quinta-feira, 11 de julho de 2024

A visceralidade do Evangelho Jo 6.48-55; 66-69

 


 

 

 

 

Introdução

 

Este discurso de Jesus é um dos mais contundentes e intrigantes de sua mensagem. Suas afirmações causaram desconforto tanto nos discípulos quanto nos judeus.

 

Jo 6.52: “Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua própria carne?”

 

Jo 6.60: “Muitos dos seus discípulos, tendo ouvido tais palavras, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir?”

 

Jesus causou unanimidade na oposição. Os discípulos e os judeus estavam perplexos. Jesus percebe o incômodo, mas não negocia nem minimiza seu discurso, pelo contrário, torna-o mais enfático ao dizer: “Mas Jesus, sabendo por si mesmo que eles murmuravam a respeito de suas palavras, interpelou-os: Isto vos escandaliza?” (Jo 6.61)

 

Sua pala gerou desconforto, escândalo. Ninguém estava preparado nem entendendo o significado destas palavras.

 

O que podemos observar neste relato é que Jesus estava adentrando uma dimensão enigmática da fé. O que ele ensina aqui é a essência da fé cristã, mas os discípulos ainda não estavam entendendo tudo que estava sendo dito. E talvez poucos de nós entendamos seu significado de forma profunda, ainda hoje.

 

Os primeiros cristãos, durante os primeiros séculos d.C., foram acusados de canibalismo. Na prática da Eucaristia, os cristãos comiam pão e bebiam vinho simbolizando o corpo e sangue de Jesus Cristo, e isto era frequentemente mal interpretada por pagãos e romanos como um ato literal de canibalismo. A linguagem utilizada pelos primeiros cristãos para descrever a Eucaristia, como "comer a carne" e "beber o sangue" de Jesus, contribuiu para o mal-entendido. Além do mais, as primeiras comunidades cristãs se reuniam em segredo para evitar perseguições, o que alimentava rumores e suspeitas entre a população em geral. A falta de conhecimento sobre suas práticas e crenças levava à imaginação e à criação de histórias fantasiosas, como a de que os cristãos se reuniam para comer carne humana em rituais macabros.

 

As acusações de canibalismo tiveram um impacto negativo significativo sobre os primeiros cristãos. Eles enfrentaram ainda mais hostilidade, discriminação e violência. A falsa crença de que os cristãos eram canibais alimentava o medo e o ódio da população em geral, tornando a vida dos cristãos ainda mais difícil e perigosa.

 

O que na verdade Jesus está querendo comunicar aos seus discípulos?

 

1.     Fé cristã não é algo meramente filosófica, possui uma dimensão bem mais profunda. Não basta nos convencermos de que se trata de algo mental, assimilado apenas pela mente, nem a concordância com determinados dogmas e doutrinas.

 

A fé cristã pressupõe esta compreensão. Paulo afirma que devemos levar cativo todo nosso pensamento à obediência de Cristo (2 Co 10.4), portanto, há um elemento cognitivo, mental. Mas a fé cristã é apenas intelectual.

 

2.     Fé não é apenas uma reação temporal diante da dor e do sofrimento. Muitos creem em Deus em épocas de sofrimento e dores, mas isto não esgota a fé cristã em todas as suas dimensões, e na verdade, na maioria das vezes, trata-se de algo muito superficial e vazio. É uma fé apenas para receber bençãos, uma fé instrumentalizada.

 

O que Jesus está querendo ensinar?

Que ser seu discípulo precisa ser uma experiência visceral. “comer seu corpo e beber seu sangue”. A fé tem que er visceral, penetrar nas entranhas.

 

Portanto, Jesus está fazendo uma afirmação de visceralidade, quase psicanalítica, dentro do conceito da voracidade. Sua palavra foge da compreensão platônica que tende a transformar a fé cristã em algo para a mente e para as emoções, apenas. Jesus fala de algo mais profundo ainda. Fala das entranhas e das vísceras dos seus discípulos sendo identificadas com sua natureza. Andar com Cristo é um andar visceral.

 

Eventualmente encontraremos esta dimensão mística e profunda em outras textos. Vamos citar alguns deles.

 

Ezequiel é um profeta que está sempre “dramatizando” a palavra de Deus. Por várias vezes sua mensagem é teatralizada. Em Ezequiel 3.1-3 Deus diz ao profeta: “Dá de comer ao teu ventre, enche as tuas entranhas.” É uma situação patética. Ele literalmente tem que comer um rolo. Enche as tuas entranhas deste rolo que eu te dou”. Neste caso, a identificação deveria ser tamanha que seria impossível separar o profeta do conteúdo que ele deve anunciar.

Os rolos dos textos judaicos, também conhecidos como pergaminhos ou megilot, eram manuscritos antigos utilizados para preservar e transmitir os textos sagrados do judaísmo. Estes rolos eram feitos de pele de animais, geralmente carneiros, cabras ou bois, ou de papiros, e eram cuidadosamente preparados e escritos à mão por escribas especializados, conhecidos como soferim.

O material mais comum era a pele de animais, mas também podiam ser feitos de papiro ou, em casos mais raros, de metal, ou argila. Seu formato era longo e estreito, podendo chegar a vários metros de comprimento. Eram enrolados em varetas de madeira para facilitar o armazenamento e o manuseio. A escrita era feita à mão com tinta preta à base de carvão ou outros materiais naturais. As letras eram geralmente grandes e quadradas, com espaços entre as palavras e linhas.

Deus se aproxima de seu profeta e lhe ordena que coma o livro, que era para ser lido. Isto nos diz um pouco do significado. Era necessário ingerir, e deixar que o rolo se tornasse parte de seu organismo. O livro não é para ser lido, mas para ser comido. Isto é ainda confirmado por outra declaração no mesmo texto que diz: “mete no coração todas as minhas palavras.” (Ez 3.10). Isto é algo invasivo. Ezequiel sente nas suas vísceras o peso. “fui amargurado na excitação do meu espírito.” (Ez 3.14)

 

Vamos encontrar experiência semelhante no salmista, quando ele afirma: “Sacrifícios e ofertas não quiseste; abriste os meus ouvidos; holocaustos e ofertas pelo pecado não requeres.” (Sl 40.6) Eugene Peterson afirma que a melhor tradução para este texto seria: “Cavastes ouvido em mim.” E ele considera Deus usando picaretas para romper a surdez profunda que tantas vezes nos domina e controla.

 

Em Apocalipse, mais uma vez veremos esta dimensão da visceralidade da mensagem, A voz que ouvi, vinda do céu, estava de novo falando comigo e dizendo: Vai e toma o livro que se acha aberto na mão do anjo em pé sobre o mar e sobre a terra.Fui, pois, ao anjo, dizendo-lhe que me desse o livrinho. Ele, então, me falou: Toma-o e devora-o; certamente, ele será amargo ao teu estômago, mas, na tua boca, doce como mel.10 Tomei o livrinho da mão do anjo e o devorei, e, na minha boca, era doce como mel; quando, porém, o comi, o meu estômago ficou amargo.” (Ap 10.8-10)

 

A Palavra de Deus aprofunda e revela o mistério. O livro que João deve tomar e comer surge aqui como algo enigmático. “Comer” tem a ideia de apropriar-se, identificar-se de forma profunda. O profeta deve assimilar sua mensagem, ele e sua mensagem precisam se tornar um. No simbolismo de comer o livro existe a ideia de que o profeta tem que se tornar a sua própria mensagem antes de entregá-la.

 

O texto revela um duplo caráter do conteúdo deste livro e desta experiência para João: O Livro é doce como o mel na sua boca e amargo no seu estômago. (Ap 10.9) O anjo o adverte que isto lhe acontecerá. Ellul demonstra que há inúmeras explicações para este duplo caráter, mas que todas se referem, sem dúvida, à Palavra de Deus:

 

i.     Doce, receber a palavra; amargo suportar o ministério profético;

ii.    Doce o anúncio da salvação; amargo o anúncio do julgamento;

iii.   Doce o anúncio da eleição; amargo o anúncio da perseguição;

iv.   Doçura receber o testemunho do Evangelho que demonstra a intensidade do amor de Deus e amargura pela vida a que o “livro” nos exorta. A mensagem a princípio teria gosto de mel, mas quando João entendesse o que ela significava, perceberia quão amarga poderia ser, suas exigências eram profundas e suas implicações radicais. [1]

 

Ao comer o livro, o profeta sofre convulsões, congestões e crises. A Palavra de Deus nem sempre é fácil de ser digerida, muitas vezes provoca náuseas, reações viscerais. Nem sempre é fácil digerir o livro (Ap 10.10) Ao assimilarmos a palavra, o preço a pagar nunca é fácil, a perseguição e a oposição àqueles que resolvem segui-la é sempre muito concreto. Doce ao paladar, mas amarga no estômago. Parece fácil de ser assimilada, quando a provamos seu paladar é doce, a Lei do Senhor é perfeita e restaura a alma. Quando, porém, ela começa a gerar transformações, exigir uma resposta de obediência e discipulado, nem sempre o nosso organismo, nossas entranhas, reagem de forma muito positiva.

 

Esta sensação de algo amargo remonta a minha infância. Quando criança, não tínhamos muito recursos à medicina e remédio como hoje, e a solução para curar determinadas enfermidades era sempre caseira. Minha mãe curava, ou acreditava poder curar tudo, com macaé. O chá de erva de macaé, também chamada de rubim, é uma bebida de propriedades anti-inflamatórias. A planta é originária da Ásia é também chamada de erva das lavandeiras e lavantina. Ela auxilia a saúde do estômago, combate dores e cólicas e pode ajudar no tratamento de diversas doenças. Então, qualquer doença que tínhamos, minha mãe nos dava macaé. Acredito que muitas de nossas doenças desapareciam apenas pelo desprezar de ter que tomar um chá tão amargo.

 

Em todos os textos lidos, somos convidados a ver a mensagem de Deus não como algo meramente cognitiva. Enche as tuas entranhas deste rolo que eu te dou”. ”Quem não comer a minha carne e beber o meu sangue, não tem parte comigo.” Trata-se de algo não apenas racional, intelectual, emocional. Para nós que apreciamos tanto este elemento intelectual da fé, somos confrontados aqui com a mensagem de Jesus de irmos além, para tentar se aproximar da fé e da mensagem, com a dimensão da visceralidade.

 

Quando estava nos Estados Unidos, tive o privilégio de pastorear uma igreja que ficava praticamente dentro do campus da Harvard, e como pastor da vizinhança, era-me permitido inscrever em alguns cursos da faculdade de teologia, que era muito liberal. Vi a propaganda de um curso de um teólogo liberal e eu já tinha lido seu famoso livro “The Secular City”, e resolvi fazer este curso, cujo título era “Pentecostalismo.” Um pastor liberal falando de “fogo do céu”, é, no mínimo, irónico.

 

Apesar de tudo, foi muito importante refletir sobre este movimento na perspectiva da antropologia. Ele afirmava que estes movimentos floresciam por causa da visceralidade da fé, que ele chamava de força primal. Para ele, três elementos estão presentes, antropologicamente falando, neste movimento. Eles eram conduzidos pelo Primal trance (transe primal); Primal dance (dança primal) e Primal linguagem (linguagem primal). Ele via que a força estava relacionada ao extase que brotavam de toda esta experiência primal, que penetrava no mais íntimo do ser humano. Ele reconhecia que gostaria de ter uma experiência de êxtase, como cair no espírito ou falar em línguas, mas que, por causa de sua racionalidade, ou por ser muito self-conscious, ou auto consciente, sua dimensão intelectual não permitia este nível de vulnerabilidade.

 

Tenho considerado isto na minha própria espiritualidade. Quanto da minha doutrina (que considero muito ortodoxa e conservadora), não me impede de uma entrega e vulnerabilizacão maior aos elementos “místicos” da fé cristã? Alguns santos oravam por horas seguidas que lhe pareciam minutos, eu oro por alguns minutos que parecem hora. Parece que falta à nossa fé uma dimensão de profundidade, ficamos no campo superficial da fé que tangencia a mente, e muito raramente as emoções, e Jesus nos convida a um nível ainda mais profundo: da visceralidade. Será que a palavra de Cristo não me convida a esta dimensão mística da fé num nível mais profundo? Os termos “devorar o livro”, encher as entranhas da palavra de Deus, comer e beber da natureza de Cristo não me parecem, estranhas...? Será que esta coisa visceral não retira de nós a consciência aguçada e porque não dizer, uma falsa compreensão de que podemos controlar os elementos sagradas, de um vento que sopra onde quer, ouvimos sua voz mas não sabemos de onde vem nem para onde vai.

 

Lembro-me de um dia pregar sobre a união mística do cristão, com Cristo, na minha igreja nos Estados Unidos, e um dos meus presbíteros me censurar. Ele disse que não gostava da expressão “mística”, pois parecia algo relacionado a êxtase. Tive que mostrar que esta linguagem, longe de ser conteúdo de uma nova teologia, faz parte da teologia sistemática adotada pelos grandes teólogos reformados.

 

A identificação com Cristo

 

“quem comer a minha carne e beber o meu sangue, permanece em mim e eu nele.” Não é algo superficial, periférico, mas profundo e visceral. Pao e vinho, alimento. Precisa ser ingerido, assimilado e digerido. Adentra uma área na qual não tenho controle: as vísceras.

 

Há quatro interpretações sobre a Ceia do Senhor:

 

1) TRANSUBSTANCIAÇÃO - É a posição do Catolicismo Romano. É a ideia de que os elementos, pão e vinho, mudam de substância e se transformam em carne, sangue e divindade de Cristo na hora da consagração dos elementos.

 

2) CONSUBSTANCIAÇÃO - É a posição de Lutero. É a ideia de que Cristo está presente fisicamente nos elementos, pão e vinho.

 

3) MEMORIAL - É a posição de Zwuinglio. É a ideia de que a Ceia é a apenas um memorial, ou seja, uma recordação da morte de Cristo. Adotada pela maioria das igrejas pentecostais e batistas.

 

4) MEIO DE GRAÇA - É a posição calvinista. É a ideia de que Cristo está presente espiritualmente na Ceia, como alimento para nossa alma. Portanto, é um meio de graça. Entendemos que essa última interpretação é uma correta interpretação das Escrituras! Calvino acreditava que através dos elementos, podemos ser curados física, emocional e espiritualmente.

 

Seja qual for a dimensão adotada, a ceia sempre nos convida a uma compreensão mais profunda. É necessário um aprofundamento.

 

Conclusão

Diante disto tudo, queria retirar algumas aplicações.

 

1.     O que nos satisfaz não são ideias sobre Cristo, mas o próprio Cristo. Por isto o termo “Em Cristo” surge 160 vezes no Novo Testamento, sendo certamente sua mensagem central. Tudo está em Cristo. Não com Cristo, ou “ao lado de Cristo”, mas nele.

 

2.     Somos convidados a uma identificação radical com Cristo. Na apenas concordância doutrinária, mas muito mais que isto. A vida de Cristo sendo parte da nossa vida.

 

Alguns anos atrás ministrava num pequeno grupo voltado apenas para homens. Muitos homens alternativos, de origem religiosa distinta, tinham prazer em estar nesta reunião. Num destes dias, estava entre nós um homem muito rico, que hoje é senador da república, e que gostava sempre de fazer seus comentários sobre a bíblia e o texto que estava sendo estudado. Seus comentários eram sempre interessantes. Num destes dias, quando falava da necessidade de morrer para nosso eu, para que Cristo governe sobre nós, aquele homem comentou: “Acho que não estou muito longe disto.”

 

O que ele estava dizendo é que ele estava compreendendo a mensagem da Bíblia. Não estou muito certo, mas creio que ele veio a se batizar depois de mudar de nossa cidade. Eu porém, lhe disse: “Bem... você precisa entender que para isto acontecer, você precisa fazer morrer a sua natureza carnal, que sempre quer governar e dirigir. O problema é que um rei não se curva com facilidade. O nosso eu não quer morrer, ele quer sua auto preservação, quer ter o controle. Por isto Jesus afirmou que se o grão de trigo não morrer, fica ele só, mas se morrer, produz muitos frutos.” Depois desta palavra, ele ficou reflexivo, considerando o significado destas palavras.

 

3.     Terceira aplicação que gostaria de fazer, tem a ver com o fato de que, entender esta visceralidade, me ajuda a entender toda dimensão da obra de justificação que Jesus realiza em minha vida. Eu estou identificado com Cristo.

 

A vida de Cristo, introjetada em mim. Eu nele, ele em mim, me leva a identificação tão profunda que o pai me vê em Cristo. Como Deus me vê? Fora de Cristo, sou objeto de sua ira e condenação. Eu Cristo, sou filho amado, perdoado, redimido e aceito. Quando recebo Cristo em minha vida, Deus me vê através de Jesus. A justiça e os méritos de Cristo são meus. Ele está em mim, faz parte da minha natureza.

 

Por isto, entender a visceralidade da fé cristã é algo tão importante. As palavras de Cristo ainda ecoam:

Isto vos escandaliza?

Quereis vós outros retirar-vos?

 

A resposta de Pedro é fundamental nesta hora:

Para quem iremos nós, só tu tens as palavras da vida eterna e nós temos conhecido e crido que tu és o Cristo, o filho do Deus vivo.”

 

 

 

 

 



[1] idem pg. 83


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