"Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só, mas se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida perde-a, mas quem odeia a sua vida neste mundo, preservá-la-á para a vida eterna." (Jo 12.24)
Introdução
Um dos maiores desafios da vida cristã tem a ver com nossa tendência ególatra. O Evangelho constantemente nos desafia a morrermos para o nosso eu, e nós sempre estamos lutando para preservá-lo. O texto de João 12.24 afirma que "se o grão de trigo não morrer, fica ele só, mas se morrer, produz muitos frutos". O problema é nossa autopreservação, queremos continuar vivendo, lutamos pela sobrevivência e autonomia do nosso Eu.
Morte da nossa natureza não é o tipo de discurso moderno. O zen Budismo e as filosofias orientais, sustentados em tantos livros de autoajuda, colocam o fundamento do homem no seu próprio Eu, na sua preservação, portanto, o que a Bíblia afirma não é politicamente correto. A Bíblia afirma que trazemos em nós a sentença de morte, para não confiarmos em nós mesmos. Somente a cruz pode nos capacitar a viver da forma que agrada a Deus, mas tentamos viver baseados em nosso próprio eu. O resultado? Desenvolvemos uma forma mais requintada e sofisticada de autopromoção. Fazemos as coisas aparentemente para Deus, mas quem se encontra no centro somos nós mesmos.
“Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena.” (Cl 3.5)
“Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz, e siga-me!” (Mc 8.34)
“Sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos.” (Rm 6.6)
A maior luta em nossa vida cristã é contra este inimigo mortal que temos dentro de nós: nossa carne, autocentrada, egoísta, egocêntrica, autoglorificada. Nós não queremos morrer, mas queremos ser glorificados, exaltados, apreciados. Uma das orações básicas de todo dia deveria ser: “Senhor, livra-nos de nós mesmos”. Eis algumas áreas que precisamos refletir:
Auto Enamoramento. Narciso. Apaixonado por si mesmo. Não consegue amar ninguém, nem apreciar o outro. Pessoas narcisistas imaginam que o eixo do mundo gira em torno deles. Auto absorvidos, grandes fantasias, sentimentos de inferioridade e dependência excessiva de admiração externa e aclamação pública. Sentimento inflacionado de valor para suas atividades. Exibicionista: Quem você busca ver nas fotografias de retiros?
Pessoas auto enamoradas não fazem amor, já que não encontram correspondentes. O outro é apenas um detalhe para lhe dar prazer. Narciso não busca complementariedade e encontro, já que, também, não deseja o outro. O outro existe para servir, são tão autocentradas e autopromovidas que querem sempre sugar o outro. O outro existe para se curvar diante de sua beleza. Cria uma falsa visão de sua beleza, inteligência e competência. Busca nos outros, não pares, mas subalternos.
Ídolos. O problema maior não se encontra naqueles que o tratam como ídolo, mas quando a pessoa começa a pensar que de fato ela é. No mundo religioso. “homens de Jesus”, que parecem deter o monopólio do sagrado, pastores que celebram a cerimônia de seu próprio casamento e se autobatizam. Tem aparência de espiritualidade, mas seu rosto é deformado, nariz empinado e chapéu de bruxa. Se aproximam do espelho e perguntam: “Espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?” A fábula existe para revelar as conseqüências do auto enamoramento...
Autojustificação. Tentativa constante de provar inocência/competência. A maior luta no casamento é pelo poder (não para mandar), mas provar que está certo.
Autojustificação é o inimigo número 1 do Evangelho. Adão se defende, se cobre, justifica-se. Nega o seu lado sombrio. Acusa e defende-se!
A autojustificação nos leva a ter dificuldade de se olhar no espelho, admitir culpa e erro, pedir perdão, reconhecer falhas. Os outros erram, ele no máximo se equivoca. A mentira é uma forma de
Autojustificação, medo de lidar com as emoções e com suas sombras. A mentira no trabalho é uma forma de impedir que possa surgir a imagem de incompetência.
Na carta de Paulo aos Filipenses, ele joga fora seu currículo ao entender o evangelho. Ele quer se encontrar diante de Deus, “não tendo justiça, senão a que procede de Deus.” (Fp 3.10)
Autogratificação. Princípio do prazer. Pessoas centradas no bem-estar e no conforto. Este estilo de vida gera dependência, vicio e compulsão. Dificuldade em se relacionar num nível de doação e entrega. Pelo contrário, vai ser cada vez mais exigente na convivência, dificuldade com a alteridade. Dificuldade para “transar” (linguagem sugestiva), pois envolve troca, encontro. Surge a tentação de instrumentalizar o outro e estabelecer relacionamentos parasitários. O outro lhe deve satisfação e prazer. A “simbiose incestuosa” tende a brotar. Apesar de sugarem e receberem são sempre insatisfeitas e vazias. Quem escolhe viver desta forma, morre seco e vazio de sentido e significado.
Autossuficiência. Não morrer para o eu nos leva à independência, dificuldade de dar satisfação a alguém. Não precisa do outro. No casamento, a fórmula matemática não é, 1+ 1 = 1, nem 1+1 = 3, mas 1+1 = 1+1. São casados, mas ainda vivem separados. É consumido pelo esnobismo, arrogância, autonomia. Não quer vida compartilhada, mas prefere o isolamento existencial. Dificuldade da troca, doação: “eu não preciso de ninguém!” Dificuldade para receber amor. Não acolhe o outro como expressão sacramental, deixa de experimentar o sexo como experiência divina, mas o vê apenas como descarga de libido, orgasmo, mas sem a interpenetração do outro, enquanto ser. Nega a alteridade.
Autonegação. Autonegação não é, em si mesma, negativa. Torna-se doentia quando a pessoa aceita mecanismos de abusos e exploração, e vive a “Síndrome de Estocolmo”, ou de “mulheres de Atenas”. Neste caso ocorre uma desistência da vida e perda do valor próprio. Incapaz de desejar, sonhar, ou viver para si. Nega suas possibilidades e aceita relacionamentos extorsivos. “Amélia, mulher de verdade”.
Nos Estados Unidos, os imigrantes, em busca obcecada por dinheiro, e trabalho excessiva, esqueciam de si mesmos, perdiam o gosto, a criatividade e a alegria. Ocorria uma auto renúncia patológica, onde a pessoa desiste de si mesma e desiste de celebrar e viver. Ela não vive assim por um senso de vocação, chamado, missão ou valor humanitário, mas como um ser de produção, força de trabalho. Tal prostração é morte em vida!
Autoglorificação. Egolatria, senso de onipotência e poder. Alguns acham que são deuses, outros tem certeza que são. Pessoas fazem monumentos a si mesmos, como aconteceu com Saul e com tantos Césares. Ocorre um quadro de distorção psiquiátrica, processo de divinização do Eu. Não pode ser contrariado e passam a requerer culto e liturgia. Enquanto o Eu está no centro, Deus não poderá governar a vida.
Autocomiseração. Vitimismo. Se julga vítima, torna-se exigente e demanda atenção cada vez maior. Autopiedade é uma das formas mais sofisticadas de promoção do Eu. Saul e Judas, suicidaram, porque perderam a esperança em si mesmo e não sabiam como colocar sua confiança em Deus. Remorso pode ser uma forma de autocomiseração. Ao invés de colocarem sua confiança na graça de Jesus, tornam-se condoídos e culpados, vivendo miseravelmente. “Não veem como eu sofro? Olhem pra mim!!!” Na morte de alguém, chora por si mesmo.
Uma carta de Jesus àqueles que o amam
John of Landsberg (1555)
Uma coisa que da qual eu gostaria de adverti-lo de forma especial é sua constante tendência ao desencorajamento e frustração, pois você se desespera ao perceber o peso de suas faltas e que suas firmes resoluções em fazer as coisas de forma diferente redundaram em nada. Eu conheço o seu humor quando você se assenta sozinho, ou se levanta infeliz, em um puro estado de tristeza. Você não se move em minha direção, mas desenvolve um sentimento de que tudo o que você fez, todo o seu esforço redundou em perda e esquecimento. Este sentimento que se confunde com o desespero e com a autopiedade na verdade é uma forma de orgulho. Você fundamentou-se numa forma de segurança que o levou a queda, porque confiou na sua força e habilidade. Profunda depressão e perplexidade de mente freqüentemente seguem a perda da esperança, e isto decorre pelo fato de que se firmou em coisas que não aconteceram como você esperava e queria. Na verdade, eu não quero que você ponha sua confiança nas suas forças, habilidades e planos, pelo contrário, quero que você desconfie destas coisas e de você mesmo, e ponha a sua confiança em mim, e nada mais. Quanto mais você confiar em você, mais você se tornará escravizado e entristecido. Você ainda tem uma lição mais importante para aprender: Sua confiança própria não o ajudará a se manter firme. Você está se firmando num pé quebrado. Você não deve perder a esperança em mim. Você precisa esperar e confiar em mim, absolutamente. Minha misericórdia é infinita.
Conclusão
Em Col 2.18 e 23, vemos a descrição do eu inflado, porém camuflado de gestos espirituais. "Devemos dizer não por decisão pessoal, morrer para o ego. Na época em que estamos em pleno viver ativo, quando temos capacidade de desejar as coisas e de desfrutá-las. Esta morte não deve ser nem adiada, nem recuada, e nem ainda deve ser considerada como pertencendo somente ao momento da morte física." (Francis Schaeffer)
Jesus afirma: "se o grão de trigo não morrer, fica ele só." (Jo 12.24) Morte é esmagamento, trituração. É parto, é dor, é grito. Mas, "se não morrer", não pode produzir frutos.
Samuel Vieira
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