Introdução:
Sempre me fascinou pessoas imbuídas de uma clara
convicção e chamada para suas vidas. A igreja Presbiteriana de Anápolis tem nos
seus anais históricos, duas pessoas com esta percepção:
Dra Rettie Wilding em 1930 abandonou a Inglaterra,
adotando o Brasil como sua pátria, adentrando a inóspita Ilha do Bananal, num
tempo em que não existia Goiânia, Brasília ou a estrada Belém Brasília. Sua
base missionária ficava na cidade de Goiás, antiga capital do Estado e ela saia
dali andando no lombo de um cavalo, indo até o Rio Araguaia, onde tomava uma
canoa e viajava 7 dias para chegar à Ilha do Bananal, alimentando-se de peixe,
tracajá e ovo de tracajá, a ali criou seu pequeno Josiah, hoje nosso querido Dr.
Joe Wilding. Seria o ovo de tracajá o segredo de sua vitalidade?
O segundo é o Dr. James Fanstone que chegou ao Brasil em
1924, e em 1927, inaugurava o Hospital Evangélico de Goiás, em Anápolis.
.
Seu pai fora pastor e fundador em Recife-PE da 1ª. Igreja
Congregacional em 1879. Ele tinha o mesmo nome de seu pai, e formou-se em
medicina pela Universidade de Londres, em 1914, e entre quase 2000 formandos,
foi o segundo melhor aluno. Convocado pelo seu país, serviu como médico na 1a. Guerra Mundial e com o fim da guerra
doutorou-se em ciências tropicais, já pensando em vir para o Brasil. Para se
habilitar como médico no Brasil e ter seu curso de medicina reconhecido, submeteu-se
a uma pesada banca de exames na Universidade Federal de Minas Gerais, onde
finalmente recebeu seu CRM e pode clinicar.
Quando chegou a Anápolis, a cidade tinha apenas 2000
habitantes[1] e certamente o que muito o
traumatizou foi o fato de que não havia nesta cidade, nenhuma padaria, porque
ele registrou isto em suas memórias, não havia também açougue. Há um relato
pitoresco de que, D. Dayse, sua esposa, fez uma reclamação na prefeitura da
cidade, porque se compadeceu da vaca que era amarrada numa praça, onde era
morta e sua carne vendida ao ar livre.
Outro detalhe interessante é que em todo Estado de Goiás,
com quase 500 mil habitantes, nunca havia sido feito uma cirurgia e a primeira
foi feita numa mesa de cozinha, antes mesmo do hospital ter sido construído.
Era um paciente com uma obstrução intestinal conhecida como “nó na tripa”.
Em 1934 fundou a Escola de Enfermagem e foi um dos conselheiros
na fundação da Associação Educativa Evangélica, a Escola Couto Magalhães e a
Universidade Evangélica. Em 1951 recebeu de Sua Majestade, o Rei Jorge VI, o
título de oficial de Divisão Civil do Império Britânico, e foi entrevistado
pela BBC de Londres, que se interessou em relatar sua história de dedicação e fundação
do Hospital Evangélico em Anápolis, numa de suas raras visitas a Londres.. Foi
ainda tema de uma matéria publicada na Revista Time, à qual não tive acesso. O livro, Dossiê de Goiás, publicado em
1996, dedica 3 páginas inteiras para falar do pioneirismo do Dr. James Fanstone[2].
Dr. Fanstone, foi organista da Igreja Presbiteriana
Central de Anápolis por muitos anos, e faleceu aos 97 anos de idade, depois de
quebrar sua perna num acidente na porta do templo da igreja, na Rua
Desembargador Jaime, 194, e ficar um longo tempo de recuperação, foi promovido
para a glória.
O livro Missionários
Americanos, de Mário Ribeiro
Martins[3], dedica 3 páginas inteiras
sobre o Dr. Fanstone. O livro Missionary
Adventure in Brazil, (que lamentavelmente nunca foi traduzido para o
português, traz as reminiscências do Dr. Fanstone e foi editado pela sua irmã
Baird, em Londres.
Minha reflexão desta noite é sobre a razão que dá a tais
pessoas um senso de missão tão claro. Neemias, no texto citado acima, abandonou
todo seu prestígio trabalhando ao lado de Artaxerxes, poderoso imperador, e
retornando à Israel, para construir os muros da cidade, debaixo de muita
perseguição política e com uma estrutura perigosa. Quando provocado, não apenas
uma vez, disse: “Estou fazendo uma grande obra”, e se recusava a abandonar o
chamado e a vocação que entendia ser proveniente do próprio Deus.
Deixe-me falar de três coisas que se tornam inspiração
para tais pessoas:
1.
Compreensão da
grandeza da vida – Neemias
era um copeiro do rei, homem de confiança, vivia no palácio, rodeado de
nobreza, com remuneração à altura de seu cargo, respeito, dignidade,
estabilidade financeira, mas descobre um chamado que enche seu coração de
sentido. Ele percebe uma grandeza que existe na vida que tem propósitos, se
sente parte de um projeto de Deus, e nada o desafia mais do que isto.
Muitas pessoas percebem que suas vidas não podem ser
desperdiçadas com auto-satisfação, mas com o serviço e a glória de Deus. Sabem
que possuem apenas uma vida para viver e que esta vida não pode ser
desperdiçada. Paulo afirma: “Em nada
considero minha vida preciosa, conquanto complete a carreira que me foi dada,
por isto, de boa vontade me gastarei e me deixarei gastar”.
Dr. Fanstone sai de Londres em 1927 para se dedicar a uma
vida sem reconhecimento, numa região inóspita e central do Brasil. Ele jamais
poderia imaginar qualquer glória, mas entendia que sua vida deveria ser
consumida neste lugar. O chamado de seu pai para ser pastor no Recife, em 1879,
se deu depois que ele ouviu que um missionário havia morrido de febre amarela,
e estavam precisando de outro obreiro para substituí-lo no Recife, e foi este
apelo que o trouxe ao Brasil para fundar a primeira Igreja Congregacional da
cidade.
Que grandeza de visão e de sonho. Que compreensão da vida!
2.
Percepção da dor
humana – Neemias é profundamente desafiado quando percebe a
calamitosa situação do seu povo em Jerusalém. Depois de receber o relatório de
Hanani, alguém que estivera em Jerusalém, ele descobriu que as pessoas estavam
em grande miséria e desprezo, e por isto ele se assenta solitário e em oração muitos
dias. Ele fica em choque ao perceber a grande necessidade e sofrimento daquele
povo.
Uma das coisas que encantava o Dr. Fanstone, era servir
num local onde as pessoas morriam por causa de uma simples crise de apendicite.
O mesmo sentimento percebemos na Dra Rettie. Ela relata sua convivência com os
índios que chegavam à base da missão na Ilha do Bananal da seguinte forma:
“Centenas de pessoas acometidas por malária”. Seu próprio esposo morreria pouco
tempo depois por causa da insalubridade da região. Sua vida também poderia ter
sido ceifada, bem como a de seu pequeno filho, mas em última instância, tais
ameaças não eram capazes de inibir o desejo de servir e amar.
Centenas de vida foram salvas aqui neste hospital, por
causa de um chamado que Deus deu a este homem. Pessoas que são capazes de sair
de si mesmas, do seu narcisismo e egoísmo, tornam-se livres, generosas,
doadoras e resolvidas. Boa parte de nossa depressão atual reside no fato de que
estamos muito auto-enamorados, e não somos capazes de perceber ninguém além de
nós mesmos, e este movimento egóico nos neurotiza e adoece.
3.
Compreensão da
grandeza de Deus –
Vemos em Neemias, uma profunda relação de amor com o seu Deus. Para o judeu, o
templo estava identificado com a glória do Senhor. O magnífico templo havia
sido profanado, destruído, o Santo dos Santos saqueado. Todas as promessas
anteriores que foram dadas em relação à Jerusalém agora pareciam esquecidas. A glória
de Deus precisava ser novamente exaltada.
No livro, sowing in tears, A Dra Rettie[4] fala do grande prazer
que ela trazia em seu coração em fazer a obra de Deus. Sua alma era invadida
por uma presença sobrenatural, e a alegria que ela encontrava em Deus perpassa
todo o relato de seu chamado e ministério. Podemos perceber isto em cada uma
das páginas de seu livro. Ela graduou-se em Medicina em 1923 e após três anos
de experiência num hospital em Londres, onde trabalhou de 1926-1929, tinha sua
própria casa e carro e uma grande possibilidade de crescimento na carreira na
cidade mais prestigiada do mundo e num país que era, literalmente, dono de
metade do mundo – Inglaterra.
Seu chamado se deu numa manhã de domingo, no início de
1929, quando ouviu a voz do Senhor através do Mr. Emery of Bristol, um pregador
convidado, que leu o texto sobre a chamada de Abraão: “Sai da tua terra e da
tua parentela, e da casa de seu pai, e vai para uma terra que eu lhe mostrarei”.
Ela relata que seu corpo tremia da cabeça aos pés, ela sabia que Deus estava
falando com ela. Naquela noite, enquanto orava consagrando sua vida, uma paz
que ela nunca havia experimentado inundou seu coração.
Quando entendemos quem é o Deus a quem servimos, e a
grandeza de seu propósito para nossa vida, todas as demais coisas são
relativizadas. Como estamos precisando deste mesmo mover de Deus sobre as novas
gerações, tão preocupadas com auto satisfação, entretenimento, conforto, mas
tão vazias de inspiração.
Nas suas memórias, Dra Rettie escreve: “Meu alvo é Deus em
si mesmo, não alegria, nem paz, nem mesmo benção, mas apenas Deus, o meu
Senhor. Que ele possa me conduzir então, a qualquer custo, em a qualquer
estrada, amado Senhor!” quando conhecemos a Deus desta maneira, todas as demais
riquezas e tesouros são pequenas demais, diante da grandeza de Deus.
Conclusão:
O livro “sowing in tears”, inicia com um desafio: “Para
que a igreja brasileira possa aumentar o compromisso com as tribos e suas
fronteiras, enviando outros jovens homens e mulheres para ganha-los para
Cristo, pois ainda há muita terra para ser alcançada”.
No livro “Missionary
Adventure in Brazil”, a irmã do Dr. James Fanstone escreve: “Este pequeno
volume tem sido publicado em louvor de uma pessoa mas acima de tudo, como um
tributo aos dedicados obreiros e inumeráveis missionários que vivem que vivem suas
vidas, anonimamente, sem honra, em inóspitas terras estrangeiras. Suas
contribuições e o valor de suas vidas, excedem a dos embaixadores e
diplomatas”.
São pessoas que decidiram dizer:
“Estou fazendo uma grande obra!”.
[2] Silva, Antonio Moreira. Dossiê
de Goiás – Um perfil do estado e seus municípios. Goiânia, Máster Publicidade, 1996,
pgs. 413-415
[3] Martins, Mário Ribeiro - Missionários
Americanos e algumas figuras do Brasil Evangélico, Goiânia, Ed. Kelps, 2007
[4] Rettie, Wilding sowing in tears, London , Ed. The Evangelical Union of South
America.(não encontramos a data).
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