ai o bottom line, ou a linha de divisão.
Este foi o posicionamento dos cristãos primitivos. Existem momentos em que a obediência a Deus é mais importante que a subordinação a um sistema. “Julgai entre vós e nós, se é lícito obedecer-vos antes que a Deus” (At 4.19; 5.29).
Jesus é colocado neste texto sob o crivo dos fariseus e herodianos e afirma seu vínculo com o estado. Somos cidadãos: temos compromisso com o voto, impostos, taxas, bem estar público, uso dos recursos públicos e participação histórica. A política de não fazer política também é política. O fundamento de nossa obediência é o próprio Deus. Ele é a fonte de toda autoridade. O Estado deve proteger seus cidadãos do malfeitor e proteger a sociedade. Quando se faz o contrário, perde a autoridade, torna-se um usurpador.
Ao dar a resposta, o que Jesus está dizendo, porém, é que existem coisas que César exige e que não lhe pertence. Jesus deixou claro isto quando foi indagado sobre o pagamento de impostos. Ele tomou uma moeda e disse: “Dá a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22.20; Mc 12.16-17; Lc 20.24-25). A melhor tradução seria: “Dai a César o que é de César, mas não lhe dê o que não lhe pertence”. Jesus estabelece claramente os limites do poder governamental. Numa tradução mais literal do texto, o que ele está dizendo é: “Daí a Cesar, apenas, o que é de César”. Nunca devemos dar aos homens aquilo que só Deus deve receber.
Nos dias apostólicos, os imperadores romanos começaram a exigir veneração, sendo colocados como semi deuses. As pessoas deveriam se curvar diante dele. Jesus está dizendo que não há nada de errado em pagar os impostos, mesmo quando se trata de um governo usurpado por um império, mas que não devemos ir além disto. Somente Deus deve ser adorado. Ninguém tem autoridade fora de Deus. As autoridades são agentes de Deus, mas elas não são Deus. Existem atitude de nações e governos que conspiram contra Deus. César não tem o poder de exigir adoração, de escravizar e oprimir as pessoas, de matar, de extorquir, de estrangular seus cidadãos com impostos exagerados e mau administrados.
O cristão deve sempre obedecer às autoridades? Sim e não!
Os cristãos têm o dever de resistir tiranias através da não violência, e desobedecê-las, quando elas resolvem entrar em áreas limítrofes. Schaeffer afirma: “O Cristão não apenas pode, mas eventualmente, deve, praticar a desobediência civil”[1]. E o bottom-line é quando se ultrapassa princípios cristãos e exige obediência. Resistir a opressão e perseguição religiosa é uma destas formas de resistência que devemos praticar. Por que os cristãos desobedeceram o Sinédrio?  (At  4.19). Por que foram lançados aos leões?  Rebelião-civil é a resposta. Desobedeceram porque o Estado resolveu assumir o lugar do próprio Deus.

Conclusão:
Em Rm 13.5 somos exortados a não nos sujeitarmos ao governo apenas pelo medo, mas pelo dever de consciência. Nossa consciência deve ser juiz nestas questões. Não podemos agir como o homem que ultrapassa o sinal vermelho e ao ser indagado pelo guarda se ele não havia visto o sinal, responde: “O sinal eu vi, não vi foi o senhor”. Não devemos fazer apenas pelo temor, mas por causa de nossa consciência cristã.
Existem duas razões para se submeter às autoridades: Uma, externa, que é o medo da disciplina e das conseqüências que isto pode trazer para nossas vidas; outra, interna, de foro intimo, tem a ver com nosso coração e consciência. O ideal é que façamos as coisas por causa de nossa consciência. Nós não obedecemos às leis apenas porque tememos que o mega computador da receita nos apanhe, ou por causa do radar rodoviário. Devemos pagar nossos impostos porque Deus afirma que devemos fazê-lo (Rm 13.7). Por causa do dever da consciência “sineidesis” (Rm 13.5).
Não apoiamos nenhuma má aplicação do dinheiro que temos enviado para o governo, mas Deus nos exorta a fazermos todo esforço, como cidadãos, para fiscalizarmos as coisas públicas e ver como o dinheiro está sendo aplicado. Devemos procurar entender o lugar do Estado nas Escrituras Sagradas e agir de conformidade com a exortação da Bíblia. E isto não tem a ver apenas com a questão do imposto. Devemos ainda dar honra, respeito e entender que o Estado é chamado por Deus para exercer certas funções por ele mesmo determinadas.

Aplicações práticas:  

I.         Sujeição não é subserviência -  O fato de aceitarmos a liderança do Estado, não implica que vamos concordar e apoiar atitudes iníquas, leis desumanas e politicas da anti vida. Calvino afirma: “É perversidade, a fim de contentar homens, incorrer na condenacao daquele que é Soberano”[2]

II.       A importância do uso da força diante da maldade e da injustiça - O cristão deve defender-se e à sociedade mediante protesto, todas as vezes que a autoridade ultrapassa seus limites e se torna uma ameaça contra seus cidadãos. Seria patético imaginar protestantismo sem protesto. M.L. King Jr afirmou que “O silêncio legitima a injustiça”. Por isto devemos não apenas falar e lutar contra princípios satânicos, mas demonstrar que existem alternativas cristãs. Impostos extorsivos é uma coisa contra a qual devemos lutar. O governo precisa ser pressionado pelos cidadaos, e pelos politicos (de tambem precisam ser pressionados), e aprender a fazer melhor uso financeiro dos impostos, ao invés de aumentá-lo, todas as vezes que surgem necessidades. Muito do extorsivo imposto que tem sido cobrado dos brasileiros tem a ver com o silencio e o medo de nos manifestarmos contra esta situação. Imprensa, professores, profissionais liberais, devem estar sempre manifestando seu repúdio quando César exige mais do que deveria. Dar a César o que é deu Deus, ou pertence ao homem que trabalha é desumano e historicamente tem sido a causa de muitas revoluções, como aconteceu na Biblia no governo do rei Salomão.

III.     A desobediência civil é muitas vezes imperiosa:  Julgai se devemos obedecer-vos antes que a Deus?  Em casos extremos, empregar o uso da força, como manifestações públicas e pressões políticas como o voto, que se torna uma forma de protesto,  (não da violência) para defender a dignidade do homem e os princípios do Reino de Deus. Por força entendemos não violência, mas o uso de todos instrumentos legais que pudermos para expressar nossa indignação toda vez que o estado abusar de suas prerrogativas. Os Guiness afirma que “num mundo caído, a idéia de justiça legal, sem o exercício da força é ingênua”.  Força não é violência, mas pressão pública.

IV.    O que é de César? O que é de Deus? Sistemas e poderes temporais sempre exigirão de nós a doação daquilo que não podemos lhes dar, porque pertencem a Deus. Durante os dias do cristianismo primitivo, muitos cristãos foram acusados de subversão, porque se recusavam a afirmar que “César é Senhor!”, saudação comum entre os romanos. Eles sempre diziam: “Jesus é Senhor!”. Não se pode dar a César o que é deu Deus.

César vai exigir nosso coração, comprometimento, consciência e adoração. Estas coisas não podem ser dadas a César. Só Deus pode ser adorado. Nosso coração pertence só a Deus, e não a partidos políticos e sistemas.
O que podemos e devemos dar a César? Como cidadãos, precisamos lutar pela nossa nação, para termos uma sociedade mais igualitária, para que a administração dos recursos provenientes das riquezas produzidas pelo nosso país possam abençoar outras pessoas. Precisamos tratar dos bens públicos com bom senso e equilíbrio. Se somos funcionários públicos, precisamos dar exemplo de lealdade e diligência. Dar exemplo de bons cidadãos, lutar pelo bem estar social, pela diminuição da miséria, são coisas que devemos e podemos fazer. Precisamos dar a César o que é de César, mas nunca, dar a César o que não lhe pertence, mas é prerrogativa de Deus.


Anápolis, Julho 2012


[1] Schaeffer, Francis – Manifesto Cristão, Ed. Refúgio, Brasília.
[2] Calvino, Juan – Instituiciones de la religión cristiana. Pg 1194

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