Introdução
Mais
uma vez a cena se dá no céu…João tem uma visão do Cordeiro em pé e 144 mil
estão presentes com ele (Ap 14.1). Saímos agora do exame das forças políticas,
religiosas e filosóficas representadas pelas duas bestas do capítulo 13, e
temos novamente uma visão da glória celestial. A figura se move novamente,
saindo do campo da ação do diabo, para os céus. O cenário agora já não é da
descrição da besta, mas da presença gloriosa dos remidos diante de Deus. João
vê cenas do monte Sião.
Na última descrição que tivemos do Cordeiro, ele nos
foi mostrado diante do trono, no céu (Ap 7.9). Devemos entender o Monte Sião
simbolicamente, como lugar de vitória. O Salmo 2 promete que o ungido de Deus
será colocado “...sobre o meu monte santo...” (Sl 2.6). Sião é frequentemente
referido como o lugar da vitória escatológica. A Sião antiga é definida no AT. como sede do governo de
Deus e centro de sua vitória final. “E acontecerá que todo aquele que invocar o
nome do Senhor será salvo; porque no Monte Sião e em Jerusalém estarão os que
forem salvos...”(Jl 2.32). No Novo Testamento Sião se torna a “...a cidade do
Deus vivo, a Jerusalém celestial...” (Hb12.22).
Os
144 mil são o mesmo grupo que foi selado em 7.9-17. Representam a totalidade
dos remidos. Alguns comentaristas crêem que se trata de um grupo especial de
crentes – mártires ou celibatários.
Normalmente
não falamos do céu. Os pregadores antigos, contudo, davam muita ênfase às
coisas celestiais. Grandes poetas e hinólogos descreveram as beatitudes
celestiais, com muita poesia e paixão. Gosto muito de ouvir antigos hinos que
nos falam dos céus, normalmente eles me emocionam muito. Hinos como:
“Da linda pátria estou, mui longe…”
Ou,
“Oh vem encontrar-me a fonte, da Jerusalém do céu”.
Ou,
“Oh, pensai neste lar lá do céu…”
Por que não temos falado dos
céus?
Existe
uma resposta clássica para isto: Conta-se que quando Dante Alighieri estava
escrevendo A divina Comédia, ele foi indagado porque falava tanto do inferno e
tão pouco do céu, e ele teria respondido: “Porque existem abundantes
referências sobre o inferno na terra, mas muito pouca referência sobre o céu”.
As
imagens de João sobre o céu são reveladoras. Vejamos o que João avista lá:
1. O céu é
lugar onde a autoridade do Cordeiro é absoluta e inquestionável - João vê o
Cordeiro de Deus em pé (Ap 14.1). Esta é
uma postura de autoridade. Estevão, o primeiro mártir do cristianismo, vê na
hora de sua morte “a glória de Deus, e Jesus, que estava à sua direita” (At 7.55). Para Estevão esta é uma visão de
consolo, mas também é uma visão de autoridade. Para João esta visão reafirma o
lugar de Jesus no céu, reafirma sua majestade.
2. Céu é o
ponto de encontro dos remidos de Deus – (Ap 14.1). Os remidos possuem algumas marcas:
2.1.Marca do Cordeiro
escrito na testa – (Ap 14.1) Se é correto pensar que a marca da besta é
uma forma filosófica na mente, é bom lembrar que aqui existe a marca do
Cordeiro. Apocalipse 7.3 fala que os servos de Deus seriam selados na fronte.
Existe uma marca na mente dos remidos do Senhor. Um selo, e este selo é o
sangue do Cordeiro.
2.2.Marca de
santidade - O povo de Deus é aqui descrito como um povo
purificado pelo sangue do Cordeiro. Pecadores redimidos, gente que aprendeu a
cantar um cântico que ninguém mais pode cantar. Seria uma referência a uma
harmonia complicada? A um texto complexo?
Provavelmente isto se refere ao fato de que o povo redimido por Deus,
que conheceu a maravilhosa graça de Jesus é capaz de celebrar de uma forma que
ninguém mais sabe e outros não são capazes de fazê-la.
3. João ouve
muito louvor nos céus – O livro de
Apocalipse é essencialmente um livro de adoração e louvor. Os céus se enchem
dos louvores dos anciãos, e aqui vemos os 144 mil louvando a Deus, com som
poderoso, como o de “muitas águas”. Eu não sei quantos aqui já tiveram o
privilégio de visitar Foz do Iguaçu ou Niagara Falls, mas o som daquelas águas
é algo estrondoso. Ou parar, em silêncio diante do poder das ondas do mar.
Ainda hoje o mirante do Leblon no Rio de Janeiro, é um dos meus locais
prediletos. Quando pastoreava a igreja da Gávea, no Rio, gostava de ver as
ondas violentas e agitadas do mar, demonstrando sua fúria num balé agitado. Ver
a ressaca do mar daquele lugar é um cena inesquecível. Nada parece ser mais
poderoso que as ondas do mar chocando-se com as rochas. É isto que João vê, um
louvor que enche tudo, como o som de muitas águas. Cântico em grande sonido e
com grande celebração, grande voz.
Apocalipse é um livro essencialmente de adoração,
cheio de celebração da majestade do Senhor e de seus maravilhosos feitos,
especialmente sua redenção realizada na cruz. Ellul afirma que “as cinco seções
do Apocalipse são enquadradas e especificadas por passagens que podem ser
qualificadas de litúrgicas, onde vemos um certo cerimonial de adoração a Deus e
em que nos são transmitidos cantos de glória ou orações” [1]
4. O céu é
lugar que atesta a validade do Evangelho - (v. 6-7). O Evangelho é aqui confirmado pelo conteúdo
da pregação dos anjos. O anjo voava no céu e tinha a mensagem do Evangelho
eterno para aqueles que se assentam sobre a terra. O anúncio deste anjo possui
o mesmo conteúdo da mensagem que a igreja tem sempre pregado.
A pregação do Evangelho feita pelo anjo confirma que
a mensagem que anunciamos é a mesma sendo aqui ratificada pelo ministério dos
anjos. Sabemos que a pregação não é tarefa para seres espirituais, mas é
responsabilidade da Igreja. Deus não tem uma segunda estratégia e nem possui
outro plano para tornar conhecida sua mensagem, antes deu à sua igreja a
mensagem da reconciliação, a tarefa de anunciar as Boas Novas do Evangelho a
todos os povos. A pregação do anjo aqui é, portanto, algo inusitado, um evento
especial que pode trazer dois sentidos:
4.1.O anúncio dos
anjos ratifica o Evangelho – Os anjos anunciam a mesma mensagem que a Igreja
sempre anunciou, logo, não é uma invenção humana, é obra de Deus..
4.2.Joachim Jeremias,
conhecido teólogo, acredita que isto seja referência a uma mensagem especial
que resultará em um grande movimento de salvação entre os gentios.[2]
5. O céu é o
lugar donde procede o juízo de Deus sobre as nações (Ap 14.8-12).
Esta é a voz do segundo e do terceiro anjo. Duas palavras são usadas
para descrever o julgamento de Deus: cólera (thumos) e ira (orge). Orge é um
tipo de ira que parte de uma disposição já tomada, enquanto thumos é uma ira
mais passional. Normalmente a ira divina é descrita como orge.
A ira de Deus
não é uma emoção humana, antes uma reação da sua santidade ao pecado e rebelião
humana. O livro de Apocalipse revela mais que qualquer outro o tema da ira
divina (14.8,10,19;15.1,19;19.15). A ira divina é a forma que Deus usa para
estabelecer sua justiça. A ausência da ira e do juízo daria a impressão de que
este universo não tem força moral. Qualquer mensagem do Evangelho sem anúncio do
julgamento é uma mensagem parcial e adulterada. Ao contrário do que possamos
pensar, o julgamento da terra e dos ímpios procede do trono de Deus, é dali que
fluem as decisões sobre o destino do universo e é ali que se estabelece a
justiça final de Deus contra os adoradores da imagem da besta. Na presença do
Cordeiro beberão o cálice da ira do
Senhor e serão atormentados na presença do Cordeiro.
A quem está reservada a ira de Deus?
Se
o julgamento vem, e a Bíblia afirma que ele inexoravelmente virá, quem sofrerá
as sanções de tal juízo? O julgamento é indiscriminado, isto é, todos teremos
que comparecer diante do tribunal de Deus para sermos julgados. Mas a
condenação é discriminada, ou seja, não virá a todos, pois nem todos estão
sujeitos às penalidades do julgamento. Paulo afirma: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que
estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Mas
também afirma que “a ira de Deus se revela do céu, contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18).
O
Julgamento é o fim da história, da inserção do tempo na eternidade, da
destruição da morte para que haja vida. Momento da verdade desmascarar a
mentira, e o engano dar lugar ao que é verdadeiro. Juízo é tempo de dor, mas
juízo também é tempo de cura, porque é tempo de Deus.
Dois
grupos são relatados aqui neste texto:
A. A grande Babilônia – “Caiu a
grande Babilônia” (Ap 14.8).
Babilani é uma palavra antiga que
significa “A porta dos deuses”. Revela de forma figurativa o lugar onde os
deuses que não o são, assumem aparência de que são. Lugar onde outros deuses
fictícios assumem a preponderância e exigem adoração.
Babilônia era a grande inimiga de Israel
no AT. e aqui representa a capital da civilização apóstata dos últimos dias, símbolo da sociedade
humana organizada e oposta a Deus. Babilônia foi personificada por Roma nos
tempos apostólicos (1 Pe 5.13). A Bíblia é enfática ao afirmar o julgamento de
Deus sobre as nações, a Bíblia profetiza o juízo das nações no AT. e no NT. O
livro de Apocalipse traz os ecos dos antigos profetas. “Babilônia caiu, e as
imagens de seus deuses foram atiradas ao chão” (Is 21.9).
“...Repentinamente,
caiu Babilônia e ficou arruinada...” (Jr 51.8). Para os cristãos, Roma é o
equivalente a luxúria e lascívia da antiga Babilônia. Babilônia, símbolo da
sedutora e corruptora força que tinha conduzido as nações a uma insana
imoralidade estava agora sendo julgada.
Babilônia
é também o lugar onde a diversão é usada para distrair e afastar-nos da
adoração ao verdadeiro Deus. É o lugar do cativeiro histórico de Israel, o povo
de Deus. Lugar que rouba a dignidade do povo de Deus, perverte o direito dos
fracos e oprimidos. Lugar caracterizado pelo poder político, atividade
comercial, mundo das artes, da literatura. Lugar onde se concentram os
filósofos, a cultura e a civilização, enfim, toda atividade humana. Mas também
é lugar onde se concentram as forças do mal, do orgulho, da vaidade, da glória
humana. A cidade é na Bíblia o lugar de oposição a Deus, mas também é o objeto
do amor de Deus.
A
cidade será julgada, a glória humana desfeita, os poderes políticos serão
destruídos…Chegou o tempo do julgamento. Hora do acerto de contas!
B. Os que se curvam diante da besta – (Ap
14.10).
Todos os que se identificam com este sistema oposto a Deus. O texto
lido nos afirma que a ira de Deus é sem mistura, forte e será ministrado sem
misericórdia (Ap 14.9). O tormento será executado com fogo e enxofre (símbolos
perenes da dor e sofrimento). O texto ainda revela, de forma estranha que o
julgamento será ministrado diante dos anjos e na presença do Cordeiro. A ira é
um atributo de Deus e será ministrado na presença do Cordeiro. Esta imagem é
agressiva à nossa concepção de um Deus amoroso. Imaginar Deus acompanhando de
perto o julgamento é algo incomum. No entanto, a literatura apocalíptica
judaica, composta muitas vezes de textos não canônicos, descreve esta idéia.
No livro apócrifo de Enoque existe a mesma afirmação
de que os maus serão castigados na presença dos santos (48.9). Beckwith[3] sugere que o maior sofrimento dos ímpios seria estar
na presença do Cordeiro triunfante e vitorioso, tendo que reconhecer a
majestade dAquele a quem sempre se recusaram a seguir. O grande tormento
descrito no versículo 10, que acontecerá na presença do Cordeiro é uma
referência ao fato de que eternamente se lembrarão das oportunidades de
entregarem suas vidas de forma incondicional a Jesus, mas encontraram muitas
desculpas e adiaram indefinidamente tal encontro. O grande tormento será o fato
de estarem diante do Filho de Deus e saberem que não vão compartilhar sua doce
e eterna comunhão, porque o inferno lhes foi uma opção deliberada, posto que
rejeitaram reiteradas vezes a oferta do amor e da graça de Deus para suas
vidas.
O
fato é que o tempo da ceifa chegou: “Toma a tua foice e ceifa, pois chegou a
hora de ceifar, visto que a seara da terra já amadureceu” (Ap 14.15). O
Julgamento é apresentado aqui por duas metáforas:
1. Metáfora da colheita – (Ap 14.14-16).
Tanto
o AT. quanto os escritores neo-testamentários empregam esta figura (Jl 3.14; Mc
4.29). O tempo da colheita é chegado! Jesus também usa esta linguagem (Mt
13.24-30, 37-43). Época de separar joio
do trigo, restolho daquilo que é aproveitável. A colheita revela o joio, porque
os frutos não chegaram apesar da semelhança externa. A colheita torna evidente
a diferença entre a palha e o grão, mostra os solos férteis e os solos
pedregosos, mostra se a semente conseguiu superar os espinhos ou se se secou no
meio deles. Colheita é tempo de
juízo…Colheita é tempo de saber o que se pode aproveitar e o que precisa ser
jogado no fogo, se o que temos são grãos maduros, ou apenas palha seca, pronta
para ser queimada e jogada fora…
2. Metáfora do lagar – (Ap 14.17-20).
Onde as
uvas eram espremidas após a colheita para a produção do suco e do vinho (Lm
1.15; Is 63.3). As uvas eram esmagadas com os pés e o suco era recolhido num
recipiente onde era levado para a fase da fermentação e então transformado em
vinho. Naquele lagar será esmagada a soberba, todo orgulho e prepotência humana
e dos poderes políticos. Aquele será o lagar onde a auto-suficiência e a glória
humana serão destruídos e toda altivez será desmascarada. Este lagar é o lugar
onde cessam as tentativas da autoconfiança e é revelado o perigo da indiferença
a Deus e aos seus valores.
O
último versículo deste capítulo descreve que o sangue do lagar correu numa
extensão de “1260 estádios” (Ap 14.20). Que significa isto? Ladd afirma que
1260 estádios é o comprimento da Palestina, de Norte a Sul, cerca de 300 km e
que o sangue inundaria a terra de Israel até uma altura de 1 ½ m, sendo a
figura de um julgamento radical, que destruiria qualquer vestígio de maldade e
hostilidade contra o reinado de Deus.[4]
6. O céu
é lugar de bem-aventurança para os fiéis – (Ap 14.13). Logo após as terríveis profecias falando do
julgamento das nações e dos ímpios, existe uma promessa graciosa para o seu
povo. Promessa de esperança e conforto. Para pessoas que passam por grande
perseguição e grande tribulação e angústia, esta mensagem é de profundo
consolo.
Existe
uma história clássica de martírio na igreja da Coréia. Uma família foi
condenada a morte, por ser cristã. Como martírio, resolveram sepultar os pais
com os filhos, enterrando-os vivos. Na hora do martírio, o filho insistia com a
mãe para que negassem a Jesus e não fossem executados. A mãe, consolando seu
filho disse: “Não se preocupe filho, dentro de alguns minutos estaremos ceando
com Jesus, nos céus”.
Este
texto fala da morte de uma forma extremamente diferente de tudo o que temos na
literatura, nos cinemas e na nossa experiência humana. Para nós, morrer é uma
experiência dramática, sofrimento indescritível. Na Bíblia, morte de pessoas é
uma experiência de encontro com Deus. “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte
dos seus santos” (Sl 116.15). Neste
texto lido vemos a expressão: “Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem
no Senhor” (Ap 14.13). O Problema não é
morrer, mas morrer no Senhor. Morrer no Senhor é descansar das nossa fadigas e
entrar no gozo celestial. Paulo afirma “que morrer, e estar com Cristo, é incomparavelmente melhor” (Fp 1.23).
Conclusão
Leonardo Boff
afirma:
“Quando o mundo tiver atingido sua meta, quando a história tiver
passado, e o ponto alfa coincidir com o ponto ômega, então dar-se-á a grande
revelação do desígnio de Deus e de toda a criação. Agora se faz ouvir o
verdadeiro juízo de Deus, isto é: Deus fará compreender o seu pensamento
(juízo) sobre todo o decurso da criacão. É o momento culminante. É hora da
verdade. O que estava latente se torna patente. O que era abscôndito, fica
revelado”. [5]
Então,
diante de Deus estarão todas as nações. Tudo estará aberto, como um livro onde
tudo pode ser lido: os pensamentos mais ocultos, as omissões mais
inconscientes, as motivações mais sutis. Cada palavra, gesto e ato serão
descortinados diante dos olhos daquele que tudo vê. As intenções do coração
serão percebidas, o oculto revelado, tudo aparecerá no seu sentido mais
profundo. Hora da verdade, de acerto de contas, da separação das ovelhas dos
cabritos, do joio e trigo, dos bons e maus. Todos hão de ver, todo o seu poder.
Deus fará compreender que a história tem
sentido e que caminha na direção de um encontro com o seu criador e autor.
“Agora, no juízo universal, se dá a manifestação universal daquilo que ocorreu
no juízo particular…a revelação cabal do juízo universal de Deus…É o dia do
Senhor! Então tudo fica claro. Deus deixa sua latência bilenar e des-vela seu
desígnio. Então a luz divina ilumina todas as obscuridades e decifra todos os
enigmas…então a anti-fonia é integrada na sin-fonia para compor o hino da
glória de Deus…Isso nos bastará, porque teremos lido o pensamento e ouvido o
juízo de Deus sobre toda coisa. Amém!’ [6]
Samuel Vieira
Outono 2000, Medford, MA -
USA
[1]
Ellul, Jacques – 1980, p. 262
[2]
Jeremias, Joachim – Jesus,
Promisse to the nations - Londres,
CSM, 1958, p. 22
[3]
Beckwith, I. T – The Apocalipse of
John – Grand Rapids, Baker House, 1967, p. 659
[4]
Ladd, George – 1980, p. 150
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