quarta-feira, 24 de março de 2021

I. Desafios da Igreja na Cidade: Oração: (Leitourgois)

Desafios da Missão Urbana


I.
Leitourgois

 

 

 


Introdução:

 

Desde 2003, tenho sido professor na área de Missões Urbanas no Seminário Presbiteriano Brasil Central, em Goiânia. Já tive oportunidades também de apresentar e ministrar este curso a outros seminários e congressos ao redor do Brasil. Quando iniciei a ministração desta matéria propus quatro grandes desafios para a igreja na cidade:

 

 

                                         

INTERCESSÃO (LEITOURGOIS)


COMUNHAO (KOINONIA)


PREGAÇÃO E EVANGELIZAÇÃO (KERIGMA)


CUIDADO E PROTEÇÃO (DIAKONIA)

 

Posteriormente, identifiquei outros dois elementos que considero igualmente importantes:

 

 

ECOLOGIA E SUSTENTABILIDADE (OIKOS)

 

 

POLITICIDADE E CIDADANIA (POLIS)

 

 

 

A Evangelização Urbana possui uma grande amplitude de possibilidades e ministérios. Consideramos oportuno refletir sobre seis elementos vitais na efetividade do ministério da igreja. Sejam quais forem as estratégias adotadas, estes princípios deverão estar presentes: 

 

A intercessão pela cidade (oração)

o exercício da misericórdia (compaixão)

A prática da comunidade e da solidariedade (comunhão)

O anúncio do Evangelho (Evangelização e pregação)

O cuidado com o meio ambiente (sustentabilidade e ecologia)

A participação nas decisões da cidade (Politicidade).

 

1.

 

A cidade e o desafio da Intercessão

(Leitourgois)

Orando pela cidade

 

 

Introdução:

 

É necessário, urgente e imprescindível colocar a oração em primeiro plano, de forma proposital e intencional. Ao invés de usar a palavra “oração”, que é mais restrita, estarei usando a palavra grega “leitourgois”, que é mais abrangente. Desta palavra grega vem o termo liturgia em português. Acho que a oração é uma forma “litúrgica” da igreja se colocar à disposição da sociedade, na brecha a favor da cidade, fazendo a “liturgia” de Deus na terra.

 

No Novo Testamento, a palavra grega para “oração”, é “proseuchē”, que significa “invocar, pedir ou suplicar a uma divindade”. Em hebraico, orar tem um sentido muito mais intenso. A palavra orar vem “hitpallel”, que deriva de um verbo que significa “julgar a si mesmo”. A palavra oração é “tefillah”, do verbo palel (julgar, pensar, crer, rogar). Esta visão original da oração tem um valor profundo na própria essência de sua etimologia. 

 

Feita estas considerações, preferi usar liturgia, porque este termo é empregado por Paulo ao se referir à autoridade secular. Em Romanos 13 ele afirma por três vezes que a autoridade é “ministro de Deus”, em favor do povo. Em Rom 13.4 ele usa o termo “diácono” duas vezes tentando demonstrar que a liderança política tem o papel de servir, ela deve ser diaconal. Entretanto, quando ele afirma: “Por esse motivo, também pagais impostos porque são ministros de Deus”, ele prefere empregar a palavra “leitourgoi” para “ministro”, e não diácono, como anteriormente. Na visão paulina, os poderes públicos e as autoridades existem exatamente para fazer “a liturgia de Deus”, na sociedade.

 

É exatamente assim que Deus olha o seu povo, desde o Antigo Testamento, ao chamar Abraão para segui-lo, Deus faz promessas de cuidado e lhe dá um senso missionário: “De ti farei uma grande nação, e te abençoarei e te engrandecerei o nome. Sê tu uma benção” (Gn 12.3). As promessas estão relacionadas ao sustento, direção e proteção. Deus formaria um grande povo a partir do patriarca e abençoaria sua descendência. O chamado e a vocação, entretanto, surgem atreladas a um imperativo: “Sê tu uma benção!” Deus ordena que a descendência abraâmica seja um canal de bençãos. É um chamado para servir e abençoar. Sua vocação teria uma dimensão universal: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra”. É um chamado missionário para servir a humanidade, exercendo assim um papel fundamental na história: de ser uma nação sacerdotal.

 

A Igreja Reformada defendeu O sacerdócio universal dos fiéis, contrariando a visão clericalista que atribuía a função sacerdotal aos ministros ordenados. o “Sacerdócio Universal dos Fiéis” ou “Sacerdócio de Todos os Crentes” tornou-se um dos princípios fundamentais defendidos pelos reformadores do século XVI. 

 

Lutero afirma: “De posse da primogenitura e de todas as suas honras e dignidade, Cristo divide-a com todos os cristãos para que por meio da fé todos possam ser também reis e sacerdotes com Cristo, tal como diz o apóstolo Pedro em 1 Pe 2.9… Somos sacerdotes; isto é muito mais que ser reis, porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e rogar pelos outros”(...) ‘Que diferença haveria entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’, ‘religioso’ e outras semelhantes foram injustamente retiradas do meio do povo comum, passando a ser usadas por um pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero.” (A Liberdade do Cristão, cap. 17).

 

O Antigo Testamento aponta para o fato de que o ofício sacerdotal da tribo de Levi deveria estar em benefício do povo de Israel. Em Êxodo 19.5-6 lemos o seguinte: “Se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade particular dentre todos os povos… vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”. Outro texto muito conhecido e que serve como bom argumento é Isaías 61.6: “Vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, e vos chamarão ministros de nosso Deus”. Neste último caso, percebe-se que o chamado não era apenas para os levitas, mas para toda comunidade judaica. Uma nação sacerdotal, cumprindo assim o imperativo dado a Abraão de fazer com que Israel fosse um canal divino de benção a todas as nações da terra. Um chamado sacerdotal e missionário. 

 

No Novo Testamento, Jesus é o grande sumo sacerdote: todas as funções do sacerdócio da antiga dispensação concentram-se nele. Ele é o único mediador entre Deus e os seres humanos (1 Tm 2.5), mas simultaneamente demonstra que o chamado anteriormente dado a Israel, agora se transforma no chamado da igreja, já que todos os crentes partilham desse sacerdócio na adoração, no serviço e no testemunho. O apóstolo Pedro afirma: “Também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”. (1 Pe 2.5), e mais adiante ainda: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. (1 Pe 2.9)

 

A mesma ideia é defendida nos escritos joaninos. Em Apocalipse lemos: “Àquele que nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai…” (Ap 1.5-6) Mais adiante a mesma ideia retorna: “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes” (Ap 5.9-10). Deus está formando sacerdotes para ministrar ao mundo. Este é o chamado exclusivo de Deus à sua igreja. Uma comunidade litúrgica. 

 

Portanto, o chamado sacerdotal não é de um grupo ordenado, mas de toda igreja, por isto não deve ser entendido de maneira individualista, mas no seu sentido comunitário. É um chamado para... Um povo para orar, interceder e ministrar uns aos outros. Um chamado para sermos leitourgois de Deus.

 

Qual a função do sacerdote? 

Enquanto o profeta traz a mensagem de Deus aos homens, o sacerdote leva as dores e pecados da humanidade a Deus. Um recebe a iluminação e direção através da revelação especial dada por Deus para anunciar sua palavra, outro para ser meio de benção na sociedade. A igreja tem esta dupla função: Pregar e anunciar a mensagem de Deus e levar o sofrimento do povo a Deus, suplicando sua benção a favor do povo, exercendo assim sua dimensão litúrgica na história.

 

Deus chamou Israel para ser uma nação sacerdotal. Deus chama a igreja para uma vocação sacerdotal, e intencionalmente estou usando aqui o termo litúrgico. Somos um povo chamado para orar, confessar os pecados comunitários, implorar a misericórdia e a graça de Deus sobre as pessoas que “não sabem discernir entre a mão direita e a esquerda” (Jn 4.11) e que literalmente perderam a capacidade de estabelecer um juízo ético. Mas de forma ainda mais exclusiva, somos chamados para sermos “ministros da reconciliação” (2 Co 5.18,19), convidando homens ao arrependimento e anunciando a redenção através da cruz de Cristo. Oramos pela cura das nações, pelos filhos e filhos, pelas autoridades, e apresentamos as súplicas e dores deste povo a Deus. Fazemos a liturgia de Deus na história, por meio de nossas vidas. Oramos e intercedemos, conforme nos diz as Escrituras:  “Antes de tudo, pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de graças, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se acham investidos de autoridade, para que vivamos vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito. Isto é bom e aceitável diante de Deus nosso Salvado”. (1 Tm 2.1-3)


A Igreja tem tal função espiritual na cidade. Por esta razão vale a pena considerar a advertência de Harvie Conn afirma: “Se você planeja desenvolver projetos sociais, não o faça, a menos que compreenda a dimensão espiritual de tais projetos”. 

 

Como igreja temos sempre polarizações: De um lado um grupo que espiritualiza tudo, vê diabo em tudo, sataniza os processos históricos e nunca assume as dimensões humanas e sociológicas envolvidas, que faz hermenêutica da história na perspectiva maniqueísta. (bem e mal). De outro lado, pessoas ingênuas quanto à realidade das forças espirituais que estão por detrás de uma estrutura tão complexa quanto a cidade. Esta ingenuidade e simplismo teológico, além de negar as evidências das lutas espirituais relatadas no Evangelho, despreza um elemento fundamental na construção do Reino de Deus, que é a oposição espiritual que se fará presente, sempre que qualquer iniciativa para anunciar a glória de Deus e sua redenção através de Cristo. 

 

No Antigo Testamento, cidades como Sodoma (Lc 10.12; 17.29), e Nínive (11.32) resistiram a Deus. Muitas vezes, até mesmo o povo de Deus pode agir como poder fortemente aliado à opressão estrutural da cidade, como nos dias de Amós (Am 7.10-13), ou Ezequiel (Ez 8.5-12), assim como os poderes religiosos e políticos que se imiscuíam entre si nos dias de Jesus. O Reino das trevas age estrategicamente para criar oposição a Deus, através da filosofia e da cultura. A cidade incorpora o mal e este mal torna-se estrutural e coletivo. Isaias descreve a cidade tropeçando na verdade (Is 3.12). Tudo isto nos ajuda a refletir quão importante e urgente é a recomendação bíblica que diz: “orai pela cidade”( Jr 29.7).

 

Nos dias de Jesus, como hoje, a cidade sempre foi lugar de dominação e opressão. Jerusalém não reconheceu o dia da oportunidade (Lc 19.44), antes desenvolveu hostilidade contra os que lhe traziam a paz (Lc 19.42). Além de Jerusalém encontramos Betsaida opondo-se frontalmente ao ministério de Jesus  (Lc 9.10; 10.13). Ainda podemos ver registros de oposição em Corazim (Lc 10.13), Tiro (Lc 10.13,14), Sidom (Lc 10.13,14), Cafarnaum (Lc 10.12-15), e mesmo nas cidades fora dos domínios de Israel como Decápolis, que preferiam ter um endemoninhado entre eles, que experimentar a maravilhosa libertação.

 

Então, saiu o povo para ver o que sucedera. Indo ter com Jesus, viram o endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido, em perfeito juízo; e temeram. Os que haviam presenciado os fatos contaram-lhes o que acontecera ao endemoninhado e acerca dos porcos. E entraram a rogar-lhe que se retirasse da terra deles.” (Mc 5.15-17)

 

O texto parece até irônico, porque o povo viu o que aconteceu àquele estranho personagem da região, mas ao invés de se impressionar com o livramento e darem graças a Deus, acharam incômodo a presença de Cristo e pediram que ele saísse imediatamente da cidade. determinadas estruturas parecem conviver melhor com o diabo que com a graça de Deus.

 

Este processo de malignidade “não ocorre subitamente. É um processo. Um desenvolvimento vagaroso e constante de infidelidade a Deus e ao seu pacto com a cidade” como afirma Linthicum. O acúmulo do pecado dos moradores torna a própria cidade oprimida. Processo lento e gradativo: despreza o pobre, oprime o necessitado e não provê justiça, antes cria sistemas e leis iníquos e pecaminosos. 

 

A Bíblia descreve forças espirituais que agem nas estruturas humanas, sociais e políticas. Dois textos descrevem isto claramente:

  1. Lc 11.21,22 – Este texto nos fala sobre “o valente”. (ischuros) que bem armado (kathoplismenos) guarda a sua casa, mantendo suas posses em segurança, até que surge o mais valente (ischuroteros), que derrota o inimigo e lhe tira a armadura (panoplian), sua proteção, passando a dividir os despojos. 
  2. Ef 6.12-13 – Neste texto existe a descrição de um tipo diferente de luta que temos a enfrentar, não contra carne e sangue (aima kai sarka: tendências humanas) mas sim contra principados (archas: tiranos que se auto nomeiam príncipese potestades (exousias, que são forças de combate), e dominadores deste mundo tenebroso (kosmokratoras: estrategistas do mal), e exorta-nos a tomar a armadura (panoplian) de Deus.

Em ambos os textos aparece o termo panoplian que não se refere a uma simples armadura. Os soldados romanos usavam eleikoi, outro tipo de armadura, forjadas de metal protegendo o seu corpo. Panoplian refere-se as armaduras usadas por oficiais com o brasão do imperador, que além de proteção, indicava a autoridade daqueles que representavam os interesses do império. Em Lucas, Jesus retira esta armadura (panoplian) do diabo, para revestir sua igreja do panoplian de Deus, descrito em Efésios. A Igreja de Cristo é chamada, não para contemplar, mas para exercer sua autoridade. A raiz da luta é contra poderes malignos.

 

O termo kosmokratoras de Ef 6.12, traduzido como “dominadores” se referia a um grupo de estrategistas helênicos que reuniam-se para traçar planos, sabotar o exército inimigo e criar estratégias efetivas de batalha. É um poder organizado, e não apenas anjos do mal que agem aleatoriamente, sem nenhum plano de ação. 

 

O apóstolo João afirma que os poderes políticos e as forças da história estão entrelaçados com as forças espirituais (Ap 17.12-13). Os poderes políticos e terrenos estão profundamente mesclados com a filosofia da besta e do anticristo. (Ap 17.13,17) Por seguirem a besta e concentrarem todas as suas energias na promoção deste poder maligno, oferecem-lhe o poder e a autoridade (Ap 17.13) e doam-lhe o reino que possuem (Ap 17.17), são por sua natureza intrínseca, comprometidas com a besta e opostas ao Cordeiro. Por isto “pelejarão contra o Cordeiro” (Ap 17.14). Os poderes políticos não são descritos em apocalipse como “neutros”, antes trata-se de estruturas sistêmicas que promovem a besta. Babilônia está muito associada com a besta, na realidade o texto descreve a cidade  como que ‘montada numa besta”. (Ap 17.3) Isto é, sua estrutura está fundada na filosofia e no projeto da besta. Roma, com seus poderes constituídos, com os dez chifres, representa o movimento perseguidor da igreja de Cristo durante a história, personificada em sucessivos impérios mundiais. 

 

Jesus orou ardorosa e apaixonadamente pela cidade (Mt 23.37-39). O apóstolo Paulo faz recomendação clara sobre a necessidade de orarmos pela cidade (1 Tm 2.1-3). Vemos estas mesmas preocupações no coração dos reformadores. Lutero dizia: Se eu deixar de empregar duas horas em oração toda manhã, o diabo terá vitória o dia inteiro”. John Welch, O maravilhoso e santo pregador escocês disse certa vez: “O dia inteiro está perdido se eu não orar de 8 a 10 horas”.

 

A importância da oração.

A oração deve ser nosso primeiro recurso e não o último. Por isto A Bíblia afirma: “Antes de tudo,pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões”Antes de mais nada, a coisa mais essencial e primária deve ser a oração. A presença da igreja na sociedade faz diferença não por causa de sua estratégia politica e social, mas acima de tudo pelo fato de que a igreja faz a liturgia de Deus na história. A cidade é abençoada e transformada pela oração da igreja. Deus ouve o clamor de seu povo. 

 

Orai pela cidade

 

Esta foi a recomendação dada por Deus ao povo de Israel, e curiosamente, eles deveriam orar por uma cidade que era a causa de sua opressão e cativeiro. O clamor deles não era por uma cidade que eles amavam, mas deveriam orar pela Babilônia. “Procurai a paz da cidade para onde vos desterrei e orai por ela ao Senhor; porque na sua paz vós tereis paz.” (Jr 29.7). Este texto é surpreendente para um povo tão etnocêntrico quanto os judeus. 

 

Deus faz a mesma exortação em relação a Jerusalém: 

Orai pela paz de Jerusalém! Sejam prósperos os que te amam.Reine paz dentro de teus muros e prosperidade nos teus palácios.” (Sl 122.6,7). O termo Shalom é bem mais amplo que a ausência de conflitos ou falta de guerra. Trata-se de contentamento, realização, prosperidade, plenitude.  A oração da igreja deve ser mais abrangente, orar não apenas pela conversão dos perdidos, para que eles sejam alcançados pela graça salvadora de Cristo, mas pela prosperidade. Orar pela prosperidade, não só para ricos, mas para todos os habitantes. Uma cidade próspera é uma benção. O processo de exclusão das classes vulneráveis, a dificuldade das pessoas em terem acesso à saúde, segurança, educação, habitação gera caos social. Precisamos orar por uma sociedade com ausência de marginalizados e excluídos. Deus preocupa-se com a economia urbana, precisamente porque a ausência de recursos potencializa a opressão. Devemos orar por uma justa distribuição dos recursos. A cidade por estar à mercê dos poderes malignos, emaranhada de forças espirituais tem a tendência de ser exploradora e opressiva.

 

Os reformadores tinham um foco bem claro na oração pelo seu país e pela sua cidade. John Knox orava de joelhos em cima do mapa de seu país dizendo: “Dá-me a Escócia, senão eu morro”. O grande reformador João Calvino (França, 1509-1564) mudou-se para Genebra, em 1541, e ali exerceu grande influência sobre a cidade. Mais do que uma reforma religiosa, Genebra foi afetada em todos os aspectos civis: educação, legislação, governo. Calvino trouxe uma cosmovisão cristã que afetou toda a sociedade e é observada até os dias atuais entre a população da região. Ele morreu aos 55 anos e alguns atribuem a sua morte à doença que desenvolveu nos pulmões pelas horas que passava de madrugada intercedendo por Genebra na torre de oração localizada no centro da cidade. Esta informação é surpreendente!

 

Orando pela cidade: 

Linthicum aponta alguns motivos de oração pela cidade:

 

a)     Pela segurança dos cidadãos da cidade: Segurança contra conflitos, violência e crimes contra o indivíduo e a propriedade. Pela diminuição da criminalidade. Quando os cidadãos de uma cidade vivem dominados pelo medo, então está prestes a sofrer um colapso psicológico;

 

b)    Pelos que cometem crimes – Lembrai-vos dos encarcerados, como se presos com eles; dos que sofrem maus-tratos, como se, com efeito, vós mesmos em pessoa fôsseis os maltratados.” (Hb13.3)  Certamente não temos muito costume de orar pelos que estão na cadeia, entretanto, a recomendação bíblica é clara. Muitos afirmam que o autor desta carta estava se referindo aos cristãos que que estavam presos por causa do testemunho do evangelho. É fácil para gente ferida tornar-se vingativa e não orar pelos presos, pela sua salvação e reabilitação, mas a Palavra de Deus nos encoraja a orar pelos encarcerados. 

 

c)    Pelos policiais, para que sejam protegidos e guardados. Muitas vezes nos esquecemos dos vínculos familiares que estes agentes públicos possuem e como expõem tantas vezes suas vidas para proteger a sociedade. Precisamos orar para que não se envolvam em corrupção e práticas injustas. 

 

d)    Pelo sistema judicial, para que seja imparcial, justo e reto. Um dos pilares mais fundamentais de uma sociedade é o sistema judiciário. O executivo e o legislativo são tendentes ao abuso de poder, mas quando temos um judiciário corrupto o cidadão comum não sabe a quem recorrer.

 

e)    Pela ordem econômica – Tanto a favor da Babilônia quanto Jerusalém, há um direcionamento para que as cidades sejam estáveis na sua economia.  Devemos ainda orar pelos governantes e de forma especial, por aqueles que coordenam as decisões econômicas de uma nação, para que ajam a altura de suas tarefas (Sl 72.1-4;12-14;  1 Tm 2.1-2). Devemos ainda interceder pela correta administração do dinheiro público e dos impostos pagos pelos cidadãos. Todos brasileiros sabem quão trágica é a nossa realidade com políticos que fazem farra com o dinheiro dos impostos e o usam para benefícios pessoais e benesses, gerando pobreza e miséria. 

 

f)      Pelo povo:  pelos que crêem e pelos que não crêem, para que sejam alcançados pela felicidade e regozijo do Reino. A cidade é abençoada pela Igreja (sal e luz). Todo avivamento histórico tem profundas implicações nas estruturas sociais. O Profeta Isaias fala de orar incessantemente por Jerusalém, colocar guardas sobre a cidade para “lembrar” a Deus da necessidade de serem visitados pela graça. (Is 62.6-7)

 

A oração proposta de Isaias, possui cinco pilares:

 

a.     Oração cheia de expectativa: “Pus guardas sobre Jerusalém” (Is 62.5-6). É uma oração que pressupõe o socorro de Deus. 

b.     Oração perseverante: “jamais se calarão”  (Is 62.5-6). Foco, propósito, diariamente!

c.     Fundamentada nas promessas de Deus “vós, que fareis lembrados o Senhor” (Is 62.6). Deus perdeu a memória ou tem memória curta? Oração de pessoas que recordam as promessas das Escrituras:  “tu falastes...tu prometestes”.

d.     Ininterrupta e infatigável – “Não descanse, nem deis a ele descanso” (Is 62.6).

e.     Importuna e ousada – (Is 62.7). “Não dê a ele descanso...até que restabeleça Jerusalém”. Até que o socorro venha, que a situação seja transformada.

  

 

Conclusão: O que pode sustentar uma cidade?

 

Em Gênesis 18 o texto demonstra que a presença de pessoas justas seria suficiente para impedir a destruição de Sodoma e Gomorra e protegê-la do juízo de Deus. A pergunta de Abraão é incisiva: “Destruirás o justo com o ímpio?” E a resposta de Deus foi sempre a mesma: “Se houver justos na cidade, eu não a destruirei”. 

 

Linthicum afirma que há evidências  textuais significativas nos manuscritos mais antigos que dão suporte à leitura de que depois de ter anunciado a destruição de Sodoma, “O Senhor ficou ainda em pé diante da face de Abraão” (Gn 18.22)ao invés de afirmar que “Abraão ficou em pé diante da face do Senhor”. Esta disposição textual muda o sentido da passagem, nos levando a indagar sobre quem estava suplicando pela cidade? Se a leitura da passagem for verdadeiramente esta, parece nos indicar que o Senhor era o suplicante perante Abraão. Era Deus quem estava advogando o livramento de Sodoma! Era como se Deus estivesse dizendo ao patriarca: “Eu ouço as súplicas do meu povo. Vá em frente, Abraão, peça-me! Peça-me para salvar Sodoma por cinquenta pessoas justas e eu o farei!

 

Abraão pede com fé, e Deus lhe dá tudo quando ele pede. Linthicum indaga: “Se Abraão pedisse, teria Deus poupado a cidade por causa de uma família, a família de Ló? Teria Deus poupado a cidade somente por causa de Ló? Se a ordem das palavras em Gn 18.22 realmente foi invertida, então a resposta claramente seria, sim! Deus amava tanto a Abraão, como a Sodoma e Gomorra e teria dado a cidade ao patriarca por qualquer coisa que tivesse pedido. Deus queria salvar a cidade. O sentido de justiça de Deus, entretanto, exigia julgamento...além de seu pedido por dez pessoas, Abraão não pode ir. Foi assim que a negociação acabou – não porque faltasse a Deus misericórdia, mar porque Abraão não possuía ousadia maior”.[1]

 

Vários textos nos mostram que a presença da igreja exercendo seu papel litúrgico, levando o povo à presença de Deus, clamando pela cidade, intercedendo por ela, pode alterar a realidade de um povo e de uma nação. Quando Israel  saiu do Egito, diz-nos a palavra de Deus, que “naquele dia, saíram todas as hostes espirituais do Senhor” (Ex 12.41). A retirada do povo de Deus, espiritualmente falando, portanto, foi uma tragédia para o Egito. Que significavam estas palavras? A que hostes espirituais se refere o texto?

 

Paulo afirma também que “o mistério da iniquidade já opera, e aguarda que seja retirado aquele que agora o detém” (2 Ts 2.7). A que se refere este “mistério da iniquidade?” O que pode deter esta misteriosa força que age na história? O texto sugere que existe algo, ou alguém, ou um poder, que resiste à Deus. Para muitos o Espírito Santo, é quem detém este poder espiritual, o que certamente é uma verdade. Nós sabemos pela Palavra de Deus, que Deus resolveu habitar, pelo seu Espírito, dentro de cada um de seus eleitos, dando-nos o seu Espírito. Ele habita dentro de nós. É o Deus que habita em nós. Nós somos o templo do Espírito Santo. Deus escolheu morar em nós, não em templos, nem em construções, nem em santuários feitos por mãos humanas. Deus não está em Jerusalém, nem no templo onde o povo de Deus dominicalmente se reúne, mas ele está dentro de nós. “Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (1 Co 6.19)


Podemos concluir, que a presença do povo de Deus, como sal e luz dentro de uma cultura e uma sociedade, as orações e clamores do povo de Deus, sua comunhão poderosa com Deus, é capaz de exercer este papel “litúrgico”, trazendo a graça de Deus para a cidade, e operando poderosamente no papel de confrontar e impedir o mal.

 

Que Deus nos ajude nesta grandiosa tarefa de trazer, grande alegria á cidade, como os discípulos fizeram ao chegar à Samaria, com a mensagem do Evangelho. “E houve grande alegria naquela cidade” (At. 8.8). Que nossa função “litúrgica”, na sua dimensão mais profunda e bela, seja resgatada no meio de sua igreja.

 

 

Rev Samuel Vieira   

Revsamuca.blogspot.com.br  

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[1] Linthicum, Robert – Cidade de Deus, Cidade de Satanás. Belo Horizonte, Missão Editora, 1977, p. 126-127

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