terça-feira, 2 de novembro de 2021

1 Co 1.30 Identidade Perdida

 




 

Introdução:

 

Cloe Marques, colega de ministério e contemporâneo do seminário, faleceu em Janeiro de 2014. Ele foi um dos homens que conhecia com mais profunda piedade. Ele orava diariamente pelos mais de 100 alunos do seminário. Aos 63 anos, começou a apresentar alguns sintomas de dores e febre, e ao procurar orientação médica, teve duas surpresas ruins. A primeira, um rápido diagnóstico apontou que ele só possuía um rim; a segunda, ele tinha um tumor cancerígeno neste rim, com metástase. Minha esposa e eu fomos visitá-lo e esta visita se tornou uma das coisas mais ricas da nossa vida. Duas coisas foram perceptíveis:

 

Em primeiro lugar, em nenhum momento ele nos pediu para que orássemos pela sua cura.

 

Em segundo lugar, apresentava uma  serenidade e paz que nos impressionou, diante do seu diagnóstico.

 

No final de nossa abençoada conversa, onde certamente fomos mais abençoados que ele, fomos consolar e saímos consolados, abri a Bíblia para ler um texto das Escrituras (hábito pastoral...) percebi que, nenhum dos textos convencionais que eu pudesse ler faria qualquer sentido naquele momento. Enquanto folheava a Bíblia em busca de uma palavra, e conversávamos, meus olhos fixaram em 1 Co 1.30: “Vós sois de Deus, em Cristo Jesus”. 

 

Era exatamente aquilo que eu precisávamos lembrar naquela hora. Aquele irmão amado pertencia a Deus. Sua vida não era apenas um acidente e aquele câncer, por mais desproposital que parecesse, estava nas mãos de Deus. Ele era de Deus, em Cristo Jesus, filho amado.

 

Nesta semana, visitei outro colega da nossa equipe pastoral, nosso querido Pr. Black (Edson). Ele foi diagnosticado com um câncer em estado avançado, e tem levado sua vida sem nenhuma grande intercorrência e só descobriu o câncer por causa de uma ressonância magnética que foi feita nos dias em que estava que estava com Covid-19. Fomos visitá-lo com todos os pastores em Cocalzinho, e ali, juntos conversamos, oramos e cantamos. Ele deve começar seu tratamento de quimioterapia, mas a Palavra que tem vindo constantemente ao meu coração é a seguinte:

 

Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor.” (Rm 14.8). Black está nas mãos de um Deus que o conhece. Orando por ele, veio um pensamento ao meu coração. A vida deste irmão está nas mãos do Senhor. Deus será glorificado através desta doença. Portanto, precisamos lembrar que “somos do Senhor!”

 

No texto que lemos acima encontra-se uma das doutrinas mais profundas nas Escrituras e uma das que mais facilmente nos esquecemos. Nós somos de Deus! Esta é a mensagem mais urgente que precisamos lembrar. O grande problema de nossa espiritualidade é que sofremos um grave problema de orfandade. Satanás parece nos fustigar com pensamentos nos levando a perder a identidade mais profunda de nossa existência. Nós somos de Deus!

 

Quando os discípulos foram enviados para sua viagem evangelística em Lucas 10, a palavra de Deus nos diz que voltaram impressionados com o poder de Cristo sobre suas vidas. No entanto, Jesus quis colocar seus olhos noutra verdade. “Alegrai-vos, não porque os demônios se vos submetem em meu nome, mas porque os vossos nomes estão escritos no livro da vida”(Lc 10.17). A grande questão não é se temos poder ou não, mas se nos vemos como filhos amados. Nossa identidade não é de guerreiro, mas de filhos amados.

 

Por isto a Palavra de Deus nos vem confortar ao dizer: “Vós sois de Deus!”

Você reconhece isto em sua vida?

 

O livro do profeta Malaquias é composto de sete controvérsias do povo com Yahweh, e isto me levou até a escrever um livro cujo titulo é: “Deus no banco dos réus”. Deus fazia declarações acerca do seu povo, que de forma rebelde contra argumentava e por sua vez acusava Deus. O que Deus dizia sobre eles não lhes fazia qualquer sentido.

 

E sabem qual foi a primeira controvérsia? Ela surge já nos primeiros versículos, e não sem razão, é sobre o amor de Deus.

 

Deus declara:

-“Eu vos tenho amado, diz o Senhor; mas vós dizeis: Em que nos tens amado? Não foi Esaú irmão de Jacó? – disse o Senhor; todavia amei a Jacó” (Ml 1.2).

 

O povo não conseguia ver o amor de Deus para com eles. Sentiam-se perdidos na sua identidade. Não se viam como pessoas amadas. Apesar de não reconhecerem o amor de Deus por eles, Deus enfaticamente afirma: “Eu vos tenho amado”.

 

Quando perdemos nossa identidade, nos tornamos órfãos. Como se sente o órfão?

 

Uma das primeiras características ao se perder a identidade é que não consegue descansar no Senhor.

 

Sl 46.10 diz:

-“Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus”.

 

Uma versão mais moderna diz:

-“Pare de lutar!”

 

Pessoas órfãs, na sua natureza intrínseca facilmente se tornam vítimas ou tiranas. John Owen, um dos mais conhecidos puritanos afirmou: “Apesar de ser sua maior dificuldade na vida cristã, crer que o Pai o ama, você comete seu maior pecado ao deixar de acreditar que Ele realmente o ama”.

 

No livro de Sofonias Deus faz a seguinte declaração de amor ao seu povo:

-“O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, poderoso para salvar-te; ele se deleitará em ti com alegria; renovar-te-á no seu amor, regozijar-se-á em ti com júbilo” (Sf 3.17).

 

Paulo afirma neste texto lido:

-“Vós sois de Deus, em Cristo Jesus”.

 

Uma frase aqui nos chama a atenção. “Vós sois de Deus, em Cristo Jesus”. A frase “em Cristo” aparece cerca de 100 vezes nos escritos paulinos. Muitos querem ser de Deus fora de Cristo. Mas a Bíblia nos ensina que apenas por meio de Cristo somos adotados por Deus e nos tornamos filhos amados. Lemos ainda na palavra que todas as bênçãos espirituais encontram-se em Cristo (Ef 1.3).

 

Cristo se torna para nós “Vós sois de Deus, em Cristo Jesuso qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, justificação, santificação e redenção, para que, como está escrito: Aquele que se glória, glorie-se no Senhor.” (1 Co 1.30-31). 

 

Cada uma destas palavras possui verdades maravilhosas. No texto anterior, Paulo estava contrastando a sabedoria do mundo com a sabedoria de Deus, e várias vezes afirma que Deus considerou louca a sabedoria do mundo e que Cristo é a sabedoria de Deus.

 

Pense ainda no significado de nossa justificação. O que significa a expressão: “Cristo se vos tornou sabedoria e justificação?”

 

No próximo final de semana, dia 31 de Outubro de 2021 estaremos celebrando os 504 anos da Reforma Protestante, então, torna-se imperativo refletir um pouco sobre este conceito tão bíblico e que tem acompanhado o pensamento das igrejas reformadas em todos os séculos.

 

Deus conhece nossas fraquezas, sabe de todos os pecados que temos cometido, conhece nossa natureza rebelde, independência, arrogância, indiferença, mas nos atrai com laços de amor e misericórdia, para entendermos o que ele fez na cruz através do seu filho amado, assumindo nossa culpa e morrendo nossa morte. Quando a vida de Cristo se torna a nossa vida, passamos a viver de forma que lhe agrada, passamos a viver “Em Cristo”. A justiça que produzimos por nós mesmos é insuficiente para agradá-lo, mas Cristo é o nosso advogado, ele nos representa junto a nós. Deus nos vê em Cristo. Ele se torna a nossa justiça perante Deus. Por isto Paulo afirma que “Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1).

 

Justificação é um termo judicial. Ser justificado é o oposto de ser condenado. A mensagem do evangelho é que, embora o pecado nos condene, aceitar o sacrifício de Cristo pela fé nos absolve. O juízo final permite apenas duas possibilidades: justificação ou condenação. Sem Cristo, todos estão condenados; mas todos os que estão em Cristo são justificados. Para eles, não há mais condenação. (Rm 8.1). 

 

 

Martinho Lutero, o grande reformador, afirma:

“A justificação vem somente pela fé. O que realmente acontece é que Deus nos imputa a justiça de Cristo, que age 'como um guarda-chuva contra o calor da ira de Deus.” Lutero afirma que detestava a expressão “justiça de Deus”, porque geralmente ela era usada no sentido do julgamento de Deus, mas através do evangelho ele entendeu que esta justiça é revelada em Cristo, e sua justiça de Deus é  passiva, não somos nós quem fazemos algo para sermos justificados (justificação ativa), mas é Deus quem nos concede esta justiça. A Bíblia diz que Abraão creu em Deus, e isto lhe foi “imputado”, para justiça. *Rm 4.3). Imputar é o mesmo que atribuir. Deus nos dá algo que não temos em nós mesmos.  Deus nos justifica. Ele é quem faz. É uma justiça passiva.

 

A Justificação é um ato contínuo da parte de Deus em nosso favor. Deus nos imputa os méritos de Cristo, e não mais nos considera culpados dos nossos pecados.

 

“Justificação é um ato da livre graça de Deus, nos concedendo o perdão dos nossos pecados e nos aceitando como justos diante dos seus olhos, apenas em função da justiça de Cristo que foi imputada em nós e recebida exclusiva e tão-somente pela fé”

(Catecismo da Confissão de Fé de Westminster).

 

Martinho Lutero afirma: “Mediante a fé em Cristo, portanto, a justiça de Cristo se torna a nossa justiça, e tudo o que ele tem se faz nosso. Ele mesmo se torna nosso.”

 

João Calvino: “Uma pessoa será justificada pela fé quando, excluída da justiça das obras, coloca completamente a sua fé na justiça de Cristo e aparece revestida aos olhos de Deus, não mais como pecador, mas como justo.”

 

Qual é a sua identidade? Santo ou um pecador? O que eu descobriria sobre você se eu te conhecesse como você realmente é  

 

Se você conhece razoavelmente a Bíblia, você dirá que é um pecador. E esta é uma grande verdade. Mas se você está em Cristo, e entende mais profundamente a Bíblia, você verá outra coisa maravilhosa. Você é uma pessoa justa! Não por causa da justiça sua, mas por causa dos méritos de Cristo. Lutero fez uma afirmação maravilhosa, baseada nas Escrituras Sagradas.

“Quando olho para mim mesmo, reconheço que é impossível que eu seja salvo. Mas ao olhar para cruz, reconheço que é impossível que eu me perca”.

 

Então, você é um pecador ou um santo? A resposta a esta pergunta é paradoxal: Você é ao mesmo tempo pecador e santo. Jamais compreenderemos o conceito da graça de Deus se não entendermos a realidade de nosso pecador. O grande pecador sente necessidade de um grande salvador. Ele está perdido, precisa de ser salvo. Se você não sente necessidade de salvação, certamente é porque você não percebe sua realidade de pecador, e sua necessidade de ser perdoado pelo sangue de Cristo.

 

“Quando um homem se torna melhor, compreende cada vez mais claramente o mal que ainda existe em si. Quando um homem se torna pior, percebe cada vez menos a sua própria maldade” (C. S. Lewis).

 

Na vida cristã podemos construir duas formas de viver: Na primeira, temos o círculo da Incredulidade, na segunda, o círculo da fé. Estes são os dois estilos de vida completamente diferentes.

 

O Círculo da Incredulidade

Quando perdemos nossa identidade em Cristo, criamos um sentimento vago sobre nossa vida espiritual. Pensamos mais ou menos assim: “Se eu pudesse ser mais auto-controlado, ou acreditasse mais, me livraria da minha natureza pecadora”, mas a verdade é que a natureza pecadora é um monstro com o qual iremos lutar até a morte. Mas quando descobrimos nossa identidade em Cristo, nos tornamos mais atentos à luz da cruz, e isto nos dá novas oportunidades para arrepender e confiar em Jesus. Isso abre nossas vidas mais completamente para o poder do Espírito para subjugar a natureza pecadora.

 

Quando perdemos nossa identidade, entramos no circulo da incredulidade e nossa identidade em Cristo torna-se apenas uma concordância intelectual ou teórica. Esquecemos quem somos em Cristo, e passamos a nos definir pelos sucessos ou fracassos. Muitos cristãos vivem dessa maneira.

 

No ciclo da incredulidade, entramos em desespero e derrota. Sentimo-nos apenas como um “pecador pequeno”, que não tem cometido graves faltas, apesar de vivermos relacionamentos destrutivos, caracterizados por raiva, mexerico, manipulação e desespero.  Passamos a viver na dependência dos ídolos: raiva, orgulho, controle, ócio  e as acusações de Satã se tornam verdades em nossa vida. Na exposição do nosso pecado concluímos que isto é realmente quem somos e isto nos faz desanimar, pois os hábitos, pecados, sucessos e falhas nos definem. Nos esquecemos da retidão de Cristo, de quem ele é e de que, Deus, em Cristo, imputou seus méritos a nós. 

 

Círculo da Fé

                                                                                                  .

No círculo da fé, buscamos nossa identidade em Cristo e contemplamos sua perfeita obra na  cruz. Nos orgulhamos na cruz, porque sabemos que ela, ao mesmo tempo que revela nosso profundo fracasso, aponta para nossa grande esperança. Estamos em Cristo. Morremos com ele e com nele vivemos. A velha natureza pecadora ainda precisa de arrependimento. “Mas eu não vivo mais! Cristo vive em mim” (Gl 2.20).

 

Quem sou eu, “santo” ou “pecador” Olhando na perspectiva da redenção, o santo ganha facilmente! Parece estranho afirmar isto, justamente nós que sabemos de quão fracassados somos, mas a verdade é que, de acordo com as Escrituras, aqueles que estão em Cristo, não vivem mais na realidade de duas identidades que estão no mesmo status. O “pecador” está lá, mas não é sua verdadeira identidade (Rm 7.17). Precisamos nos arrepender; somos responsáveis, mas “pecador” não define quem realmente somos. Desta forma, escolhemos  alegremente ver outros cristãos dessa mesma forma. Arrependimento e alegria fazem parte da minha vida. Apreciamos relacionamentos construtivos com outros, caracterizados por encorajamento e paz.

 

Baseado nessas verdades, podemos agora admitir a natureza pecadora em vez de escondê-la. Eu sei do meu fracasso, dos meus medos, segredos e dores, mas estou construindo minha identidade no status espiritual sobre o qual Cristo me colocou. Eu me arrependo da natureza pecadora e passo a acreditar no que sou em Cristo e isto me leva ao arrependimento e ao desejo de glorificar Jesus no meu corpo e na minha vida.  Minha culpa não me define. Eu tenho a vida de Cristo!

                                           

Conclusão:

 

Conta-se que o Rei Luiz XIV, da França, quando criança viu seu pai sendo jogado numa cadeia por causa de um levante contra seu reinado enquanto ele foi levado ainda pré adolescente para viver longe do palácio, em condições adversas e provocativas, para viver junto de soldados e guerreiros depravados e de péssimos hábitos que o rodeavam. Estes homens cometiam toda sorte de orgia, sordidez e degradação moral, vivendo vida dissoluta, mas o rapaz, resolutamente não cedia às chantagens e provocações, até que um dia um deles lhe perguntou: “Por que você não faz as coisas que os outros fazem?”. E ele, serenamente respondeu: “Por  ainda vou me tornar o rei da Franca, e estas coisas não são dignas de um rei”.

 

Quando descobrimos nossa identidade em Cristo, muito daquilo que pode parecer tão atraente, deixa de ter sentido, porque afinal, realmente sabemos quem somos, e quem é o nosso pai. Quando enfrentamos adversidades e lutas, ainda podemos recordar quem somos em Cristo. Nós não somos bastardos, nem órfãos, nem escravos. Nossa vida está oculta em Cristo. Em Jesus construímos nossa identidade.

 

Vós sois de Deus, em Cristo Jesus!”

 

Anápolis

Janeiro, 2014

Refeito Anápolis, Outubro 2021

 

 

 

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