Introdução
O homem moderno pode ser descrito de forma caricatural como um cogumelo: “cabeça grande e peito pequeno”. Somos uma sociedade com profunda dificuldade de amar. Somos capazes de reter grande quantidade de conteúdo acadêmico, nos tornarmos bons alunos, excelentes profissionais e brilhantes intelectuais, mas o coração pequeno, os afetos encolhidos.
Alguns anos atrás li um livro com curioso título “AMOR”, escrito por Leo Buscaglia. Apesar de sua linha zen budista, ele escreve de forma interessante. Na verdade, ele foi convidado por uma grande universidade na California, para lecionar uma matéria com o mesmo título. Você pode imaginar isto? Uma faculdade com uma matéria sobre amor e afetividade?
Ele afirmou que escreveu este livro, depois que uma de suas alunas, uma brilhante e bonita estudante, com 20 anos de idade, se atirou do alto de uma montanha para as rochas, suicidando-se. Isto o levou a a questionar se ele realmente entendia de alma humana, e o que ele poderia fazer se soubesse de toda a dor que aquela jovem sensível e inteligente experimentava.
Suas perguntas foram as seguintes:
O que sabemos sobre o amor e amar?
O que sabemos sobre afeto e carinho?
Por que temos tanta dificuldade em sermos fraternos?
Um exemplo simples demonstra como nós invertemos os valores. Gasta-se, em média, 200 horas preparando a cerimônia do casamento, e apenas 3 horas preparando-se para o casamento em si. Muitos noivos e noivas fazem de tudo para não participarem de qualquer discussão sobre o assunto.
Afinal, o que está acontecendo com nossos afetos?
A Segunda carta de Paulo aos Coríntios é chamada por muitos de “A carta esquecida.” Isto porque ela não é conhecida como as demais, e normalmente os pregadores não pregam muito nesta carta. Contudo, ela é a carta mais pessoal de Paulo a uma igreja, e também a mais dolorida. Paulo se sente rejeitado ministerialmente, a igreja que ele havia fundado questiona sua autoridade ministerial e pede uma carta de apresentação do “presbitério” (2 Co 3.1), ele é injustamente acusado de ser “mundano em seu proceder” (2 Co 10.2) e ainda recebe críticas quanto ao seu estilo de pregação ((2 Co 10.12).
Neste texto Paulo fala de coração e afetividade. Da necessidade dos irmãos se “dilatarem afetivamente” ((2 Co 6.13) e de terem corações acolhedores (2 Co 7.2).
Este é um texto que nos ajuda a demonstrar que o evangelho precisa atingir o coração. Ao escrever sua carta aos Colossenses ele segue a mesma visão de como o evangelho precisa atingir os afetos, ao afirmar: “Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade.” (Col 3.12). O evangelho precisa nos revestir de “ternos afetos de misericórdia”. Ternura faz parte do evangelho.
A Igreja de Corinto não sabia se dar. Paulo reclama isto. (2 Co 6.11)
Por que é tão difícil amar? Qual é a nossa dificuldade quando falamos de afetividade?
Penso que pelo menos algumas razões podem ser dadas:
A. Nossos modelos relacionais – Nem sempre os modelos de afetos são muito positivos. Muitas vezes já são distorcidos dentro de nossa casa num ambiente patológico e disfuncional. Muitas famílias são marcadas pela competividade, inveja, disputa, feridas. Quanta doença um lar pode abrigar, quanta neurose…
Tenho ouvido muita gente ferida e machucada. Gente que não sabe lidar com amor, cujos relacionamentos são marcados por insegurança, suspeita, culpa, medo e ameaça. Famílias desestruturadas geram filhos que não sabem o que significa AMOR. Ternura e afetividade não conceituais, mas aprendidos na vivência, na dinâmica do dia a dia.
Uma das experiências mais pesadas que ouvi foi de uma pessoa que na morte de seu marido, vítima de um ataque cardíaco, me procurou após o funeral para desabafar e falar de sua crise: Ela se sentia culpada porque a morte de seu marido foi um grande alívio para ela. Seus sentimentos ficaram confusos diante do que ela estava experimentando. Eles estavam se separando e a morte dele trouxe uma série de “benefícios”.
Por que amar é tão complicado? Por que temos dificuldade com afetividade? Boa parte certamente pode ser explicada a partir dos modelos que conhecemos. Pessoas feridas, ferem. Pessoas que não experimentaram amor tendem a reagir de forma estranha em relação ao amor.
B. Medo de entrega e doação - Por alguma razão inconsciente ou não, temos medo de amar, de nos darmos.
Existe algo que nos leva a ter medo de sermos vulneráveis. Uma espécie de sensação neurótica de proteção. Amar nos vulnerabiliza, sabemos disto. Quem ama se fragiliza. Queremos passar uma imagem de força, gente que não fraqueja. Muitos temem amar porque acham que isto é fraqueza.
Paulo afirma neste texto que os irmãos da Igreja de Corinto estavam limitados em seus afetos.” (2 Co 6.12) Eles construíram barreiras emocionais que bloqueavam a manifestação dos afetos e assim estavam encolhidos na capacidade de amar.
Muitas vezes esta dificuldade de amor surge no casamento. Casais que não querem se dar um ao outro. Certa mulher numa palestra de minha esposa sobre sexualidade disse que não gostava da ideia de ficar se oferecendo para seu marido, e minha esposa respondeu: “O seu marido é a única pessoa do mundo para a qual você pode se oferecer. Ele é o seu marido…”
Muitos temem a doação, a vulnerabilidade. Mas não existe amor verdadeiro sem vulnerabilidade. O nosso Senhor, se deu por inteiro, ele tornou-se frágil, foi ridicularizado e morreu numa cruz. Ele não teve dificuldades em se entregar, sem reservas, porque todo amor genuíno gera este tipo de atitude.
3)- Suspeitas – Muitos relacionamentos são marcados por desconfianças. “Esta pessoa vai me trair… Eu não quero sofrer...
Pessoas assim estarão o tempo todo questionando a realidade do amor. E sabe o que vai acontecer? Elas vão perceber que não são amadas. O que elas temem vai acontecer…Por que? Porque as pessoas eventualmente falharão, haverá momentos de afastamentos naturais, circunstanciais. Por isto a Bíblia afirma que “o amor, tudo sofre, tudo crê, tudo espera.” (1 Co 13.7) Se há suspeição o amor tenderá ao fracasso.
É mais ou menos como a história de um homem que teve seu pneu furado numa estrada deserta, à noite, sem o macaco para trocar o pneu. Ao longe, avistou uma casa e resolveu ir até lá pedir o macaco emprestado. Enquanto caminhava, ficou pensando que o dono da casa não atenderia a porta por ser tarde, poderia pensar que fosse um bandido. “Mas logo eu, que sou honesto e trabalhador, só estou precisando de um macaco. Claro que vai me emprestar”. Continuou caminhando e pensando: “o dono da casa, se abrir a porta, não vai querer emprestar o macaco pra um desconhecido, vai pensar que não vou devolver”. E pensando: “Mas quem ele pensa que é em não me emprestar? Logo eu, um homem honesto que não deve nada a ninguém”. E pensamentos negativos continuavam a tomar conta dele. Assim que finalmente chegou à porta da casa, tocou a campainha. O dono da casa apareceu e disse: “Pois não?” E o homem respondeu: “Sabe de uma coisa? Você pode ficar com este maldito macaco seu velho rabugento!”
Uma coisa que costumeiramente comentamos em casa é que um amigo não precisa ficar provando que é amigo. Não é possível ser amigo de quem você precisa estar provando o tempo todo sua amizade. Quando um velho amigo nos cobra respondemos: “Se depois de 5, 10 anos, andando juntos, não fomos capazes de demonstrar que somos amigos, então não será um sim ou não que demonstrará minha consideração”. Pessoas que estão sempre cobrando demonstração de afetos, normalmente vão se frustrar. Nem mesmo um amigo leal atenderá a todas as expectativas, todo tempo.
4)- Experiências negativas: Esta é outra razão que gera barreira à afetividade: são as experiências traumáticas, seja a falta de perdão, um abuso sofrido, a agressividade.
Quando passamos por experiências negativas, aprendemos a blindar os afetos, e usamos armas para defender e ferir, como o silêncio, a indiferença e o descaso. Pecados cometidos contra nós podem atrofiar os afetos. Lares marcados por raiva e amargura tornam-se inimigos mortais da carícia, aceitação, amor, sexualidade.
O diabo não gosta de carinho, por isto, a primeira coisa que acontece depois de uma briga não resolvida de um casal surge o distanciamento e a separação física. Eles não conseguem mais se abraçar, beijar, namorar. Satanás é o anticarinho, o antiabraco, ele é oposto a ternura. Ternura e afetividade não são geografias por onde Satanás transita.
Este texto nos ensina algumas verdades, e uma delas é que a mensagem do evangelho alarga os afetos. “Para vós outros, ó coríntios, abrem-se os nossos lábios, e alarga-se o nosso coração. Não tendes limites em nós; mas estais limitados em vossos próprios afetos. Ora, como justa retribuição (falo-vos como a filhos), dilatai-vos também vós.” (2 Co 6.11-13)
O Evangelho precisa dilatar nossos afetos. Ao escrever o livro “Teologia do Afeto”, defendi a tese de que não existe verdadeira espiritualidade cristã que não atinja os afetos. Quando Cristo chega ao nosso coração, nossos corações são dilatados, a fé precisa atingir sentimentos e emoções. Ou, como afirma o psiquiatra Scott Peck: “Maturidade espiritual é igual maturidade emocional.” Não podemos dizer que alguém é maduro espiritualmente se o evangelho não atingir o âmago de nosso ser.
William Barclay, conhecido comentarista ao analisar este texto, afirma que ele, intencionalmente iria omitir os versículos 6.14-7.1, colocando junto com 6.11-13 o texto de 2 Co 7.2-4: “Na versão King James em 2 Co 6.12, notamos uma tradução que é muito comum no Novo Testamento e não muito feliz: "Você está estreitado em suas próprias entranhas". A palavra traduzida por entranhas ou intestinos é a palavra grega splagchna, que significa literalmente as vísceras superiores, o coração, o fígado e os pulmões.” Na visão hebraica nesses órgãos estaria a sede das emoções. Na verdade, a palavra melancolia significa literalmente que a pessoa tem um fígado preto, adoecido. Em português colocamos a sede do amor no coração e é mais natural usar a palavra coração do que intestinos, mas no hebraico a ideia é que os sentimentos estavam nas entranhas.
Crisóstomo afirmou que “assim como o calor expande as coisas, o calor do amor expande o coração humano.”
No capítulo 7 Paulo afirma: “Acolhei-nos em vosso coração.” (2 Co 7.2). Logo adiante ele faz menção de Tito, que era o pastor da comunidade, ao dizer: “O seu entranhável afeto cresce mais e mais para convosco.” (2 Co 7.15) Vejam mais uma vez a ideia da afetividade estar ligada às entranhas, ser algo visceral. Tito era capaz de amar uma igreja que agiu de forma tão dura com Paulo, seu mentor e amigo. O amor de Tito era capaz de transpor barreiras que tantas vezes dificultam a aceitação do outro.
A afetividade deve ser a marca de um cristão.
Segundo o educador Jean Piaget, o desenvolvimento intelectual do ser humano abrange dois lados: um afetivo e um cognitivo. É impossível desvincular a afetividade da cognição, ou o contrário. Isso justifica como é muito mais interessante aprender algo novo quando achamos a pessoa inspiradora. Geramos nessa situação uma relação de afeto e admiração que nos mantem mais atentos e envolvidos com o novo assunto, mesmo na vida adulta.
A mensagem do Evangelho gera satisfação interior. Deus usa agentes humanos para trazer conforto divino (2 Co 1.3-7). O consolo de Deus veio a Paulo por intermédio de Tito. Paulo recomenda a igreja para que alargue o coração. “Não tendes limites em nós, mas estais limitados em vossos próprios afetos.” (2 Co 6.12) O coração daqueles irmãos estava sofrendo de nanismo psicológico, com sentimentos atrofiados. Muitos podem viver assim, limitados nos afetos. Perdem-se por não se entregarem, nem se deixarem ser tocados. Muitas vezes parecemos o muro de Berlim: arames farpados, soldados vigiando, tensão, tiros ao tentar atravessar a cerca. Limitados nos afetos.
Precisamos cuidar para que nossos afetos não se encolham. Não devemos negar o desejo de fazer alguma coisa boa para alguém que nós amamos por causa de nosso medo. O evangelho nos ajuda a superar estes temores, de dar um presente, fazer uma surpresa para um amigo, amar sem reservas, criar alguma coisa romântica para o cônjuge. Há muitas formas de dilatarmos a alma, de sairmos do casulo, se rompermos com a atrofia emocional. Precisamos tomar cuidado com os afetos limitados do nosso coração.
O convite do texto é: “dilatai-vos também vós.” (2 Co 6.13)
Conclusão
Cristianismo é uma religião que tangencia o coração. Não basta ter convicções ortodoxas. Jesus confronta a igreja de Éfeso, que era fiel, laboriosa, perseverante, mas que havia abandonado o primeiro amor (Ef 2.4). A fé cristã é fundamentada na entrega e na doação. O evangelho nos mostra que Deus é um ser de afetos, diferente de todos os outros deuses, o Deus da Bíblia se doa, se entrega. Apesar de ter sido desprezado e incompreendido, Jesus na sua humanidade, serviu, cuidou, e na cruz, sua vida foi de total entrega e doação.
Em 2 Co 5.14-15 lemos: “Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por todos; logo, todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou.” O texto afirma que “Ele morreu por todos…” Que amor poderia ser maior que este? Não é um Deus que pede, é um Deus que dá. Ele derramou seu sangue na cruz por todos, para que pudéssemos ser salvos.
Por isto, não é possível ser cristão sem entregar o coração, sem estar desarmado. Cristianismo por natureza implica em rendição. Braços levantados, sem defesas, mente aberta para acolher este amor e revelar este amor aos irmãos. Quem compreende o amor de Deus em sua vida, compreende a necessidade de estar vulnerável diante do outro.
Paulo se abre neste texto, justamente para uma igreja que fez duras críticas ao seu ministério, questionou seu apostolado e criticou seus sermões. Paulo ignora tudo isto e se fragiliza, abrindo sua alma. Ele sabia que não poderia ter o coração fechado.
Existe uma saudação quase universal hoje nos meios pentecostais: “Paz do Senhor!” Não há nada errado em nos saudarmos desta forma, Jesus várias vezes saudou assim seus discípulos, mas não existe nenhuma ordenança específica sobre este assunto nas Escrituras. Uma saudação que brota repetidas vezes na Bíblia, muito mais do que a afirmação de Cristo “Que a paz do Senhor esteja sobre vós”, é a afirmação “Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo.” (1 Co 16.20; 2 Co 13.13)
Esta saudação, embora recomendada nas Escrituras é completamente dissociada de nossa cultura. Muitos equivocadamente a levam ao pé da letra, mas a ênfase do texto é sobre algo bem maior, quer apontar para algo mais profundo. O significado maior dela é que, como povo de Deus, “É impossível ser frio!”. Não dá para ignorar o irmão, ser indiferente, passar perto dele sem percebê-lo, é preciso “beijá-lo”, (em nossa cultura, um gostoso abraço, na cultura americana, um caloroso aperto de mão já é bastante!)
Quem tem o coração dilatado pela graça de Deus e compreendeu quem é o Deus gracioso e amoroso, não consegue se limitar em seus afetos, mas rompe com a síndrome de caramujo e se abre ao irmão, à esposa, ao seu filho.
É impossível olhar para a cruz, entender o amor gracioso de Deus, e nos mantermos numa atitude de insensibilidade, fechamento, descaso e distanciamento. Por isto a Bíblia nos exorta neste texto: “Ora, como justa retribuição, dilatai-vos também vós.” (2 Co 6.13)
Rev/ Samuel Vieira
Encontro de Casais- Brasilia-DF
10.junho.1989
Refeito e pregado em Boston, 12.9.99
Anapolis, Março 23