quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Como interpretar as recomendações alimentares em Atos 15?


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Introdução

Ao lermos Atos 15, ficamos impressionados com a seriedade, maturidade e santidade com que tratam das questões polêmicas da igreja. Discussões sempre brotam na igreja, muitas vezes com temas controvertidos, acusações e heresias e a Igreja Primitiva também teve que tratar de graves questões.

Em Atos 15, surge uma questão da lei mosaica que estavam incomodando a igreja. Os gentios convertidos teriam ou não que se submeter ao rito judaico da circuncisão? “Alguns indivíduos que desceram da Judeia ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos” (At 15.1).

A igreja precisou se posicionar: “Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão” (At 15.6). Duas expressões chamam a atenção: “Não pequena discussão” (At 15.2) e “Havendo grande debate” (At 15.5). Os apóstolos deixaram claro que tais ritos não eram importantes, e que se constituíam uma ameaça à simplicidade do evangelho. Entretanto, fizeram recomendações alimentares que ainda hoje desafiam os estudiosos da Bíblia. Para a fé cristã as regras alimentares não imprescindíveis?

Grupos como os adventistas defendem uma alimentação mais equilibrada e saudável, o que também concordamos, mas diferimos deles quando transformam as prescrições alimentares em regras rígidas de santidade e que se não forem obedecidas, podem comprometer a salvação, e ao lermos o texto bíblico, observamos que os apóstolos e presbíteros, deixaram claro que a circuncisão não eram importante, mas fizeram quatro recomendações, sendo que duas delas tinham relação direta com alimentação.

“Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargo algum, senão estas coisas necessárias: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes. Bem vos vá”(At 15.28-29).

Nas deliberações finais, quatro recomendações:

a.      Culto só a Deus – “abstenhais das coisas sacrificadas a ídolos”.

  1. Duas regras alimentares – “Não comer carne de animais sufocados nem com sangue”

  1. Fidelidade fosse o ponto central da família – Deveriam se abster das relações sexuais fora do casamento.

Não temos dificuldade em entender a questão da idolatria, nem da recomendação sobre a santidade do sexo, mas o texto afirma que os apóstolos também determinaram as regras alimentares como “coisas necessárias”, que deveriam ser seguidas pelos novos convertidos. Se são essenciais, porque não as cumprimos? Se não são, porque os apóstolos determinaram? Diante disto ficamos com uma questão hermenêutica. Como lidar com as proibições alimentares? Como explicar as regras de alimentação que foram estabelecidas, quando Jesus ensinou claramente que todo alimento é puro? Como entender a recomendação relacionada a alimentos? As duas primeiras são claramente ratificadas no Novo Testamento:

A.   Abstenção de coisas contaminadas pelos ídolos – Os gentios que se convertiam, vinham de uma cultura pagã e idólatra. Muitos deles haviam participado de rituais religiosos, próprios de sua cultura, na casa de seus ancestrais, e eles precisavam fazer uma ruptura com este mundo pagão. Tinham que abandonar sua idolatria e tudo que estava relacionado aos ídolos.

B.    Relações sexuais ilícitas. A imoralidade entre os gentios era bem conhecida. Adultério (sexo de uma pessoa casada feita fora do matrimonio); fornicação (sexo antes do casamento); homossexualismo (sexo com pessoas do mesmo sexo) e prostituição (sexo mediante pagamento), tudo isto precisava ser reinterpretado à luz do Novo Testamento.

Tais recomendações eram necessárias não apenas naqueles dias, mas nos dias de hoje. Mas como lidar com as proibições de alimentos diante dos textos que lemos que afirmam que nada é recusável se recebido com ações de graças? Tais restrições não se coadunam com as verdades do Novo Testamento.

Explicações possíveis.

a)- Pressão da ala conservadora - Isto poderia fazer parte da exigência de um bloco conservador que participava da reunião (At 5.5), e que a liderança da igreja achou que não valeria a pena ficar discutindo pontos tão supérfluos e deixou que isto seguisse nas recomendações gerais.

b)- Efeito associativo - Outra possibilidade é que houvesse alguma coisa no mundo pagão que levou os apóstolos e presbíteros a pedirem que não comessem tais alimentos, pelo efeito associativo que pudesse gerar.

c)- Escândalo - A terceira, poderia ser o fato de escandalizar um irmão mais fraco. Quando Paulo fala de vinho e carne, ele afirma que, por causa da consciência mais fraca, eventualmente deveríamos nos abster de determinados alimentos, não porque os alimentos em si mesmos, fossem o problema, mas por causa do amor cristão: “E, por isso, se a comida serve de escândalo a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que não venha a escandalizá-lo” (1 Co 8.13). Paulo trata longamente deste assunto em 1 Co 8. afirmando que para determinadas culturas, comer alguns alimentos era um golpe na “consciência mais fraca”(1 Co 8.12), e este escândalo comprometeria a aceitação  do evangelho. Em outras palavras, não era a comida em si o problema, e sim o cuidado com o irmão: “Não é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos , se não comermos, e nada ganharemos, se comermos” (1 Co 8.8). 

Por uma destas razões as restrições alimentares foram impostas.  

Precisamos, portanto, avançar um pouco em outros textos bíblicos, para entendermos como a questão dos alimentos é tratada nas Escrituras Sagradas.

O ensinamento de Jesus acerca dos alimentos

“Jesus chamou novamente a multidão para junto de si e disse: "Ouçam-me todos e entendam isto: não há nada fora do homem que, nele entrando, possa torná-lo ‘impuro’. Pelo contrário, o que sai do homem é que o torna ‘impuro’. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça! Depois de deixar a multidão e entrar em casa, os discípulos lhe pediram explicação da parábola. "Será que vocês também não conseguem entender? ", perguntou-lhes Jesus. "Não percebem que nada que entre no homem pode torná-lo ‘impuro’? Porque não entra em seu coração, mas em seu estômago, sendo depois eliminado". Ao dizer isto, Jesus declarou "puros" todos os alimentos. E continuou: "O que sai do homem é que o torna ‘impuro’. Pois do interior do coração dos homens vêm os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os roubos, os homicídios, os adultérios, as cobiças, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a arrogância e a insensatez. Todos esses males vêm de dentro e tornam o homem ‘impuro’ " (Mc 7.14-23).

As regras de alimentação judaicas eram muito estritas e rígidas. Uma leitura do livro de Êxodo e Deuteronômio nos revela como havia uma longa lista de alimentos e animais proibidos por lei, até a forma de matar o animal: “Não podia ser morto por asfixia”, e em especial, a questão do sangue.

Mas Jesus relativiza toda esta questão externa da santificação, que era tão cara aos judeus, segundo a tradição e os ensinamentos de Moisés. Ele deixa claro que tais  questões são externas. O grande problema espiritual do homem não está na sua dieta, se toma ou não toma vinho, se come ou se não come carne, mas como está seu coração. Marcos relata que “Ao dizer isto, Jesus declarou puros todos os alimentos.” O problema do homem não é o que ele devora, mas o que o devora, “pois do interior do coração dos homens vêm os maus pensamentos”. O coração do homem, e não o seu estômago é o grande problema.

O pensamento paulino

Paulo também confronta a visão ascética e de regras alimentares. Quando escreve a Timóteo, ele critica aqueles que proibiam o casamento (obrigavam o celibato), e “exigiam abstinência de alimentos”(regras de alimentação), concluindo que: “tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável” (1 Tm 4.3,4). Paulo relativiza a questão da comida em si mesmo, exceto quando o que comemos escandaliza o irmão. O problema não é a comida em si, mas se o que eu como, causa problemas na fé do irmão.

Não é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos, se não comermos, e nada ganharemos, se comermos” (1 Co 8.8). O único critério que todo este texto de Coríntios usa é o amor com o irmão que tem consciência mais fraca. Na carta aos Colossenses, critica ainda aqueles que julgavam os outros “por causa de comida e bebida” (Col 2.16), estabelecendo regrinhas como “Não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro” (Col 2.21), afirmando que todas estas coisas são “rudimentos do mundo” (Cl 2.20).

A carta aos Hebreus

A carta aos hebreus é muito importante por ser uma espécie de tradução do conteúdo da lei à luz do evangelho de Cristo. Qual o significado dos sacrifícios, das ofertas, da lei mosaica, das regras de alimentação para os novos convertidos que vinham do judaísmo?

O autor aos Hebreus afirma:
Não se deixem levar pelos diversos ensinos estranhos. É bom que o nosso coração seja fortalecido pela graça, e não por alimentos cerimoniais, os quais não têm valor para aqueles que os comem” (Hb 13.9). Outra versão diz: “Pois nunca tiveram proveito os que com isto se preocuparam” (RA). Isto é, não tem qualquer valor, aos olhos de Deus, a preocupação com coisas exteriores como alimentos.

A vida ascética sempre atraiu muito e gera uma ideia de que tais pessoas são muito espirituais. Pessoalmente creio que quem não gosta de pudim de leite e picanha, não pode ser muito espiritual... Existem muitos que valorizam práticas ascéticas como se isto fosse de grande valor. Você pode até fazer um jejum por causa de um desejo de se aproximar. Tais coisas, diz o texto de hebreus, não são importante para  Deus. “Porquanto o que vale é estar o coração confirmado com graça e não com alimentos, pois nunca tiveram proveito os que com isto se preocuparam” (Hb 13.9). Então, o que vale, é estar o coração confirmado com graça. O que conta no final das contas é o coração.

O Concílio de Jerusalém decidiu reafirmar os princípios essenciais - Pois pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor maior encargo além destas coisas essenciais   (At 15.28).

Existe uma frase em inglês que diz: “Back to the basics” (retorne aos fundamentos), e é exatamente isto que a igreja faz através de seus líderes, definindo a essência da fé cristã e do Evangelho. Não dava para ficar gastando energia em questões polêmicas e rudimentares.

Então, qual é a essência?

A.   Não há distinção entre judeus e gentios – “E não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes pela fé, o coração” (At 15.9). A Igreja precisava de uma vez por todas deixar claro que a barreira entre gentios e judeus fora quebrada. Que Jesus não era posse de um grupo étnico ou religioso. Deus havia começado a quebrar tal barreira com Pedro, um dos mais conservadores, e ele se sentia honrado de ter sido escolhido por deus para em primeiro plano pregar aos gentios a palavra do evangelho e cressem na mensagem da cruz (At 15.7). Deus estava “constituindo dentre os gentios, um povo para seu nome” (At 15.14).

B.    A salvação é resultado da fé no evangelho – “purificando-lhes pela fé, o coração” (At 15.9). A circuncisão não acrescentava nada à salvação, porque ela era resultado da livre graça de Deus demonstrada na obra de Cristo em favor dos homens.

C.    A circuncisão não tinha qualquer valor essencial para a vida cristã. Embora esta não fosse a questão essencial, ela foi o ponto da discussão. Portanto, não vamos “impor maior encargo” aos novos convertidos (At 15.28), nem “perturbar aqueles que, dentre os gentios, se convertem a Deus” (At 15.19). Esta seria a mesma instrução dada pelo Espírito na Carta aos Gálatas: “Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão, nem a incircuncisão tem valor algum, mas a fé que atua pelo amor” (Gl 5.6)

O texto afirma que, depois de consultarem a Palavra, firmaram as decisões necessárias. Eles chegaram a um “pleno acordo” (At 15.25), e Tiago deixa clara o que eles decidiram. A Igreja havia chegado ã conclusão acerca da irrelevância da circuncisão, e assim fizeram as quatro recomendações.

Conclusão

Muitas pessoas são atraídas por regras externas de espiritualidade. Alimentar bem é algo importante, muitas das recomendações do Antigo Testamento tinham caráter cerimonial, e outras tantas tinham razoes de higiene e saúde. Deus estava preocupado com o bem estar físico de seu povo. Imagine comer carne de porco no deserto com 40 graus de temperatura? Lavar as mãos depois de tocar numa pessoa enferma ou morta, evitava a transmissão de doenças contagiosas. A lei foi dada para nos proteger e nos abençoar.

Quando, porém, regras alimentares ocupam a centralidade da fé e a obra de Cristo é minimizada, em geral passamos a pensar que dependemos dos alimentos para o desenvolvimento da nossa vida com Deus. Quando nos ocupamos desta forma com a alimentação, isto se transforma em uma distorção do evangelho.

O autor aos hebreus vai direto ao ponto: “Não se deixem levar pelos diversos ensinos estranhos. É bom que o nosso coração seja fortalecido pela graça, e não por alimentos cerimoniais pois nunca tiveram proveito os que com isto se preocuparam” (RA). Gastar tempo com tais discussões é um desvio do foco central da fé cristã e sempre causa complicações para a compreensão da fé simples do evangelho.



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