Introdução:
Um dos relatos mais impactantes
de conversão da Bíblia encontra-se neste texto. A dramaticidade, embora
maravilhosa, pode criar uma falsa expectativa de que toda conversão precisa ter
elementos semelhantes e precisam ser espetaculares, quando na verdade, o
aspecto mais importante é que a graça de Deus pode alcançar qualquer pessoa, em
qualquer circunstância, inclusive a nós mesmos. Este texto fala do triunfo da
graça na vida do pecador.
John Stott, num artigo
sobre a conversão de Saulo afirma o seguinte: “Se perguntarmos o que causou a
conversão de Saulo, só existe uma resposta possível: A graça de Deus. Saulo não
decide por Cristo, pelo contrário, ele estava perseguindo a igreja. É melhor
dizer que Cristo decidiu por ele e interveio em sua vida.
Stott passa a enumerar
algumas evidências de que sua conversão foi apenas pela graça:
Primeiro, o estado
mental de Saulo.
Ele julgou Estevão no
seu martírio (At 7.59); ele consentia na sua morte (At 8.1); ele assolava a
igreja, prendendo e acoitando impiedosamente os do caminho (At 8.3) e elaborou
planos para destruir o cristianismo, não se contentando em fustigá-los apenas
em Israel, mas queria fazer uma cruzada, se tornando um “missionário da
perseguição” indo até a Síria (At 9.1).
Sua fama de perseguidor
violento o precedeu em Damasco, a ponto de Ananias, ao ter a visão, hesitar em
se aproximar dele.
Segundo, a
manifestação de Cristo.
Saulo e sua escolta
(não sabemos de quantas pessoas), fizeram uma viagem de 240 Kms, cerca de uma
semana de caminhada, e o Senhor se manifesta a ele, não numa visão subjetiva,
mas numa aparição objetiva, a ponto de seus companheiros também ouvirem a voz,
embora a ninguém tivessem visto (At 9.9).
Jesus iniciou o
processo. Não foi uma iniciativa de Saulo. Ele se aproximou, ele o procurou,
ele o encontrou. Não vemos em Saulo qualquer iniciativa em relação a Jesus, mas
vemos Jesus buscando a Saulo. É a graça triunfando.
Terceiro, as próprias
menções de Paulo sobre a manifestação de Cristo em sua vida. Paulo afirma que “aprouve a Deus revelar seu Filho a mim” (Gl
1.15-16), que ele “obteve misericórdia” ao
ser alcançado pela graça (1 Tm 1.12-13), não era um prêmio de boa conduta e de
busca de Deus. Cristo o conquistou.
C. S. Lewis nos últimos
capítulos de sua autobiografia, ao falar de sua conversão, descreve Deus
buscando-o implacavelmente, como um enxadrista colocando-o numa posição sem
saída, até declarar: “xeque-mate!”
Em tudo isto
percebemos que a graça alcança Saulo de forma unilateral. Não há mérito em tudo
o que lhe aconteceu para se achegar a Deus.
Stott faz outra afirmação
interessante. Para ele, a conversão de Saulo não foi repentina, ainda que o
texto afirme que “subitamente uma luz do
céu brilhou ao seu redor” (At 9.3).
Ele explica seu
pensamento.
Para Stott, Jesus faz
uma pergunta intrigante ”Saulo, Saulo,
por que me persegues?” (At 9.4). Posteriormente quando Paulo relata sua
conversão, ele afirma que Jesus ainda lhe disse: “Dura coisa é recalcitrares contra os teus aguilhões” (At 26.14).
Este era um provérbio
popular na literatura grega, que infelizmente não é bem traduzido para o
português. Sua melhor tradução seria: “pare de dar murro em ponta de faca!”.
Jesus o compara a um touro forte e obstinado que dá coice no ferrão, ferindo-se
ainda mais.
Quais eram estes aguilhões
contra os quais Paulo lutava?
Dúvidas?? Talvez suas dúvidas.
Jung afirma que “o fanatismo só é encontrado em indivíduos que estão
compensando dúvidas secretas”. Exteriormente ele lutava contra, mas na sua alma,
não conseguia parar de pensar em Jesus.
Culpa?? Talvez a morte de Estevão,
pela brutalidade do evento e pela lembrança de sua serenidade e do seu rosto resplandecente,
orando pelos algozes, o tivesse marcado profundamente. Havia algo em sua vida
que o desafiava.
Contradições?? Talvez a luta interna de seu coração, que perante a lei e
os homens aparentava ser um homem irrepreensível, mas tivesse o coração cheio
de lutas interiores, lutas com Deus, com sua pureza, temores o estivesse
destruindo interiormente.
A verdade é que a
pergunta: “dura coisa é recalcitrares
contra os teus aguilhões”, reflete o fato de que o jovem Saulo estava em
crise interior, embora mantendo as aparências e até mesmo, tentando encobrir os
conflitos internos e questões espirituais que explodiam no seu peito. Não é
assim que normalmente fazemos? Negamos, sublimamos e omitimos as dores mais
profundas da alma ao invés de tentar resolver?
Por isto a conversão
de Saulo não foi repentina, mas vinha de um processo de busca e negação que o
jovem Saulo experimentava.
Mas a graça de Deus
triunfa sobre todas as coisas. Alcançando o coração deste impetuoso homem,
cheio de auto confiança e zelo e que agora encontra-se diante de um chamado
inconfundível de Deus para sua vida.
Quais são os efeitos da graça na vida de uma pessoa?
A partir deste texto
podemos enumerar pelo menos quatro.
1.
Uma nova referência
para com Deus
– Paulo se apresenta como um religioso zeloso, tentando fazer as coisas para
Deus, mas na verdade lutando contra Deus. Ele se dirige a Damasco, para prender
os cristãos, e sai de Damasco, pronto a falar de sua experiência e de Cristo.
Uma novo paradigma
espiritual é estabelecido. Uma nova compreensão de quem Deus é. O próprio Paulo
afirmaria posteriormente: “Assim que,
nós, daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne; e, se antes
conhecemos Cristo segundo a carne, já agora não o conhecemos deste modo. E, se
alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que
se fizeram novas” (2 Co 5.16,17). Nova forma de ver a Cristo, nova forma de
lidar com sua espiritualidade.
Quando a graça nos
alcança somos transformados na forma de ver as coisas de Deus e enxergar o
próprio Deus. Paulo enxerga Deus de forma diferente. Uma nova referência de
divindade surge em seu coração.
Quando Ananias recebe
a visão de Deus e a ordem para se encontrar com Saulo ele teme, porque a fama
da violência de Saulo o havia precedido, “Mas
o Senhor lhe disse: Vai, porque este é para mim um instrumento escolhido para
levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de
Israel“ (At 9.15), e em seguida, vemos Paulo pregando Jesus nas sinagogas,
“afirmando que este é o Filho de Deus”. (At
9.20). Visão transformada, novo paradigma, nova referência. De perseguidor a
pregador.
Paulo passa três dias
cego, em jejum e oração. Qual seria o conteúdo de sua oração?
Talvez confissão de pecado,
ao entender o mal que havia causado a pessoas inocentes. O pavor e a morte que
trazia por onde passava.
Talvez tristeza, ao
perceber que tudo que havia feito, em nome de Deus, era na verdade, uma conspiração
contra Deus.
Talvez pedindo
coragem, para enfrentar toda fúria dos judeus e com o escândalo que isto
geraria na sua própria família, entre amigos, e em toda comunidade judaica. O
jovem exemplar do judaísmo era agora aliado dos cristãos, seguidor de Jesus.
Sua vida havia sido desestabilizada e ele teria que lidar com muitos
questionamentos.
2.
Um novo relacionamento
com a igreja – Quando
a ordem foi dada a Ananias, ele relutou: “Senhor,
de muitos tenho ouvido a respeito desse homem, quantos males tem feito aos teus
santos em Jerusalém, e para aqui trouxe autorização dos principais sacerdotes
para prender a todos o que invocam o teu nome” (At 9.13,14).
Ananias estava
estremecido. Não estaríamos também? Barclay afirma que Ananias é um dos grandes
heróis esquecidos da igreja. Sua hesitação era compreensível.
Mas quando Ananias
obedece a visão e vai se encontrar com Saulo, a sua primeira afirmação é
chocante: “Saulo, irmão!”. Stott afirma
que fica sempre emocionado quando lê este texto e que talvez esta fosse a
declaração mais ousada de Ananias e a mais doce frase aos ouvidos de Saulo, que
ainda estava cego depois da visão. Ouvir que ele era aceito pela comunidade,
ouvir as palavras de boas vindas. Ser chamado de irmão.
Saulo é recebido na
igreja.
“A seguir ele se levantou e foi batizado” (At 9.18).
Os presbiterianos
gostam deste texto.
O grande apóstolo cristão não se dirigiu a uma piscina, nem
a um rio, mas levantou-se ali naquele quarto, e Ananias derramou água sobre sua
cabeça e ele foi batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Na
verdade, porém, a grande preocupação do texto não é ensinar sobre a forma de
batismo. Esta não era a preocupação da Igreja Primitiva. Em Atos 2, depois do
sermão do Pentecoste, três mil pessoas foram batizadas. Provavelmente a efusão,
água borrifada nas pessoas tenha sido a forma utilizada. Em Atos 8, no batismo
do eunuco, eles desceram ao rio, embora o texto não nos ensine o batismo por imersão,
ele pode induzir o leitor a pensar no batismo por imersão. Agora em Atos 9,
Paulo se levanta e é batizado, isto pode nos fazer entender que o batismo foi
por aspersão, água derramada na cabeça, já que estavam numa casa e não havia
tanque para ser batizado ali. As casas normalmente não tinham piscina e tanques
de purificação que coubessem uma pessoa.
A benção, na verdade é
que Paulo agora é irmão. Ele assume sua fé. Ele recebe o batismo.
Saulo ainda permanece
alguns dias em Damasco (At 9.16b). Ele agora faz parte da igreja. Ele possui
uma identidade com o povo de Deus. Saulo não ficaria muito tempo em Damasco,
porque logo depois de deixar de ser perseguidor, torna-se perseguido. De
caçador a caça. Os irmãos sabendo que Saulo corria risco de vida, durante a
noite o colocam num cesto e o descem pela muralha da cidade. Sair pelos portões
da cidade que estavam vigiados seria muito arriscado.
3.
Um novo direcionamento
– A
ação da graça de Deus na vida de Saulo, gera ainda uma nova forma de conduzir
sua história. “Levanta-te, entra na
cidade, onde te dirão o que te convém fazer” (At 9.6)
Isto demonstra que sua
vida agora tem uma nova direção. Antes era dirigido pelos seus impulsos, pela
sua religiosidade e zelo, ele fazia a sua agenda, estava cheio de planos, mas
agora sua história muda radicalmente. Ele sequer consegue caminhar sozinho. “E, guiando-o pela mão, levaram-no para
Damasco” (At 9.8). Ele não tem mais direção própria.
Sua vida agora passa a
ser controlada por Cristo. Ele não lhe pertence mais. Ele foi “capturado” por
Cristo. Jesus o alcançou. Não foi Saulo quem conquistou Jesus, foi Jesus quem
conquistou a Saulo. Ele não encontrou a Jesus, mas foi encontrado por Jesus.
Ele não diz mais como as coisas devem ser feitas, Jesus diz agora como as
coisas devem ser feitas.
“Levanta-te, entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer” (At
9.6)
Sua agenda não vale
mais. Seu roteiro de viagem é desprogramado. Isto é o que significa conversão.
Você para de acreditar que faz da sua vida o que você quer, mas entende que a
agenda é de Deus.
“Conversão é uma
mudança revolucionária de governo que resulta numa mudança radical no
comportamento” (Ray Stedman).
4.
Uma nova missão – Até aqui Paulo sabia o
que tinha de fazer, e cumpria sua missão. Agora Deus vai lhe informar o que ele
espera dele.
Apesar de temeroso,
Ananias vai se encontrar com Saulo. Deus pede a Ananias que lhe diga o que
Saulo fará daqui em diante: “Vai, porque
este é para mim um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os
gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel, pois eu lhe mostrarei
quanto lhe importa sofrer pelo meu nome” (At 9.15,16).
Deus lhe dá uma nova
missão direcionada a três grupos: gentios, reis e judeus.
Os gentios são as nações não judias, que viviam foram
das promessas de Deus e das alianças que Deus fizera com Israel, que não
conheciam as leis e os profetas, e que estavam envolvidos em práticas
religiosas pagãs. Posteriormente Paulo se autodenominaria de “apóstolo dos
gentios”, pois, de fato foi o campo missionário no qual ele exerceu
prioritariamente o seu chamado.
Os reis. Saulo penetraria em estruturas de poder e
falaria a pessoas em posições de autoridade e influência. No livro de Atos há
muitos relatos de Paulo pregando a procuradores, governadores e reis. Deus
estava cumprindo seu propósito na sua vida.
Os filhos de Israel. Paulo sempre priorizava as sinagogas
judaicas nas suas viagens missionárias. Certamente por causa da identificação
cultural e linguística. Ele chega a afirmar que queria ser anátema, por causa
do seu povo, que era zeloso pelas coisas de Deus, embora sem entendimento,
porque ao construírem sua própria justiça baseada na lei, eram incapazes de
perceber a justiça de Deus revelada em Cristo (Rm 10.1-3).
Conclusão
No jardim do Éden,
Deus encontra Adão e lhe pergunta: “Adão,
onde estás?” (Gn 3.9). Ainda hoje esta é a pergunta que Deus faz a nós,
homens do Século XXI: Onde você está, existencialmente, espiritualmente?
Mas a pergunta que
Deus faz a Saulo foi diferente: “Saulo,
Saulo, por que me persegues?”. Jesus indaga quais eram seus motivos, qual
era sua agenda, o que estava dirigindo a sua vida, e porque ele insistia em
viver sua vida conspirando, se opondo, negligenciando e distanciado de Deus?
Este texto revela o
triunfo da graça.
Podemos ser
transformados como Saulo foi.
Não porque exista algo
bom em nós que leve Deus a se impressionar com nossa moral e religiosidade,
pelo contrário, nossa agenda não inclui Deus, negligencia Deus e o distancia de
nós, muitas vezes somos mesmo perseguidores, ainda que de forma inconsciente,
como fez Saulo.
A pergunta de Deus é:
Por que você se opõe a mim? Por que você continua dando murro em ponta de faca?
Por que você age assim?
Nós nada temos para
oferecer a Deus, muitas vezes agimos inconscientemente, como inimigos dele.
Distanciados. Alienados.
Mas a graça de Deus nos
alcança, nas estradas que buscamos caminhar. Ali somos transformados. Recebemos
novo nome, nova identidade, nova comunidade e nova missão.
Graças a Deus pela sua
infinita e grandiosa graça!
Maravilhosa graça!
Superabundante graça!
Nenhum comentário:
Postar um comentário