sábado, 22 de fevereiro de 2014

Gn 32.22-32 Em Luta com Deus





Introdução:

Um dos livros mais fortes que li tinha o seguinte título: “Não estou com raiva de Deus", e foi escrito pelo conhecido pregador David Wilkerson. Ele narra sua experiência de ir pregar na igreja de um amigo pessoal dele, pastor de uma igreja do interior, e quando chegou ali, soube que ele havia provocado um acidente que culminou com a morte de seu filho que estava detrás do carro e ele não o viu quando deu ré. Depois do dramático evento, ele descreve que aos poucos foi desenvolvendo uma atitude de desconfiança no caráter de Deus, que ele só percebeu alguns anos detrás e foi tratado pelo Espírito de Deus.
Na verdade, a vida muitas aponta para um relacionamento desconfortável com Deus, a vida com Deus eventualmente aponta para uma linha de conflitividade e batalha. Nem sempre somos capazes de perceber a vontade de Deus e temos ainda mais dificuldade em aceitar o seu plano em nossa vida e então começamos a lutar com Deus. Por isto as experiências religiosas são tantas vezes dramáticas.
Este texto revela-nos a ambigüidade de um homem que conhecia profundamente esta tensão: Jacó.
Jacó era um crente carnal (Dr. Russel Shedd questiona tremendamente esta idéia. Dizendo que não existe tal coisa como crente carnal), por esta razão prefiro usar o termo crente nominal. Rev. Walmir Soares afirmava que “não existem crentes sem vergonha, mas alguns sem vergonha que se chamam de crentes). Jacó era uma pessoa religiosa: Fazia culto, levantava altares, trazia os dízimos, tinha noção de maldição e benção de Deus. Mas tinha problemas sérios:

Um caráter fraco:
Vivia se envolvendo em tramas mal tratadas: Enrolou seu pai, seu irmão e seu sogro. Por onde passava se metia em conflitos de relacionamentos, principalmente relacionado a finanças. Conseguiu a benção de seu pai, fazendo-se passar por seu irmão. Manipulou seu irmão quando estava morto de fome para que negociar seu direito de primogenitura, e conseguiu, aproveitando a leviandade de Esaú com as coisas de Deus.
Por causa de sua atitude teve que sair fugido de casa, por medo de seu irmão; pela mesma razão, cultivou uma inimizade de mais de 20 anos com seu único irmão, vivendo assustado com sua própria sombra, sempre imaginando a possibilidade de um dia se encontrar com ele; Jacó confessava a fé, cria em Deus, mas vivia de forma ambígua e contraditória. Não vivia uma prática coerente de vida, embora tivesse consciência da presença de Deus sobre sua vida e a de seus pais. Deus estava sempre por perto de sua vida, dando promessas, confirmando a aliança com seus pais, mas tais promessas pareciam não penetrar no seu íntimo e transformá-lo.
Um dia, porém, suas possibilidades foram se reduzindo, teve que fazer uma avaliação de sua vida. Havia queimado pontes por julgar que elas nunca mais seriam usadas, mas agora se percebe tendo que usá-las novamente. Chega a hora da verdade, não dá mais para se esconder. Jacó é colocado numa luta com suas próprias sombras, é hora da verdade, ele não pode mais viver uma vida fingindo que não vê, não dá mais para se ocultar de Deus, não pode esconder-se de si mesmo, tem que ser colocado no tribunal. Sua história tem que ser acertada.
Uma vida não examinada não é uma vida digna de ser vivida, como afirmou Kierkegaard. Ele teve que olhar para si mesmo e para Deus, e sua experiência é marcada por luta e angústia, mas é ao mesmo tempo de libertação, de confirmação da promessa de Deus para sua vida, e de sua preparação para viver de forma livre.

Deus se revela a Jacó numa experiência de luta

Muitos vivem vida de fuga. Como náufragos tentando se proteger, agarrados a restos dos porões de navios. Vivem como errantes, mas chega a hora da verdade, em que não se pode mais esconder. É hora da luta.
Deus se revela a Jacó numa experiência de luta. É desta forma também que nos deparamos muitas vezes com Deus, amedrontados do julgamento que podemos ter, mas ao mesmo tempo desejosos de sermos transformados pela sua graça. Jacó se vê, de repente, em meio a um momento decisivo de sua vida, frente a frente com Deus. Deus é um valente guerreiro com o qual ele tem que lutar e não aceita desculpas esfarrapadas, arranjos, tentativas de manipulá-lo, ele não entra em discursos filosóficos, em defesas e mecanismos de projeção e resistência. Deus é Deus, e somos confrontados com sua presença forte e marcante. Hora da verdade. Hora da luta.

Este texto nos revela como esta luta com Deus se dá, nos fala das características desta luta:

Primeiro, A luta geralmente se trava num contexto de dramáticas experiências – (Gn 33.1-2). Jacó não tinha mais opções, sua história depunha contra ele. História marcada por enganos, e  malandragens. Jacó sempre encontrava uma forma de dar um jeitinho nas suas trapaças, mas agora sente que tais artifícios não podiam mais ser usado. O desespero se aproxima e ele sente que é impossível viver sem este encontro com Deus.

Quais as situações que ele se recusava tratar?

O ódio do irmão – Seu primeiro dilema. O ódio do irmão. As portas haviam se fechado em casa,  por causa de seu jeito de lidar com a vida. Saíra fugindo, na calada da noite, sem se despedir das pessoas, deixando amigos, história de vida, herança. Dai por diante passara por noites de pesadelos, dormia atormentado pelas lembranças e pelo medo. Agora, estas velhas questões do coração e do inconsciente vem à tona e precisam ser resolvidas, não podem mais ser ocultadas. Surge a necessária reconciliação. As portas não podem mais continuar fechadas, precisam ser novamente abertas.

Desavença com o sogro – Jacó sente o cerco se fechando. Tentou novamente sair escondido da casa do sogro, mas é surpreendido. A relação não era muito positiva, e agora tornam-se claras. O sogro vai atrás e o constrange, o confronta, o censura (Gn 31.25-27). Jacó perceber que suas atitudes geram conseqüências e que temos que enfrentá-las, aliás, pela primeira vez ele as enfrenta de forma muito positiva. Seu caráter de enganador não pode mais continuar desta forma.

Reencontro com o irmão – O passo mais complicado tinha relações antigas. Ele havia trapaceado seu irmão que o ameaçara de matá-lo, e agora, não tendo mais como se esconder, terá que se reencontrar com o irmão. Ele está visivelmente apavorado, veja sua reação em Gn 33.1-2. Jacó é confrontado com sua falta de opção. Assim acontece conosco: Embaralhamos tanto nossas vidas que eventualmente ficamos sem rumo, falta sentido na existência, vemos nossa história se desmoronando: Dívidas impagáveis, relacionamentos quebrados, enfermidades, problemas familiares, contas que precisam ser acertadas e não mais ocultadas.

Esta luta com Deus se trava em situações ameaçadoras, se possível escaparíamos deste confronto. Jacó não tem mais opção. Não dá mais para ficar na casa do sogro, não pode se encontrar com o irmão. Sua situação torna-se desesperadora.
Da mesma forma, a vida nos leva a ter que deparar com coisas que não queremos ver nem lidar. É a doença, a ausência de recursos, falta de opções – hora de mudança. É o casamento desmoronando, o filho enfrentando problemas, o marido deixando a casa, a mulher deprimida, enfermidades em família. Não pedimos e não queremos entrar nestas situações calamitosas, mas muitas vezes nos vemos nelas. Somos desafiados a lutar contra forças e poderes muito maiores que nós. Os desafios surgem diante de nossos estupefatos olhos.

Segundo, Deus luta com Jacó, num round exaustivo e demorado (Gn 32.24). O texto afirma que a luta se deu "até o nascer do sol". Não é uma luta fugaz e rápida, mas cansativa e longa. Nesta luta somos confrontados com a auto suficiência, altivez, onipotência, soberba, autocomiseração e auto-indulgência, máscaras, subterfúgios, atitudes e hábitos pecaminosos com os quais não queremos lidar. Jacó era malandro e agora é confrontado pelo próprio Deus. É hora de confissão, de reconhecimento, de encarar a verdade. A luta é dura, demorada, queremos colocar um ponto final nela, mas não conseguimos. A luta continua e os desafios continuam diante de nós.
É uma luta forte, que não permite disfarces, não aceita cosméticos, recusa máscaras e hipocrisia. A luta é exaustiva porque Deus é forte.

Terceiro, a luta com Deus é uma experiência na sua interioridadeO texto diz que Jacó ficou só. (Gn 32.24). Ninguém podia compartilhar este momento com ele, não há ninguém para colocar culpa, transferir responsabilidade, dividir medos e culpas. Jacó está só! Ele passou tudo. Seus negócios, todos seus bens, sua família, seus amigos, tudo encontra-se adiante dele. Jacó ficou só. Sua família não estava ali, seus gados, s o seu coração com Deus. Este é o momento da mais dura realidade humana, quando é necessário dialogar com as entranhas, não mais com personas, com aquilo que os outros acreditam que somos, mas com o ser mais íntimo e contradições mais profundas. Nada de cosméticos e defesas. Sós, desamparados, vivendo um pouco da experiência de Jesus no Getsêmani, no qual precisa atravessar sozinho. É o momento da oração, da aflição, da confissão, da súplica. A sós com Deus e é assim que se dá a luta.
Assim se vê o profeta Jeremias, tentando desesperadamente se esquivar da vocação que Deus lhe dá para o oficio de profeta: "Persuadiste-me Senhor, e persuadido fiquei, mais forte foste tu do que eu, e prevaleceste" (Jr 20,27).
Jacó atravessa uma noite inteira, só ele e Deus. Noite longa. Não pode chamar ninguém, nem transferir responsabilidade ou deslocar e projetar sentimentos - é o seu momento com Deus. O encontro com Deus é sempre luta, confronto. Nunca é romântico. O encontro se dá na crise, diante de lutas espirituais, sonhos e visões, que falam do nosso ser mais primal. O texto diz que "alguém lutava com Jacó".

Implicações desta luta

1. Deus vence para se deixar vencer. Deus só vence quando o homem prevalece, e só prevalece quando o homem é vitorioso. “Não te deixarei enquanto não me abençoares!”. Somos impactados com o texto ao perceber que Deus se faz impotente diante de Jacó. Deus se vulnerabiliza, se permite ser agarrado e não ser solto. Deus só prevalece em sua vida quando Jacó decide não deixá-lo ir sem a benção. O homem só vence quando Deus se deixa derrotar. Deus quer se deixar dominar para que sejamos dominados. Na cruz foi exatamente o que vimos, um Jesus clamando: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparastes?”Deus se torna tão fraco que morre, mas é na experiência do morrer de Deus, que descobrimos o coração do Evangelho, de um Deus que morre por nós.

2. Na luta com Deus, a forma de caminhar é alterada – Em Gn 32.31 vemos que Deus toca em Jacó, e ele sai mancando pelo resto de sua vida. Esta é outra implicação deste encontro com Deus. Ele coloca uma marca na forma de Jacó caminhar. A partir daí Jacó tem o seu sinal, e esta marca ele nunca mais vai esquecer. Estar manco tem a ver com nossa postura, jeito de andar, caminhar, reagir. Isto aponta para ética, moral e comportamento. Deus age sensivelmente na forma de Jacó caminhar. Todo homem que se encontrar com Deus nunca mais caminha da mesma forma.
Vivemos dias em que as pessoas se impressionam demais com gestos e atitudes religiosas. Algumas pessoas se reúnem para cair no espírito. Tenho perguntado se estas quedas trazem efeito no caráter, na atitude no lar, na família, no trabalho, na administração do dinheiro, no jeito da pessoa caminhar. Se a experiência com Deus não nos transformar, não mudar a maneira de andar, não transforma a ética, não nos deixar manco, ainda não experimentamos a marca de Deus. A grande questão da vida cristã é este sinal distintivo. O que importa não é a emoção sentida, mas se este encontrou me fez abandonar comportamentos pecaminosos por causa do toque amoroso e firme de Deus na vida.
Certa pessoa me disse "Eu mentia tanto que já não sabia o que era mentira e o que era verdade em minha vida". Mas quando me encontrei com Jesus, ele começou a transformar isto em minha vida. Esta é a verdadeira implicação do encontro com Deus: Vidas transformadas, mente transformada, ética transformada, famílias transformadas, lábios transformados.

2. Na luta com Deus, o caráter se transforma – É muito interessante o que acontece neste diálogo: Deus pergunta o nome de Jacó. Nome aponta para o ser, para o caráter que revela a verdadeira natureza (Gn 32.27,28). Deus lhe faz a pergunta essencial: “Qual é o seu nome?” A resposta de Jacó é autêntica, mas o denuncia. Seu nome está relacionado à identidade e jeito de ser. O nome de Jacó, literalmente significa enganador e trapaceiro. Jacó não se recusa a dizer quem ele era, afinal, Deus o conhece.
Se Deus nos perguntasse o que responderíamos: Um embuste, mentiroso, cínico, crítico, hipócrita, egoísta, insubmisso, covarde, preguiçoso? Deus pergunta o nome. Para sermos o que Deus deseja de nós, precisamos dizer aquilo que nos caracteriza. Falar a verdade para Deus é uma forma de confissão e cura. Da resposta que damos começa nossa restauração. Quando Jacó não se recusa a revelar sua natureza, Deus o surpreende dando-lhe outro nome: "Já não te chamarás Jacó, mas sim Israel , porque como príncipe lutaste contra Deus".
A grande luta que se impõe está na verdade e no enfrentamento. Quando isto acontece, o nome pode ser trocado; o impuro, purificado; o insensível, sensibilizado; o mentiroso transformado, o enganador mudado. Deus muda o caráter, não quando ocultamos dele aquilo que somos, mas quando, com temor, confessamos aquilo que realmente somos e admitimos nosso fracasso. No Evangelho, fraqueza é força; rendição é superação.
Curiosamente Jacó deseja saber o nome de Deus, e Ele não responde. Tentar fazer divagações teológicas é uma das alternativas que mais encontramos quando estamos confrontados com Deus. Ele, porém, obriga Jacó a refletir sobre o seu próprio nome. É isto que interessa.

4. Esta luta com Deus altera geraçõesO texto diz: “Por isso, os filhos de Israel  não comem, até hoje, o nervo do quadril, na articulação da coxa” (Gn 32.32) Os filhos de Jacó mudaram o costume e por isto, até hoje, ninguém come o nervo do quadril do animal.
Isto demonstra que aquilo que Deus faz hoje, traz efeitos sensíveis nas próximas gerações. A obra de Deus em nossa vida, vai transformar nossos filhos e neto. Deus quer gerações mudadas, filhos diferentes, netos transformados.

Conclusão:
Coisas que não devem ser esquecidas

A. Não abra mão da benção de Deus quando ocorrer esta luta - "Não te deixarei se me não abençoares"(Gn 32.26).
Vivemos numa vida tantas vezes indiferente, sem valor, miserável. Não tenha medo de se abrir para Deus, de se defrontar com o mistério divino. Encontrar com Deus é encontrar-se consigo mesmo, é ter contato com aquilo que existe de mais significativo no universo. Encontrar com Deus é salvação no sentido mais amplo que existe. O que Deus deseja é que você prevaleça, não desista. A luta com Deus nunca traz maldição, sempre bênçãos; esta luta não é para morte, mas para vida. É uma benção quando acontece.
O que fazer? "Não te deixarei se não me abençoares". É esta vontade de se agarrar a Deus com todo coração, ser envolvido pelo mistério da Trindade, pelo acolhimento divino e sobrenatural. É a atitude da mulher Siro Fenícia que mesmo diante da aparente desconsideração de Cristo, continua clamando que alguma migalha da bondade de Deus se manifeste na sua casa e restaure o estado caótico gerado pela ação demoníaca na vida de sua filha.  Deus não ignora gente assim. Jacó entende isto, por isto diz: "vi a Deus face a face e minha vida foi salva".


B. Saiba que enquanto você luta com Deus, Deus providencia o seu livramento – Quando continuamos a leitura no capítulo seguinte, lemos em seguida: "Levantando Jacó os olhos , viu..." (Gn 33.1). Aquilo que ele mais temia, sua maior aflição dos últimos dias, já está sendo solucionada por Deus. Às vezes queremos resolver questões da vida, sem resolver a questão mais crucial de nossa existência que é o encontro com Deus. Lidamos com o efeito, não com as causas. Resolva com Deus teus problemas, ele é o ponto de partida.


Nenhum comentário:

Postar um comentário