Introdução
Ao lermos Atos 15, ficamos impressionados com a seriedade,
maturidade e santidade com que tratam das questões polêmicas da igreja.
Discussões sempre brotam na igreja, muitas vezes com temas controvertidos,
acusações e heresias e a Igreja
Primitiva também teve que tratar de graves questões.
Em Atos 15, surge uma questão da
lei mosaica que estavam incomodando a igreja. Os gentios convertidos teriam ou
não que se submeter ao rito judaico da circuncisão? “Alguns indivíduos que desceram da Judeia ensinavam aos irmãos: Se não
vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos” (At
15.1).
A igreja precisou se posicionar:
“Então, se reuniram os apóstolos e os
presbíteros para examinar a questão” (At 15.6). Duas expressões chamam a
atenção: “Não pequena discussão” (At 15.2) e “Havendo grande debate” (At 15.5). Os apóstolos deixaram claro que
tais ritos não eram importantes, e que se constituíam uma ameaça à simplicidade
do evangelho. Entretanto, fizeram recomendações alimentares que ainda hoje desafiam
os estudiosos da Bíblia. Para a fé cristã as regras alimentares não
imprescindíveis?
Grupos como os adventistas
defendem uma alimentação mais equilibrada e saudável, o que também concordamos,
mas diferimos deles quando transformam as prescrições alimentares em regras
rígidas de santidade e que se não forem obedecidas, podem comprometer a
salvação, e ao lermos o texto bíblico, observamos que os apóstolos e
presbíteros, deixaram claro que a circuncisão não eram importante, mas fizeram
quatro recomendações, sendo que duas delas tinham relação direta com
alimentação.
“Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a
nós, não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias: Que vos
abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne
sufocada, e da fornicação, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes. Bem
vos vá”(At 15.28-29).
Nas
deliberações finais, quatro recomendações:
a. Culto só a Deus – “abstenhais das coisas sacrificadas a
ídolos”.
- Duas regras alimentares – “Não comer carne de animais sufocados nem com sangue”
- Fidelidade fosse o ponto central da família –
Deveriam se abster das relações
sexuais fora do casamento.
Não temos dificuldade em entender a
questão da idolatria, nem da recomendação sobre a santidade do sexo, mas o
texto afirma que os apóstolos também determinaram as regras alimentares como
“coisas necessárias”, que deveriam ser seguidas pelos novos convertidos. Se são
essenciais, porque não as cumprimos? Se não são, porque os apóstolos determinaram?
Diante disto ficamos com uma questão hermenêutica.
Como lidar com as proibições alimentares? Como explicar as regras de
alimentação que foram estabelecidas, quando Jesus ensinou claramente que todo
alimento é puro? Como
entender a recomendação relacionada a alimentos? As duas primeiras são
claramente ratificadas no Novo Testamento:
A. Abstenção de coisas contaminadas
pelos ídolos – Os gentios que se convertiam, vinham de uma cultura pagã e
idólatra. Muitos deles haviam participado de rituais religiosos, próprios de
sua cultura, na casa de seus ancestrais, e eles precisavam fazer uma ruptura
com este mundo pagão. Tinham que abandonar sua idolatria e tudo que estava
relacionado aos ídolos.
B. Relações sexuais ilícitas. A
imoralidade entre os gentios era bem conhecida. Adultério (sexo de uma pessoa
casada feita fora do matrimonio); fornicação (sexo antes do casamento);
homossexualismo (sexo com pessoas do mesmo sexo) e prostituição (sexo mediante
pagamento), tudo isto precisava ser reinterpretado à luz do Novo Testamento.
Tais recomendações eram necessárias
não apenas naqueles dias, mas nos dias de hoje. Mas como lidar com as
proibições de alimentos diante dos textos que lemos que afirmam que nada é
recusável se recebido com ações de graças? Tais restrições não se coadunam com
as verdades do Novo Testamento.
Explicações possíveis.
a)- Pressão da ala conservadora - Isto poderia fazer parte da exigência
de um bloco conservador que participava da reunião (At 5.5), e que a liderança
da igreja achou que não valeria a pena ficar discutindo pontos tão supérfluos e
deixou que isto seguisse nas recomendações gerais.
b)- Efeito associativo - Outra possibilidade é que houvesse alguma
coisa no mundo pagão que levou os apóstolos e presbíteros a pedirem que não
comessem tais alimentos, pelo efeito associativo que pudesse gerar.
c)- Escândalo - A terceira, poderia ser o fato de escandalizar um irmão
mais fraco. Quando Paulo fala de vinho e carne, ele afirma que, por causa da
consciência mais fraca, eventualmente deveríamos nos abster de determinados
alimentos, não porque os alimentos em si mesmos, fossem o problema, mas por
causa do amor cristão: “E, por isso, se a
comida serve de escândalo a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que não
venha a escandalizá-lo” (1 Co 8.13). Paulo trata longamente deste assunto
em 1 Co 8. afirmando que para determinadas culturas, comer alguns alimentos era
um golpe na “consciência mais fraca”(1
Co 8.12), e este escândalo comprometeria a aceitação do evangelho. Em outras palavras, não era a
comida em si o problema, e sim o cuidado com o irmão: “Não é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos , se
não comermos, e nada ganharemos, se comermos” (1 Co 8.8).
Por uma destas razões as
restrições alimentares foram impostas.
Precisamos, portanto, avançar um
pouco em outros textos bíblicos, para entendermos como a questão dos alimentos
é tratada nas Escrituras Sagradas.
O ensinamento de Jesus acerca dos alimentos
“Jesus chamou novamente a multidão para junto de si e disse:
"Ouçam-me todos e entendam isto: não há nada fora do homem que, nele
entrando, possa torná-lo ‘impuro’. Pelo contrário, o que sai do homem é que o
torna ‘impuro’. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça! Depois de deixar a
multidão e entrar em casa, os discípulos lhe pediram explicação da parábola.
"Será que vocês também não conseguem entender? ", perguntou-lhes
Jesus. "Não percebem que nada que entre no homem pode torná-lo ‘impuro’?
Porque não entra em seu coração, mas em seu estômago, sendo depois
eliminado". Ao dizer isto, Jesus declarou "puros" todos os
alimentos. E continuou: "O que sai do homem é que o torna ‘impuro’. Pois
do interior do coração dos homens vêm os maus pensamentos, as imoralidades
sexuais, os roubos, os homicídios, os adultérios, as cobiças, as maldades, o
engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a arrogância e a insensatez. Todos
esses males vêm de dentro e tornam o homem ‘impuro’ " (Mc 7.14-23).
As regras de alimentação judaicas
eram muito estritas e rígidas. Uma leitura do livro de Êxodo e Deuteronômio nos
revela como havia uma longa lista de alimentos e animais proibidos por lei, até
a forma de matar o animal: “Não podia ser morto por asfixia”, e em especial, a
questão do sangue.
Mas Jesus relativiza toda esta
questão externa da santificação, que era tão cara aos judeus, segundo a
tradição e os ensinamentos de Moisés. Ele deixa claro que tais questões são externas. O grande problema
espiritual do homem não está na sua dieta, se toma ou não toma vinho, se come
ou se não come carne, mas como está seu coração. Marcos relata que “Ao dizer isto, Jesus declarou puros todos os
alimentos.” O problema do homem não é o que ele devora, mas o que o devora,
“pois do interior do coração dos homens
vêm os maus pensamentos”. O coração do homem, e não o seu estômago é o
grande problema.
O pensamento paulino
Paulo também confronta a visão
ascética e de regras alimentares. Quando escreve a Timóteo, ele critica aqueles
que proibiam o casamento (obrigavam o celibato), e “exigiam abstinência de
alimentos”(regras de alimentação), concluindo que: “tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é
recusável” (1 Tm 4.3,4). Paulo relativiza a questão da comida em si mesmo,
exceto quando o que comemos escandaliza o irmão. O problema não é a comida em si,
mas se o que eu como, causa problemas na fé do irmão.
“Não é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos, se não
comermos, e nada ganharemos, se comermos” (1 Co 8.8). O único critério que
todo este texto de Coríntios usa é o amor com o irmão que tem consciência mais
fraca. Na carta aos Colossenses, critica ainda aqueles que julgavam os outros “por causa de comida e bebida” (Col
2.16), estabelecendo regrinhas como “Não
manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro” (Col 2.21),
afirmando que todas estas coisas são “rudimentos
do mundo” (Cl 2.20).
A carta aos Hebreus
A carta aos hebreus é muito
importante por ser uma espécie de tradução do conteúdo da lei à luz do
evangelho de Cristo. Qual o significado dos sacrifícios, das ofertas, da lei
mosaica, das regras de alimentação para os novos convertidos que vinham do
judaísmo?
O autor aos Hebreus afirma:
“Não se deixem levar pelos diversos ensinos estranhos. É bom
que o nosso coração seja fortalecido pela graça, e não por alimentos
cerimoniais, os quais não têm valor para aqueles que os comem” (Hb
13.9). Outra versão diz: “Pois nunca tiveram proveito os que com isto
se preocuparam” (RA). Isto é, não
tem qualquer valor, aos olhos de Deus, a preocupação com coisas exteriores como
alimentos.
A vida ascética sempre atraiu
muito e gera uma ideia de que tais pessoas são muito espirituais. Pessoalmente
creio que quem não gosta de pudim de leite e picanha, não pode ser muito
espiritual... Existem muitos que valorizam práticas ascéticas como se isto
fosse de grande valor. Você pode até fazer um jejum por causa de um desejo de
se aproximar. Tais coisas, diz o texto de hebreus, não são importante para Deus. “Porquanto
o que vale é estar o coração confirmado com graça e não com alimentos, pois
nunca tiveram proveito os que com isto se preocuparam” (Hb 13.9). Então, o
que vale, é estar o coração confirmado com graça. O que conta no final das
contas é o coração.
O Concílio de Jerusalém decidiu reafirmar os
princípios essenciais - “Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor maior
encargo além destas coisas essenciais”
(At
15.28).
Existe uma frase em inglês que
diz: “Back to the basics” (retorne aos fundamentos), e é exatamente isto que a
igreja faz através de seus líderes, definindo a essência da fé cristã e do
Evangelho. Não dava para ficar gastando energia em questões polêmicas e
rudimentares.
Então, qual é a essência?
A. Não há distinção entre judeus e
gentios – “E não estabeleceu distinção alguma entre nós
e eles, purificando-lhes pela fé, o coração” (At 15.9). A Igreja precisava
de uma vez por todas deixar claro que a barreira entre gentios e judeus fora
quebrada. Que Jesus não era posse de um grupo étnico ou religioso. Deus havia
começado a quebrar tal barreira com Pedro, um dos mais conservadores, e ele se
sentia honrado de ter sido escolhido por deus para em primeiro plano pregar aos
gentios a palavra do evangelho e cressem na mensagem da cruz (At 15.7). Deus
estava “constituindo dentre os gentios,
um povo para seu nome” (At 15.14).
B. A salvação é resultado da fé no evangelho – “purificando-lhes pela fé, o
coração” (At
15.9). A circuncisão não acrescentava nada à salvação, porque ela era resultado
da livre graça de Deus demonstrada na obra de Cristo em favor dos homens.
C. A circuncisão não tinha qualquer
valor essencial para a vida cristã. Embora esta não fosse a questão essencial, ela foi o
ponto da discussão. Portanto, não vamos “impor
maior encargo” aos novos convertidos (At
15.28), nem “perturbar aqueles que,
dentre os gentios, se convertem a Deus” (At 15.19). Esta seria a mesma
instrução dada pelo Espírito na Carta aos Gálatas: “Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão tem
valor algum, mas a fé que atua pelo amor” (Gl 5.6)
O texto afirma que, depois de consultarem a Palavra, firmaram as
decisões necessárias. Eles chegaram a um “pleno
acordo” (At 15.25), e Tiago deixa clara o que eles decidiram. A Igreja
havia chegado ã conclusão acerca da irrelevância da circuncisão, e assim fizeram
as quatro recomendações.
Conclusão
Muitas pessoas são atraídas por regras externas de
espiritualidade. Alimentar bem é algo importante, muitas das recomendações do
Antigo Testamento tinham caráter cerimonial, e outras tantas tinham razoes de
higiene e saúde. Deus estava preocupado com o bem estar físico de seu povo.
Imagine comer carne de porco no deserto com 40 graus de temperatura? Lavar as
mãos depois de tocar numa pessoa enferma ou morta, evitava a transmissão de
doenças contagiosas. A lei foi dada para nos proteger e nos abençoar.
Quando, porém, regras alimentares ocupam a centralidade da fé e a
obra de Cristo é minimizada, em geral passamos a pensar que dependemos dos
alimentos para o desenvolvimento da nossa vida com Deus. Quando nos ocupamos
desta forma com a alimentação, isto se transforma em uma distorção do
evangelho.
O autor aos hebreus vai direto ao
ponto: “Não se
deixem levar pelos diversos ensinos estranhos. É bom que o nosso coração seja
fortalecido pela graça, e não por alimentos cerimoniais pois nunca tiveram proveito os que com isto se preocuparam” (RA). Gastar tempo com tais
discussões é um desvio do foco central da fé cristã e sempre causa complicações
para a compreensão da fé simples do evangelho.
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