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“O Evangelho é supracultural, pois define e explica a cultura, não o contrário; cultural, por ter sido revelado à humanidade em seu próprio contexto e história; intercultural, por juntar ao redor de Jesus pessoas de todos os povos; multicultural, ao ser destinado a todos os povos e línguas; transcultural, quando transmitido de uma cultura a outra; e contracultural, pois sempre confronta o homem em sua própria cultura.” Ronaldo Lidório[1].
19 de agosto de 2014
Introdução
Toda vez que pensamos teologicamente a cultura, precisamos partir da visão bíblica sobre o tema.
Existem duas dimensões paradoxais na cultura:
A Beleza da Cultura
Isto pode ser entendido com o fato de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, então, na essência do ser humano vemos racionalidade, sociabilidade, moralidade, criatividade e espiritualidade. Isto faz parte essencial da antropologia judaico-cristã.
O conceito da Total Depravação, doutrina fundante das Escrituras Sagradas e que surge como o primeiro ponto da TULIP, os cinco pontos centrais do Calvinismo, pode subliminarmente dar ideia de que, por causa do pecado do homem, toda produção humana é maligna em si mesmo, entretanto entendemos, que mesmo o ser humano caído, pode manifestar lampejos do Imago Dei e assim revelar estes aspectos essenciais que revelam ter sido ele criado por Deus, para sua glória, ainda que a imagem de Deus no homem pecador, esteja obnubilada pelo pecado.
Talvez seja neste sentido que o grande reformador Lutero, que era também um músico, ao ver como homens sem Deus, produziam obras musicais tão profundas e sensíveis, teria feito a seguinte afirmação: “Por que o diabo pode ter todos os bons tons?”
A verdade é que veremos na arte, ainda que produzida por homens distanciados de Deus, certa beleza, espanto, encantamento. Isto é percebido na literatura, na música, culinária e em tantas outras expressões artísticas.
Tentando desfazer a falsa ideia de que o homem é totalmente depravado, R. C. Sproul sugeriu outra conceituação: Corrupção Radical. Para ele o homem não é totalmente depravado, a não ser naquilo que tangencia sua relação com Deus e sua incapacidade de se voltar a Deus por ele mesmo como sugere o pensamento arminiano, mas o problema do ser humano é que na sua raiz, na sua motivação, sem a obra do Espírito Santo, tudo o que ele fizer será para auto glorificação, auto promoção, narcisismo onde ele se torne o centro. Sua corrupção surge na raiz de seu EU, distanciado de Deus.
A expressão “depravação total não é de Calvino, embora expresse seu ponto de vista. Contudo, Calvino reconhecia que “em cada época, existem pessoas que, guiadas por natureza, se empenham pela virtude durante toda a vida”, e que, “embora haja lapsos… em sua conduta moral elas possuem caráter recomendável, conforme o ponto de vista humano, por meio do próprio zelo de sua honestidade, elas têm dado provas de que há alguma retidão em sua natureza.” Calvino afirmava que ainda que os homens sejam pecadores, eles manifestam a imagem de Deus, embora de forma imperfeita. Os homens não são tão maus quanto podem ser, por causa da graça restringente de Deus.
Por causa da presença de Deus em cada cultura, em todas elas há beleza artística, expressões culturais inteligentes, sensibilidade poética e musical. Apesar da queda da raça humana, em todas as culturas podemos perceber a Imago Dei.
A perversão da cultura
Por outro lado, por se afastar de Deus, o homem perverte e contamina tudo aquilo que toca. Francis Schaeffer nos seus livros “A morte da razão”, e “O Deus que intervém”, faz questão de frisar este aspecto, ao afirmar que a queda afetou, não apenas a relação do homem com Deus, mas todas as expressões artísticas e culturais. Desta forma, onde houver expressões artísticas, por mais belas que sejam, trazem a marca do pecado.
Um exemplo na música brasileira pode ser citado para exemplificar esta situação. Vinicius de Morais e Baden Powel, são dois excepcionais músicos e com competência escreveram um texto musical que é uma das poesias mais refinadas, e diz o seguinte:
O homem que diz dou
Não dá
Porque quem dá mesmo
Não diz
O homem que diz vou
Não vai
Porque quando foi
Já não quis
O homem que diz sou
Não é
Porque quem é mesmo é
Não sou
O homem que diz tou
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
Veja como a estrutura poética é refinada. A melodia da música não fica muito distante. Entretanto, se você vai além perceberá que a música é uma glorificação de uma das entidades do candomblé, por isto o nome desta música é assustadoramente nomeada como “O Canto de Ossanha”.
Desta forma vemos a mancha do pecado e da idolatria presente em tantas outras dimensões artísticas. A cultura, portanto, se presta nas suas expressões artísticas, e na sua cosmovisão, para promoção do homem e para distanciamento de Deus.
A Bíblia demonstra como isto é verdade logo nas suas primeiras páginas.
Em Gn 4.27, Caim edifica a primeira cidade da Bíblia: “Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu filho”. A cidade, uma expressão artística com as primeiras manifestações da arquitetura, torna-se uma forma de promoção da família e do nome de Caim e de seus descendentes.
O mesmo veremos quanto a Babel:
“Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e tornemos celebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra” (Gn 11.4).
A cidade foi construída para competir com a glória de Deus e para expressão do orgulho humano. Assim tem sido desde a criação.
Os fundamentos da cultura
É possível afirmar que a cultura se estrutura sobre dois aspectos:
Primeiro, o controle da natureza – Isto vai se manifestar na forma como o homem usa as ferramentas, constrói casas, aldeias e cidades, constrói palácios, manipula e interage com a natureza.
Segundo, no desenvolvimento das formas de organização social. Quatro aspectos demonstram como a cultura fundamenta seus padrões sociais:
§ Criação de instituições – com seus valores e costumes. Estruturação das leis, governo, tribunais, famílias, costumes.
§ Crenças – como as pessoas concebem o sobrenatural, o místico, e o sagrado: Deus, realidade, significados, mitos, ritos, simbologia.
§ Valores – O que se torna verdadeiro, normativo, regras, conceitos estéticos, etc. Embora haja diferentes ethos cultural, toda cultura possui valores que apontem para aquilo que é certo e errado.
§ Costumes – comportamento, relacionamentos, trabalho e alimentação.
Pode-se definir a cultura como “padrões seguidos por determinados grupos e seus sistemas integrados de instituições, crenças, valores e costumes.” Toda cultura implica em certa homogeneidade. Uma cultura possui um conjunto de padrões aceitos e normativos, sejam eles escritos ou não; sejam eles abertamente declarados ou subentendidos.
Apesar desta homogeneidade, dois contrapontos surgem no estabelecimento de uma determinada cultura:
ü Subcultura
ü Contracultura
Uma subcultura, é uma expressão cultural que se manifesta, com variações completamente distintas ou parcialmente diferenciadas. Normalmente estes grupos formam minorias, pela sua forma de pensar e nem sempre são aceitos no grupo social. Podemos encontrá-las nos guetos sociais, ideologias e formas religiosas.
A contracultura é a oposição à cultura vigente. Ela se torna agressiva e se opõe ao status quo, questionando a cosmovisão e lutando contra valores estabelecidos pela cultura. A contracultura constrói outra leitura da realidade, e torna-se subversiva na sua essência, e dela brotam vilões e heróis, trazendo reformas duradouras, ou conflitos permanentes.
Uma cultura une, ou divide, gerações. Ela une porque se comunica através de ritos de iniciação ou, em povos anímicos ou tribais, na transmissão oral, ou mitos. Quando esta cultura é colocada em cheque, transforma-se num ponto de luta e dissensão, trazendo separação, luta pelo poder, rupturas e até mesmo morte. O novo é sempre ameaçador.
Julgando a cultura
Em geral, temos muito dificuldade de julgar a própria cultura, porque o conhecimento cultural de uma sociedade não se estrutura nem se apreende através de ensino, nem é pedagógico e filosófico como pensamos, e é bem mais visceral do que se pode conceber.
Silas de Lima, missionário transcultural da Missão Novas tribos do Brasil e da APMT, é tradutor para o idioma Oiampi do Amapá e chama a atenção dos leitores no texto contextualização entre os indígenas[2].
Para ele, um dos grandes problemas que enfrentamos ao tentar contextualizar a mensagem aos povos indígenas é que acreditamos que eles concordarão com determinadas verdades, quando transmitimos conceitos abstratos de teologia sistemática (sincrônica), quando na verdade, eles apreendem melhor quando a verdade do evangelho é comunicada em outro nível, mais experimental e vivencial.
Então, ao lidarmos com culturas diferentes, enfrentamos dois problemas: primeiro, não conseguimos ver as falhas da nossa própria cultura, porque julgamos que estamos certos na forma de perceber e interagir com os desafios da vida; segundo, porque tendemos a nos assustar, e até mesmo escandalizar, quando procedimentos incomuns da cultura são adotados.
Não é fácil ver a nossa cultura de fora, mas é fácil julgar costumes de outros povos. Desta forma, encontramos dificuldade em comunicar de forma eficiente o evangelho a povos de cultura diferente, porque levamos a mensagem com seus pressupostos.
Como a cultura se expressa?
Uma cultura se expressa e se estrutura através de vários elementos:
§ Provérbios: Muito do nível cultural mais profundo de um povo pode ser entendido através dos ditos que foram construídos e repassados entre as conversas e gerações.
§ Mitos: Povos criam símbolos, magias e mitos. Há assuntos que são tabus, e revelam muito da cosmovisão e religiosidade de um povo. Mitos, não são, na sua essência, histórias reais, embora sejam narradas como verdadeiras, mas são formas de se transmitir conteúdos subjacentes da cultura e seus símbolos. Tanto Freud quanto Jung, exploraram profundamente a psicologia humana, através dos mitos milenares que foram construídos nas culturas antigas.
§ Contos populares: Estes contos servem para estruturar o pensamento e comportamentos. Eles trazem lições éticas, julgamentos e apontam para a forma de julgar e pensar.
§ Arte: seguramente a arte é a forma mais profunda de arraigar a cosmovisão de um povo, e também para realizar mudanças duradouras e revolucionárias. A música, por exemplo, tem o poder de fixar valores e crenças com muita eficiência na compreensão de mundo que se constrói.
A cultura tem ainda o poder de governar as ações comunitárias como o sistema judiciário, que vai tentar regular e moldar atitudes dos cidadãos; bem estar geral, onde se respeita os princípios da coletividade e da individualidade e as atividades sociais, como danças, jogos e lazer. Refletem também o estilo de vida de uma determinada raça. Alguns povos primam por esportes agressivos, para demonstrar força, coragem, intrepidez, agilidade e até mesmo impressionar o sexo oposto.
Apesar de toda solidez para se construir uma cultura específica de um povo, levando eventualmente séculos ou mesmo milênios para se estabelecer, um aspecto precisa ser mencionado: culturas jamais são estáticas. Por esta razão surgem as subculturas e as contraculturas, questionando e ameaçando a ordem e o status quo, e eventualmente trazendo uma nova compreensão do construto cultural anteriormente estabelecido.
A importância da cultura
Mesmo sabendo que todas as culturas, trazem os fragmentos do pecado, e são falhas, e eventualmente até mesmo desumanas e demoníacas, a cultura possui aspectos muito importantes para a vida humana.
Primeiro, cultura constrói identidade – Traz sentido de pertencimento. Quebrar as regras de uma cultura é ameaçador, ou ser marginal nesta cultura pode ser extremamente ameaçador. Um personagem bíblico, Jefté, era filho de uma prostituta, e por isto foi hostilizado e banido da casa de seu pai. Ele não conseguia encontrar sua identidade, e isto o tornou truculento e reativo.
Segundo, cultura traz segurança – Mesmo com as incoerências em todas culturas, modernas ou primitivas, viver num ambiente onde as pessoas emitem respostas esperadas, traz conforto. Por isto, viver em outra cultura é tão complexo. As reações que esperamos, não surgem e isto traz ressentimento, amargura, oposição e eventualmente grande ira.
Terceiro, cultura traz dignidade – Entendendo que tal dignidade é concedida, a partir do momento em que o comportamento desejado é emitido. Infelizmente esta dignidade pode ser reconhecida pelo grupo e sociedade, não porque se coaduna com as verdades do evangelho, mas porque é aceita socialmente. Uma cultura em queda, certamente valorizará desvios éticos eventualmente censurados na bíblia como o adultério e a fornicação.
Conclusão
Mais uma vez recordamos a afirmação de Bultmann de que “todo intérprete da Bíblia se aproxima dela com pressuposições”. Apesar de sua afirmação ser verdadeira em muitos sentidos, ela é também perigosa porque transmite a ideia de que a interpretação da bíblia não possui critérios e seu sentido depende do próprio intérprete ou exegeta. A teologia liberal ou a hermenêutica psicológica da Bíblia traz graves distorções e se torna o pano de fundo de grandes heresias.
O objetivo da Bíblia não é se adequar a cultura de um povo. Por esta razão, na sua essência ela é contracultural, já que coloca costumes e éticas sob averiguação. A cultura precisa ser subordinada à revelação, e não o contrário.
Por esta razão, toda cultura precisa passar pelo crivo das Escrituras. A adequação cultural, sem crítica ou avaliação bíblica desemboca no sincretismo. Por outro lado, quando elementos da cultura do missionário e não os valores bíblicos se tornam critérios de avaliação e julgamento da outra cultura, isto gera elitismo e distanciamento. As duas distorções precisam ser confrontadas.
Como se dá uma transformação cultural?
Apesar de sabermos que a obra missionária precisa respeitar a cultura local, e tentar manter suas tradições, hábitos e folclores, é importante lembrar que o Evangelho gera mudanças estruturais, porque transforma a vida das pessoas e os convida ao arrependimento. Toda cultura precisa de transformação nos aspectos que contrariam as verdades do evangelho ou são fundamentados sob práticas espirituais que distanciam o homem de Deus ou que agridem o ser humano.
O grande desafio não é mudar a cultura, mas mudar o coração humano. Mas quando ocorre transformação interna (que Jesus chamou de novo nascimento), é de imaginar que este novo homem, criado em retidão e justiça segundo Cristo, terá que abrir mão de determinados princípios que contrariam as verdades das Escrituras. Isto implica em desfazer regras e desafiar comportamentos inconscientes. O Evangelho age no coração do homem, levando-o a fazer quando ninguém lhes diz o que devem fazer, porque o coração sofreu uma mudança interior, e os valores de Deus passam agora a governar não apenas a forma de crer e praticar a espiritualidade, mas envolve as decisões e a ética.
Samuel Escobar, no artigo “Missão Cristã e Transformação Social” afirma que “Jesus não entendia sua missão e seu trabalho separado da iniciativa divina que está em ação no mundo… A palavra de Deus entra na história humana, se torna história e marca a história… a presença de Jesus no mundo… é uma presença transformadora, sanadora, desafiadora, inquietante, que convoca para mudança radical e entrega. Isto gera transformação pessoal e consequências éticas… ele precisa sair da sua miséria opressiva, rompendo com o fatalismo do ambiente. Esta é a base de um processo de transformação social geral que surge pela nova fé em Cristo.”
“O Evangelho é o poder de Deus para salvação de todo o que crê.” Quando o Espírito Santo age na natureza humana, deve-se esperar respostas de arrependimento, mudança e transformação. E isto certamente provoca transformações na alma, na sociedade e na cultura.
[1] Fonte: https://www.facebook.com/RonaldoLidorio/photos/a.452159141472813/782039535151437/?type=1&theater
[2] Campos, Silas – em “Perspectivas no movimento Cristão mundial”, Sao Paulo, Ed. Vida Nova, 2009, pgs 408-417
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