domingo, 20 de outubro de 2013

Gn 23.1-20 No vale da morte





Introdução:

Certamente o dia em que um homem sepulta sua esposa deve ser um dos mais amargos da vida. Depois de uma vida compartilhada, dizer adeus à pessoa amada, não deve ser uma experiência nada fácil! Pois é exatamente esta cena que vemos no capitulo 23 de Gênesis. Abraão encontra-se diante de sua esposa, chorando sua partida. Andando por esta estreita via da dor e da despedida, e na medida em que vamos lendo o texto, nossa sensibilidade se aguça e as emoções nos traem. Ficamos projetando nossa própria realidade e nos identificando com o inexorável fato de que um dia teremos que dizer um até logo para o outro. Alguns casais idosos não resistem à partida do outro, e morrem em seguida, mas o fato mais estranho aconteceu no meu pastorado na cidade do Rio de Janeiro.
D. Maria das Dores era uma senhora que realmente fazia juz ao nome que carregava. Seu esposo, Arão, tinha um temperamento difícil e foi acometido por um Acidente cardiovascular que o deixou preso à uma cama. Ele não conseguia falar, mas era capaz de fazer todas as exigências, porque sua esposa aprendeu a reconhecer suas necessidades. Dia a noite, apesar de sua frágil saúde, cuidava incessantemente do esposo. Como membros de uma comunidade, temíamos que um dia, sua saúde não suportasse. Como ficaria o Sr. Arão se isto acontecesse? Ela sofria de uma grave cardiopatia.
Um dia o trágico aconteceu. Ela teve um infarto, foi levado para o hospital, mas não resistiu e morreu. Quem comunicaria àquele homem o que havia acontecido? Quem poderia assumir os cuidados que ele requeria? Quando um familiar foi à casa para contar o que acontecera, viu uma cena inusitada: Sr. Arão também havia falecido! No sepultamento, os dois caixões estavam lado a lado...
Os primeiros versos de Gn 23 descrevem a cena: “Sara viveu cento e vinte e sete anos
e morreu em Quiriate-Arba, que é Hebrom, em Canaã; e Abraão foi lamentar e chorar por ela” (NVI). Cronologicamente, 17 anos haviam se passado entre Gn 22 e Gn 23. Isaque seu filho tinha agora 37 anos. Eles haviam se mudado de Berseba para Hebrom, o mesmo lugar onde primeiramente haviam vivido quando chegaram à terra de Canaã. Ali nos carvalhais de Manre, Sara, aquela mulher de grande beleza, morreu.
Segundo o costume, provavelmente, após a morte de Sara, Abraão entrou sozinho na tenda, para prantear e chorar. Este é o único relato da Bíblia no qual vemos o velho patriarca chorando. Apesar dos dias de desapontamento e dor, mesmo quando Ismael foi mandado embora, esta é a única vez que temos um relato deste homem chorando. Isto revela a intensidade da dor que ele estava sofrendo.
Na forma que Abraão lidou com a morte, aprendemos um pouco de como, pessoas de fé, devem também lidar com perdas tão sérias.

Primeiro, Coloque a morte no lugar devido

A.     Morte é inimiga – Não lidamos com a morte naturalmente. A morte entrou no mundo como resultado da desobediência humana. Não fomos arquitetos, no design original de Deus, para conviver com a morte. “Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem, e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12). a morte é intrusa e invasora da ordem definida inicialmente pelo Criador. O apóstolo Paulo afirma que “O último inimigo a ser destruído é a morte” (1 Co 15.55). Devemos sempre entender isto, por esta razão, mesmo quando esperamos, a morte sempre agride e fere.
B.      Morte é Aguilhão – Esta é afirmação de Paulo quando fala da ressurreição: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão” (1 Co 15.55). Paulo faz esta pergunta de forma zombeteira, no contexto da ressurreição. Somente quando no nosso coração compreendemos a importância da eternidade, é que poderemos minimizar o ferrão e a dor que ela causa na humanidade.

C.      Morte é dura realidade – Sara estava com 127 anos. Tinha vivido uma longa jornada. Outros morrem ainda cedo. Não gosto de ir a cemitérios, porque percebo que a morte não tem muita coerência. Ela leva crianças de 2 anos, e pessoas com 92 anos. E o que é ainda mais assustador. Ela leva gente de minha idade.

Uma compreensão realista e bíblica da morte, nos ajuda a lidar com o luto e as perdas. Precisamos entender que ninguém é eterno, as pessoas são mortais e passam, e que Jesus veio lidar de forma direta com o espectro da morte. Por isto Paulo está perguntando: “Onde está, ó morte, a sua vitória?“ (1 Co 15.56). Ele relativiza o impacto da morte.
O autor aos hebreus nos afirma ainda: “Portanto, visto que os filhos são pessoas de carne e sangue, ele também participou dessa condição humana, para que, por sua morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte, isto é, o diabo, e libertasse aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte” (Hb 2.14-15). A vida de Cristo, suas promessas, a forma como ele lidou com sua própria morte, nos ajudam a enfrentar a morte de forma altaneira e segura.

Segundo, Respeite o seu luto.
O fato de termos convicção sobre a vida eterna, e de realmente estarmos seguros das promessas de Cristo quanto à eternidade, não devem nos levar a ignorar quanta dor enfrentamos. Alguns pontos devem ser considerados:

A.      Não negue a sua dor – Vemos isto na vida do patriarca Abraão. Ele “foi lamentar e chorar por ela” (Gn 23.2). Ele entra na dimensão ferida de sua alma, e não nega o que está sentindo. Como cristãos podemos dizer muitas vezes que “ta doendo!” que não está sendo fácil. Esta humanidade é requerida de nós, e devemos respeitar nossa dor. Não precisamos ser performáticos ou agir como as pessoas esperam. Ninguém pode determinar o que sentimos.
Durante dias de muita dor e luto que experimentamos em nossa família, numa trágica e dolorida morte de um familiar querido, deparei-me com este texto de Leonardo Boff, que gostaria de compartilhar. Ele é longo, mas vale a pena...

 

Cuidar do luto e das perdas

26/09/2011
Pertencem, inexoravelmente, à condição humana, as perdas e o luto. Todos somos submetidos à férrea lei da entropia: tudo vai lentamente se desgastando; o corpo enfraquece, os anos deixam marcas, as doenças vão nos tirando irrefreavelmente nosso capital vital. Essa é a lei da vida que inclui a morte.
Mas há também rupturas que quebram esse fluir natural. São as perdas que significam eventos traumáticos como a traição do amigo, a perda do emprego, a perda da pessoa amada pelo divórcio ou pela morte repentina. Surge a tragédia, também parte da vida.
Representa grande desafio pessoal trabalhar as perdas e alimentar a resiliência, vale dizer, o aprendizado com os choques existenciais e com as crises. Especialmente dolorosa é a vivência do luto, pois mostra todo o peso do Negativo. O luto, possui uma exigência intrínseca: ele cobra ser sofrido, atravessado e, por fim, superado positivamente.
Há muitos estudos especializados sobre o luto. Segundo o famoso casal alemão Kübler-Ross há vários passos de sua vivência e superação.
O primeiro é a recusa: face ao fato paralisante, a pessoa, naturalmente, exclama:”não pode ser”; “ é mentira”. Irrompe o choro desconsolado que palavra nenhuma pode sustar.
O segundo passo é a raiva que se expressa:“por que exatamente comigo? Não é justo o que ocorreu”. É o momento em que a pessoa percebe os limites incontroláveis da vida e reluta em reconhecê-los. Não raro, ela se culpa pela perda, por não ter feito o que devia ou deixado de fazer.
O terceiro passo se caracteriza pela depressão e pelo vazio existencial. Fechamo-nos em nosso próprio casulo e nos apiedamos de nós mesmos. Resistimos a nos refazer. Aqui todo abraço caloroso e toda palavra de consolação, mesmo soando convencional, ganha um sentido insuspeitado. É o anseio da alma de ouvir que há sentido e que as estrelas-guias apenas se obscureceram e não desapareceram.
O quarto é o autofortalecimento mediante uma espécie de negociação com a dor da perda: “não posso sucumbir nem afundar totalmente; preciso aguentar esta dilaceração, garantir meu trabalho e cuidar de minha família”. Um ponto de luz se anuncia no meio da noite escura.
O quinto se apresenta como uma aceitação resignada e serena do fato incontornável. Acabamos por incorporar na trajetória de nossa existência essa ferida que deixa cicatrizes. Ninguém sai do luto como entrou. A pessoa amadurece forçosamente e se dá conta de que toda perda não precisa ser total; ela traz sempre algum ganho existencial.
O luto significa uma travessia dolorosa. Por isso precisa ser cuidado. Permito-me um exemplo autobiográfico que aclara melhor a necessidade de cuidar do luto. Em 1981 perdi uma irmã com a qual tinha especial afinidade. Era a última das irmãs de 11 irmãos. Como professora, por volta das 10 horas, diante dos alunos, deu um imenso brado e caiu morta. Misteriosamente, aos 33 anos, rompera-se-lhe a aorta.
Todos da família vindos de várias partes do pais, ficamos desorientados pelo choque fatal. Choramos copiosas lágrimas. Passamos dois dias vendo fotos e recordando, pesarosos, fatos engraçados da vida da irmãzinha querida. Eles puderam cuidar do luto e da perda. Eu tive que partir logo após para o Chile, onde tinha palestras para frades de todo o Cone Sul. Fui com o coração partido. Cada palestra era um exercício de auto-superação. Do Chile emendei para a Itália onde tinha palestras de renovação da vida religiosa para toda uma congregação.
A perda da irmã querida me atormentava como um absurdo insuportável. Comecei a desmaiar duas a três vezes ao dia sem uma razão física manifesta. Tive que ser levado ao médico. Contei-lhe o drama que estava passando. Ele logo intuiu e disse: “você não enterrou ainda sua irmã nem guardou o luto necessário; enquanto não a sepultar e cuidar de seu luto, você não melhorará; algo de você morreu com ela e precisa ser ressuscitado”. Cancelei todos os demais programas. No silêncio e na oração cuidei do luto. Na volta, num restaurante, enquanto lembrávamos a irmã querida meu irmão também teólogo, Clodovis, e eu escrevemos num guardanapo de papel o que colocamos no santinho de sua memória:
“Foram trinta e três anos, como os anos da idade de Jesus/Anos de muito trabalho e sofrimento/Mas também de muito fruto/Ela carregava a dor dos outros/Em seu próprio coração, como resgate/Era límpida como a fonte da montanha/Amável e terna como a flor do campo/Teceu, ponto por ponto, e no silêncio/Um brocado precioso/Deixou dois pequenos, robustos e belos/E um marido, cheio de orgulho dela/Feliz você, Cláudia, pois o Senhor voltando/Te encontrou de pé, no trabalho/Lâmpada acesa/Foi então que caiste em seu regaço/Para o abraço infinito da Paz”.
Entre seus papéis encontramos a frase:”Há sempre um sentido de Deus em todos os eventos humanos: importa descobri-lo”. Até hoje estamos procurando esse sentido que somente na fé o suspeitamos.

B.       Não morra junto! Veja como o texto descreve a atitude de Abraão. “Depois Abraão deixou ali o corpo de sua mulher e foi falar com os hititas” (Gn 23.3). Ele entende que sua vida continua e que ações devem ser tomadas par continuar vivendo. A dor e o luto não podem e não devem ser negados, mas não posso ser sepultado junto.

Uma pessoa de nossa comunidade me pediu ajuda por causa do luto prolongado e intenso que sua mãe estava vivendo com a morte de seu irmão. Ele era uma pessoa muito querida, que diariamente ia tomar o café da manhã com ela, antes de se dirigir ao trabalho, e morreu subitamente com um infarto. Ela não se recuperou da tragédia. Enfurnou-se na sua casa, perdeu a alegria, e vivia chorando, e ele me pediu para que a ajudasse, e dias depois ela me procurou para uma conversa. No meio de seu longo desabafo e dor, eu orava em Espírito pedindo a Deus uma palavra para lhe dar. Então, no final de sua palavra, eu disse respeitosa e amorosamente: “Deixe seu irmão morrer!”. Ela ficou meditativa repetindo a frase que eu não tinha lido em nenhum lugar nem planejara dizer, e foi para sua casa, voltando novamente à normalidade de sua vida.

C.      Não perca a dignidade no meio da tragédia – pessoas se desequilibram diante da fatalidade, blasfemam, negam a Deus, eventualmente se revoltam e fazem coisas impensadas. Veja o que Abraão faz.
Ele vai procurar o homem que era dono daquelas terras, porque havia um lugar onde ele gostaria se sepultar Sara. "...peço que...ele me ceda a caverna de Macpela, que lhe pertence e se encontra na divisa do seu campo. Peçam-lhe que a ceda a mim pelo preço justo, para que eu tenha uma propriedade para sepultura entre vocês". O texto nos mostra que eles quiseram dar aquela propriedade para Abraão, mas ele não quis, porque para os orientais, a terra em que alguém era sepultado, se tornava sagrada, e ele sabia que se não comprasse, os descendentes posteriormente não respeitariam aquele lugar e seus descendentes não poderiam reivindicá-lo.
A partir de então, o campo de Efrom, que estava em Macpela ao leste de Manre, o campo, a caverna e todo arvoredo que nele havia, tornou-se posse de Abraão, na presença dos hititas. Ali Abraão sepultou Sara.
Por que é tão importante este detalhe?
Este é um dos poucos lugares entre os muitos duvidosos sites na terra da palestina, que é considerado realmente inquestionável nos dias de hoje. Nós ainda podemos visitar a caverna de Macpela, onde posteriormente Abraão também foi sepultado. Jacó e Lia também foram sepultados neste lugar e hoje temos uma grande mesquita construída sobre esta caverna. Este é considerado um lugar sagrado para três religiões: Judaísmo, cristianismo e islamismo. Abraão não permitiu que a dor tirasse dele a compreensão de quão sagrado deveria ser o local onde seus queridos seriam sepultados.


Terceiro, Entenda sua condição espiritual
No meio da dor, Abraão revela o diferencial de um homem de fé. O que significa ser um crente que confia em Deus:

A.     Estrangeiro e forasteiro - "Sou apenas um estrangeiro entre vocês. Cedam-me alguma propriedade para sepultura, para que eu tenha onde enterrar a minha mulher" (Gn 23.4). A tradução da RA “estrangeiro e morador” não aparece em nenhuma outra versão, já que “morador” traz a ideia de permanência e estabilidade, enquanto “forasteiro” aponta para transitoriedade e efemeridade.
Enquanto você não entender, realmente, que você é forasteiro, sua vida nunca será iluminada pela compreensão do eterno. “tudo o que não é eterno, é eternamente inútil” (C. S. Lewis). Quando Davi estava transferindo o trono para seu filho Salomão, ele fez a seguinte afirmação: “Eu vou pelo caminho de todos os mortais. Coragem, pois, e sê homem!” (! Rs 2.2). Os seres humanos querem ser imortais, fazem seguros de vida, mas estes seguros nunca conseguem segurar a vida. Portanto, olhe para o eterno.

B.      Morador definitivo de outro lugar – Nos entretemos construindo castelos e palácios aqui na terra, onde somos apenas transeuntes. Olhem para sua nova residência. "Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas acumulem para vocês tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração” (Mt 6.19-21).

C.      Mantenha firme sua fé – O enfrentamento da morte é um dos mais difíceis de nossa vida, mas esta é uma excelente hora para checarmos nossas convicções e testemunharmos do que cremos. Nestas horas podemos serenamente admitir nossa dor e insistir na compreensão que temos sobre esta realidade. Declarar que de fato somos forasteiros, e que nossos olhos estão fitos na morada celestial.

Conclusão:
Paulo afirma solenemente:
Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem, para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará, mediante Jesus e juntamente com ele, aqueles que nele dormiram” (1 Ts 4.13-14).
Morte não é coisa fácil de enfrentar, contudo devemos cainhar com fé no vale da sombra da morte. A morte de um ímpio é completamente diferente do cristão. Se cremos num novo céu e nova terra, nos quais habita justiça, então não devemos temer. Podemos sentir dor, mas somos misteriosamente sustentados pela maravilhosa dimensão da fé.
É maravilhoso ver como as pessoas são confortadas diante da morte. Muitas vezes o sofrimento é para alem de qualquer medida, no entanto, a graça de Deus nestes momentos de aflição o visita com graça e consolo, para além de todas as medidas.

Assim devemos caminhar no vale da sombra da morte...

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