sábado, 8 de maio de 2021

1 Rs 17.1-24 O Deus Misterioso

 



 

 

Introdução

Uma das coisas mais inquietantes para o ser humano é tentar esquadrinhar e entender quem Deus é e porque ele faz as coisas como ele faz. Deus transcende qualquer possibilidade de acessá-lo intelectualmente. Por esta razão, uma das mais famosas máximas de Santo Agostinho é fundamental: “Intellige ut credas, crede ut intelligas” (é preciso compreender para crer, e crer para compreender) e fides praecedit intellectum (“a fé precede a razão”). Crer é a chave da compreensão do caos. 

 

Uma das afirmações mais desafiadoras da Bíblia foi feita pelo profeta Isaías, quando estava recebendo as revelações de Deus, de que seu povo retornaria a Jerusalém pelo mandato de um homem ímpio que nem mesmo conhecia a Deus, e a quem Deus chama de “meu pastor”. Quando Isaías ouve tudo isto ele afirma entre êxtase e temor: “Verdadeiramente, tu és Deus misterioso, ó Deus de Israel, ó Salvador.” (Is 45.15).

 

§  Deus é misterioso nos seus planos

§  Deus é misterioso nos seus métodos

§  Deus é misterioso na sua natureza

§  Deus é misterioso nos seus propósitos.

 

Este texto de 1 Rs 17 nos mostra quão misterioso é o Ser de Deus e o agir de Deus.

 

1.     Deus utiliza instrumentos incomuns

 

Depois de ter dado a ordem a Elias para anunciar ao ímpio rei Acabe que um período de grande seca viria sobre Israel, por causa da idolatria da nação, Deus lhe ordena que ele se esconda: “Retira-te daqui, vai para o lado oriental e esconde-te junto à torrente de Querite, fronteira ao Jordão. Beberás da torrente; e ordenei aos corvos que ali mesmo te sustentem.” (1 Rs 17.3-4).

 

Deus leva seu profeta a uma caverna para ser sustentando por corvos. Já imaginaram como foi este processo? As aves chegavam com pedaços de carne no bico, saiam dali e iam embora. Não nos parece um processo tão complicado? Se Deus queria usar animais, que ordenasse a um leão matar uma gazela, comer a metade e deixar o resto para o profeta, isto duraria vários dias. Mas não, Deus escolhe um método absolutamente estranho: ordena aos corvos que alimentem o profeta.

 

Deus resolve usar instrumentos incomuns: Ele ordena aos corvos que o sustentassem. Todos os dias o profeta via os corvos trazendo porções de carne. Era um sustento diário, e Elias experimentava o cuidado de Deus através destes meios estranhos.

 

Talvez isto estivesse coadunado com a visão de Deus de sempre dar o maná diariamente. Talvez ainda nos ajude a evocar a oração dominical “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Jesus não ensina a orar pelo pão de amanhã, ou pelo alimento do ano inteiro, mas pelo pão diário. Todos os dias uma experiência de cuidado do Senhor. O profeta dependia do fenômeno incomum dos corvos trazendo alimentos.

 

2.     Deus usa pessoas inesperadas

 

Depois da experiência tão incomum de ser alimentado pelas aves, a fonte do rio se seca, e agora Deus ordena que ele saia da caverna e vá para uma região que ficava fora dos limites de Israel, onde ele deveria encontrar uma viúva de Sarepta, em Sidom, um país próximo de Israel.

 

Esta providência de Deus é absolutamente não convencional. Deus é criativo! Ela era uma mulher gentia, isto é, não pertencia ao povo de Deus. Tinha tradições religiosas e culturais diferentes do profeta. Além do mais, ela era pobre. Tudo parece complicado. Toda vez que leio este texto imagino que se Deus estivesse pensando em cuidar de mim, seria muito interessante se ele enviasse um fazendeiro rico, desta forma eu me sentiria muito mais confortável. Mas Deus o envia para uma mulher que não tinha comida nem para si, e era dela que Elias deveria receber o alimento. Deus certamente tem um senso de humor maravilhoso.

 

Deus queria cuidar do profeta, mas ele também queria cuidar da viúva pobre. Se fosse um homem rico, não seria milagre. Certa vez recebi a visita do Rev. Valter Moura em minha casa, nós estávamos morando nos EUA, e eu havia indicado o seu nome para integrar a nossa equipe de plantação de igrejas. Ele sempre foi um irmão querido e com uma fé muito bonita. Enquanto discutíamos o projeto, sabíamos que precisávamos levantar parte do sustento da plantação de igrejas com os americanos, e ele me disse todo circunspecto: “Não gosto deste negócio de depender dos homens”. Eu estava no meio de uma crise, lutando com algumas questões pastorais, e respondi, para o escândalo do meu irmão: “Querido, eu prefiro depender dos homens, eles são previsíveis, Deus é misterioso, ele faz as coisas de forma que não esperamos”.

 

Deus é imprevisível! Ele não se submete as regras humanas, por isto ele usa pessoas impensáveis e inesperadas.

 

Por isto, a melhor forma de andar com Deus é tendo o mesmo comportamento de fazer boia-cross no acampamento da igreja em Cocalzinho. As correntezas são bem fortes e te levam em direção às pedras, se você tentar se defender, vai se machucar. O segredo então, é simplesmente deixar a boia levar, e muitas vezes temos a impressão de que seremos esmagados, mas ela gentilmente vai acompanhando a correnteza nos protegendo.

 

3.     Deus estabelece situações inusitadas

 

O profeta vai em direção à cidade para qual Deus ordenou, e ao chegar faminto perto da mulher esquálida lhe faz um pedido: “Então, ele se levantou e se foi a Sarepta; chegando à porta da cidade, estava ali uma mulher viúva apanhando lenha; ele a chamou e lhe disse: Traze-me, peço-te, uma vasilha de água para eu beber. Indo ela a buscá-la, ele a chamou e lhe disse: Traze-me também um bocado de pão na tua mão.” (1 Rs 17.10-11)

 

A mulher foi tão hospitaleira quanto possível. Ela deu água, conforme seu pedido inicial, mas na sua escassez, não podia atender ao segundo pedido do profeta:

 

Porém ela respondeu: Tão certo como vive o Senhor, teu Deus, nada tenho cozido; há somente um punhado de farinha numa panela e um pouco de azeite numa botija; e, vês aqui, apanhei dois cavacos e vou preparar esse resto de comida para mim e para o meu filho; comê-lo-emos e morreremos. (1 Rs 17.12). Ela não tinha como repartir…a comida não era suficiente.

 
Ao ver o pedido do profeta, fico me perguntando: E se eu estivesse no lugar desta mulher, o que faria? Ela não conhecia este homem que aparece do nada, maltrapilho, cheirando a pó do deserto. Será que eu tiraria da comida minha e do meu filho e a daria àquele homem? Como diz o velho ditado: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

 

Mas por mais estranha que seja a situação, a mulher faz o que o profeta diz. Ela acredita na sua palavra. Da sua obediência veio a vitória, porque na verdade, se não repartisse a farinha, ela morreria em seguida. O curioso é que ela não era uma judia (na nossa linguagem hoje diríamos que ela não era crente), aparentemente não tinha conhecimento do Deus de Israel (na nossa linguagem, não conhecia Cristo), mas ainda assim foi capaz de crer e esperar por um milagre. Muitas vezes tenho visto pessoas de fora da igreja crendo com mais intensidade que membros da igreja.

 

A verdade é que Deus quer nos abençoar, mas para que venha a benção, precisamos antes de mais nada, de confiar na sua provisão.

 

Certa vez perguntei a uma pessoa que estava constantemente reclamando de suas finanças desorganizadas, se ela confiava na provisão de Deus, e a resposta foi positiva. Então eu perguntei se ela era fiel no seus dízimos e ofertas a Deus, ela respondeu, não! Parece anacrônico: Se Deus promete que vai cuidar de nós, e exige que sejamos fieis quanto ao uso do nosso dinheiro, e isto inclui investir no reino de Deus, por que então não fazemos o que ele diz?

 

Aquela mulher recebeu a benção de Deus, mas antes de mais nada, ela confiou na promessa do profeta de que nada lhe faltaria.

 

4.     Deus permite que situações anacrônicas aconteçam.

 

O quarto mistério que observamos é o seguinte: A obediência da mulher trouxe bençãos infindáveis para sua vida. A promessa do profeta se cumpriu: “Foi ela e fez segundo a palavra de Elias; assim, comeram ele, ela e a sua casa muitos dias. Da panela a farinha não se acabou, e da botija o azeite não faltou, segundo a palavra do Senhor, por intermédio de Elias.” (1 Rs 17.15-16) Que coisa maravilhosa! A fé daquela mulher trouxe bençãos para sua vida. Gosto muito deste versículo! “Não faltou!” A preocupação quanto à sobrevivência acabou. A paz enfim chegou àquela casa... Entretanto, quando tudo parecia trazer serenidade, o que vemos?

 

Depois disto, adoeceu o filho da mulher, da dona da casa, e a sua doença se agravou tanto, que ele morreu.”  (1 Rs 17.17). Nova tragédia se abate... de proporções inimagináveis. O filho daquela mulher morre. O que poderia ser pior que isto? Quando isto acontece, brotam no seu coração todas as suspeitas inconfessáveis contra Deus. Velhos questionamentos e dúvidas sobre a bondade de Deus afloram. Tanto Elias quanto a mulher reagem de forma áspera contra Deus:

 

A mulher disse: “Então, disse ela a Elias: Que fiz eu, ó homem de Deus? Vieste a mim para trazeres à memória a minha iniquidade e matares o meu filho?” (1 Rs 17.18).

 

Isto aparentemente seria fácil para Elias responder, como homem de Deus, se tudo estivesse resolvido em seu coração, entretanto, sua reação revela também sua insegurança e dor e surgem questionamentos internos: “Então, clamou ao Senhor e disse: Ó Senhor, meu Deus, também até a esta viúva, com quem me hospedo, afligiste, matando-lhe o filho?” (1 Rs 17.20). Elias também não consegue entender. Na sua visão parece que Deus foi longe demais... Veja a expressão: “Até a esta viúva afligiste?” É como se Elias estivesse dizendo: “Agora o Senhor foi longe demais…”

 

Isto me fez relembrar de um episódio acontecido com Tereza dÁvila, (1515-1582), uma mística católica de profunda devoção a Deus, que escreveu um dos mais lindos poemas de amor a Deus.

 

Não me move, Senhor para Te amar
O Céu que me prometestes
Nem me move o inferno tão temido
Para deixar por isso de Te ofender.

Tu me moves, Senhor,

Move-me ver-Te
Pregado em uma Cruz e escarnecido
Move-me ver teu Corpo tão ferido,
Movem-me tuas afrontas e tua morte.

 

Move-me enfim o teu amor,
E de tal maneira,
Que ainda que não houvesse Céu eu Te amaria,
E ainda que não houvesse inferno Te temeria.

 

Nada tens que me dar para que eu Te queira,
Pois mesmo que eu não esperasse o que espero,
O mesmo que Te quero
Eu te quereria.

 

Conta-se que certa vez, ela passou por um período de questionamento com Deus, e travou o seguinte diálogo:

-“Senhor, se estou cumprindo as tuas ordens, por que tenho tantas dificuldades no caminho?”

Deus respondeu:

-“Tereza, não sabes que é assim que trato a meus amigos?”

Tereza respondeu:

-“Ah, senhor, então é por isto que tens tão poucos amigos”

 

No texto lido vemos que o sofrimento daquela mulher era duplo e profundo:

 

§  A perda do único filho. Aquela dor intensa encheu seu peito. Agonia, solidão, tristeza, raiva...

 

§  Memórias não tratadas: O texto não diz o que ela teria feito, mas o certo é que havia determinada coisa em sua história que a fazia associar a morte de seu filho com seus pecados de outrora. Todos nós temos segredos e dores não compartilhadas.

 

O problema é que estas memórias brotam em tempos de dor, e a associamos com uma perda ou tragédia experimentada.

 

Veja a frase da mulher: “Que fiz eu, ó homem de Deus? Vieste a mim para trazeres à memória a minha iniquidade e matares o meu filho?” (1 Rs 17.18).

 

Sua alma abriga uma relação de culpa pela perda de seu filho. Para ela, o fato daquele homem de Deus estar perto fez com que seus pecados antigos agora a estivessem punindo. Deus a havia encontrado castigando-a por seu pecado. Este sentimento é muito comum. Ao passarmos por perdas e tragédias, inconscientemente encontramos uma relação com algo que fizemos de errado.

 

Aplicações:

 

Diante de tantas situações misteriosas e incomuns, gostaria de retirar algumas lições do texto. Em todos estes textos vemos como Deus foi pedagógico, como ele sempre faz conosco.

 

A.    Deus demonstra a Elias que ser fiel a Deus é o caminho certo.

a.     Faltou alguma coisa a Elias?

b.     Faltou alguma provisão? Algum cuidado?

c.     Faltou algo àquela mulher que de obedeceu de forma tão radical? É admirável este texto que sintetiza o cuidado de Deus: ”Da panela, a farinha não se acabou” (a Rs 17.16)

 

B.    Deus não queria mostrar apenas que ele era o Deus da provisão, que providenciaria todo cuidado material para os seus, mas Deus levou aquela mulher a uma cura muito mais densa e profunda: A cura de sua alma

 

a.     Muitas vezes o que precisamos imediatamente é o sustento, mas em muitos casos, o sustento é apenas a parte visível de toda nossa dor.

 

Quando ela perde seu filho, toda sua culpa, remorso, tristeza vieram à tona. A dor fez aflorar nela o seu lado mais sombrio, mais vergonhoso e mais secreto, mas Deus estava ali, não para acusa-la, mas para ministrar o milagre da ressurreição de seu filho e assim demonstrar que a amava. Apesar da sua raiva contra Deus, podemos ver o Pai celeste tratando sua culpa de forma profunda, e limpando sua memória. A morte do filho fez brotar o sentimento de culpa, mas sua ressurreição fez brotar a cura de suas memória de passado e erro.

 

Não bastava a manutenção da vida de seu filho, Deus queria a redenção de sua consciência. Não bastava o sustento, Deus queria trazer cura no nível mais profundo da alma.

 

Quando Jesus cura os dez leprosos, e apenas um volta para agradecer, Jesus responde de forma inusitada: “Vai em paz, a tua fé te salvou” (Lc 17.10). Jesus não estava falando de salvação física, de cura física, porque os outros dez, mesmo sem gratidão foram abençoados. Jesus estava se referindo a cura emocional, cura das memórias, cura da alma. Jesus queria curar não só a lepra do corpo, mas também a lepra da alma, atingindo dimensões mais profundas. Ao retornar, o fizera motivado pela gratidão da cura, mas Jesus resolve lhe dar cura em áreas que ele não sabia que precisava ser curada, redimida. Todos receberam a cura, mas apenas aquele leproso, recebeu o perdão dos seus pecados e a promessa de vida eterna.

 

C.    Deus estava querendo preparar o seu profeta para aprender a orar ousadamente.

 

Como afirmamos, o próximo evento do profeta Elias, no capítulo seguinte, é o o mais portentoso e o mais conhecido de sua vida. Ele enfrentou os 850 profetas de Baal no Monte Carmelo. A experiência ousada de orar pela ressurreição daquele rapaz, capacitou o profeta a ser ousado diante dos falsos profetas. Elias precisava ter uma fé intrépida para o enfrentamento.

 

Quando passamos por grandes  desafios na fé, isto nos faz intrépido para enfrentar os novos desafios que a vida nos oferece. Quando Deus nos permite passar por um grande teste de fé, ele está nos preparando para outros que deveremos enfrentar.

 

Conclusão

 

O Deus misterioso se revela gracioso

§  Ele é gracioso em proteger Elias da fúria do cruel rei

§  Ele é gracioso em sustenta-lo utilizando métodos não convencionais

§  Ele é gracioso em dar proteger aquela mulher que teria morrido de fome sem a presença do profeta.

§  Ele é gracioso em curar as memórias carregadas de culpa daquela mulher, restaurar suas emoções que eram um fantasma na sua consciência.

§  Ele é gracioso em levar Elias e aquela mulher em entender quem ele era. No vs 24, logo após a ressurreição de seu filho, ouvimos uma maravilhosa declaração de fé daquela mulher, que se volta para o profeta, mas certamente estava refletindo o fato de que ela havia se encontrado com o Deus verdadeiro. “Então, a mulher disse a Elias: Nisto conheço agora que tu és homem de Deus e que a palavra do Senhor na tua boca é verdade.” (1 Rs 17.24).

§  Ele é gracioso em preparar Elias para batalhas maiores que certamente teria que enfrentar.

 

Isto tudo aponta para o Evangelho

 

i.               O lugar onde percebemos a ação misteriosa de Deus de forma mais evidente é na cruz. O Deus todo poderoso, criador dos céus e da terra, se vulnerabiliza. O Deus eterno morre.

 

ii.              O Deus misterioso, o justo juiz, assume a culpa do réu e recebe a condenação em si mesmo, para nos livrar da condenação que nossos pecados trazem.

 

iii.            O Deus misterioso vai para a cruz, o lugar mais enigmático da história. Quem poderia antecipar que naquele lugar de maldição, se dava o sacrifício eterno do Cordeiro de Deus para nos justificar diante deste Deus santo?

 

Creio que o texto em que a Bíblia mais aponta para o mistério deste grandioso Deus, seja Rm 11, quando o apóstolo Paulo declara em êxtase e louvor:


Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!
 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).

 

O Deus soberano é um Deus misterioso, porque ele não se submete às regras humanas, e faz todas as coisas pela sua liberdade e vontade. Ele é alto, instransponível, mas profundo e inacessível, a sua extensão é incomparável. “Deus é assim, um Deus misterioso!”

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