(Arrogância e Julgamento)
Introdução:
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Esta é uma estrada da qual pouco se fala.
Talvez porque não estejamos tão conscientes de sua existência e dos seus
riscos, no entanto, religiosos facilmente se perdem por esta via. Jesus foi
mais crítico dos religiosos da sua época, que de pessoas de moral duvidosa. “A
máquina religiosa é capaz de engolir as pessoas!”[1].
A
religiosidade humana muitas vezes encontra-se na contramão do projeto de Deus
para a vida. Jesus estava sempre advertindo sobre os riscos da religiosidade.
Ela torna estéril a nossa alma e é capaz de secar nosso coração, além de nos
tornar críticos, com grande tendência à superioridade moral e capacidade de
julgar os outros. Temos que aprender como ser cristãos sem sermos religiosos, já
que o religioso pode atravessar o mar para fazer um prosélito e colocá-lo no
inferno duas vezes mais, como afirmou Jesus (Mt 23.15). Não é sem razão que a
justiça própria é a inimiga número 1 do Evangelho. O Moralista, cioso de seus
deveres, encontra muita dificuldade de se submeter a Deus, e depender de sua
graça para salvação.
O texto de Gênesis 38, que servirá de ponto de
partida para esta reflexão, nos mostra como o comportamento religioso pode enganar
e trair.
Judá, um dos filhos de Jacó, foi a Adulã e
casou-se com uma cananita. Ela lhe deu 3 filhos: Er, Onã e Selá. O primeiro
casou-se com Tamar, mas a Bíblia afirma “Er,
porém, o primogênito de Judá, era perverso perante o Senhor, pelo que o Senhor
o fez morrer” (Gn 38.7). Sem entrar em detalhes sobre o tipo de
perversidade que ele teria cometido e que o levou à morte.
Segundo a Lei do levirato, o irmão imediato
deveria se casar com a mulher para suscitar descendência ao irmão que não teve
filhos. “Sabia, porém, Onã que o filho
não seria tido por seu; e todas as vezes que possuía a mulher de seu irmão,
deixava o sêmen cair na terra, para não dar descendência à seu irmão. Isso,
porém, que fazia, era mau perante o Senhor, pelo que também a este, fez morrer”
(Gn 38.9-10). Daí surgiu o termo “onanismo”, que é a prática da masturbação. O
filho mais novo, Selá, era ainda criança, e Judá disse a Tamar, sua nora, para
aguardar até que este se tornasse um homem, e então o daria para suscitar
descendência. O tempo passou e Judá não cumpriu sua promessa. Tamar voltou para
casa de seus pais, que ficava na região onde se tosquiava o rebanho.
Depois de ter ficado viúvo, Judá sobe à região
onde morava Tamar. Esta cobriu-se com um véu e se fez passar por uma
prostituta. Ele se dirigiu a ela e a convidou para se deitar com ele. Ela lhe
perguntou o que ele lhe daria para este encontro e ele prometeu que enviaria um
cabrito do seu rebanho, e Tamar lhe pediu que lhe deixasse algum penhor como
garantia de que o preço seria pago, e ele lhe deu o selo, o cordão e o cajado que
tinha consigo. Judá a possuiu, voltou para sua casa e posteriormente procurou
resgatar seus objetos e efetuar o pagamento, como havia combinado, mandando que
lhe entregassem o cabrito, no entanto, ninguém conhecia qualquer prostituta na
região e a pessoa responsável pelo dote, voltou para dizer-lhe que ela não
havia sido encontrada. Judá se conformou, e a vida voltou ao normal.
Algum tempo depois Judá recebe a notícia de
que sua nora estava grávida. Para uma cultura legalista, isto se constituía uma
enorme afronta e vergonha. Quando Judá soube do acontecido, ordenou que ela fosse
trazida à cidade e queimada. Quando vieram buscá-la, Tamar mostrou os penhores
de Judá e desmascarou publicamente seu sogro que havia ordenada sua execução.
Assim age a lei. Ela é severa com os outros,
mas não é capaz de tratar o coração daquele que se torna seu executor. Jesus
afirmava que os fariseus “coavam mosquitos e engoliam camelos”. Haviam criado
uma moral superficial, de pura representação diante de Deus. É fácil se tornar juiz
dos outros sem considerar os riscos do próprio coração. Este é o fundamento do
legalismo e da religiosidade e este é um caminho pelo qual facilmente
enveredamos.
O Legalismo olha a letra da lei, mas não
considera a essência da lei. Judá é um homem “honesto”, paga pela prostituta,
mas é infiel. Judá fica preocupado com a reputação de sua família, afinal sua
nora quebrara os códigos morais da sua sociedade (Gn38.22), mas não estava
preocupado com sua atitude de procurar uma prostituta e ter um caso com ela, e
nem como o significado de seu ato aos olhos de Deus.
O caminho da Lei é implacável. Paulo afirma
que “a letra mata” (2 Co 3.6). A lei
não considera “motivos” e “razões”. Ela apenas julga! Podemos facilmente
transformar a lei num álibi e nos transfigurarmos num homem profundamente
religioso e ainda assim virarmos um monstro e perdermos a nossa alma nos
distanciando de Deus. O legalista sempre trata com severidade os outros, mesmo
que seus pecados sejam iguais ou mesmo piores. Judá age de forma moralista: “Tirai-a fora para que seja queimada” (Gn
38.24), quando ele mesmo havia sido o homem que a engravidara. Ela não tivera
relações sexuais sozinha. Judá nunca se preocupou com as necessidades pessoais
da sua nora, mas agora a julga pelo pecado que ela comete.
Esta é a lógica da Lei: costumes e regras são
mais importantes que a lei do amor. Judá deveria ser julgado pela lei, no
entanto julga através da lei. A nora de Judá o apanha na sua própria acusação. Esta é a lógica do legalismo. Toda moralidade
esconde desejos, e a acusação é a neurose do próprio acusado.
Esta foi a atitude de Davi ao ouvir a parábola
de um homem rico que havia tomado a única ovelha de seu vizinho para si. Davi
age de forma legalista e faz severo julgamento, sem o saber, contra si mesmo.
Seu veredicto foi: “Este homem deve morrer”. Ele, porém, não sabia que o
profeta estava narrando a sua história.
A Lei é pomposa, bonita e perfeita, mas é
impotente para mudar nossos impulsos. Dá aparência de santidade aos que dela se
utilizam, mas não transforma o coração, levando-os a apegar-se aos seus
aspectos e religiosidade externos: Rituais, programas, templos e coisas. A Nova
Aliança focaliza o coração. Deus disse que tiraria de nós um coração de pedra e
nos daria coração de carne (Ez 36.26). Que a lei passaria a ser escrita nos
corações, não em tábuas de pedras (2 Co 3.3). É assim que o evangelho age na
vida do homem, indo ao cerne da questão. Judá era legalista, mas tinha uma
moral podre, era um “homem de bem”, mas que não tinha escrúpulos em possuir
prostitutas de beira de estrada.
O legalista guarda a
Lei, mas não o Espírito da Lei. Os Religiosos no tempo de Jesus guardavam o
sábado, mas nenhum deles perguntou qual o objetivo de Deus ao criar o sábado.
Jesus tenta mostrar que o sábado fora dado para a vida. Deus não precisava de
descanso, no entanto o criou para o homem, a fim de que ele pudesse restaurar
sua energia. Este é o conceito do shabath. O sábado seria uma
oportunidade para que a alma pudesse ser restaurada e esta quebra de atividades
seria positiva para o ser humano. Deus estava pensando no bem estar do homem ao
criar o sábado, no entanto, os homens o transformaram num instrumento de
opressão e na sua religiosidade perderam o propósito original de Deus.
Alguns estudiosos têm indagado se o sábado não
seria o ápice da criação, já que no sexto dia Deus fez o homem e no sétimo dia
teria criado o sábado. Não seria o sábado a última obra de sua criação, como um
corolário de todo seu design original?
Se tal idéia está certa eu não sei, mas certamente precisamos pensar sobre este
assunto.
Qual é a
função do sábado?
Dentre várias funções é um tempo para
reorganizar mente e emoções, recarregar as baterias. Estudos demonstram quanto
o descanso pode ser eficiente para o ser humano. O sábado também teria uma
função social, já que considerava o escravo, que era alguém sem identidade e
nenhum valor numa sociedade escravocrata; até o animal deveria ser poupado, e precisava
descansar. Pessoas ambiciosas poderiam obrigar seus servos e animais a uma carga
de trabalho exagerada, para tirar o máximo de lucro esquecendo-se de suas
necessidades. O sábado teria implicações para a natureza, já que no sistema
levítico era decretado que até mesmo a terra deveria passar por um ano
sabático, no qual não se plantaria e assim daria descanso à terra. Os
religiosos censuram Jesus porque comeu no sábado (Mc 2.23-24), e o censuram por
fazer o bem, curando num sábado (Mc 3.5).
Estou citando o exemplo do sábado, porque é
uma ótima alegoria de como podemos inverter o significado das coisas. A religiosidade facilmente se torna um fim em
si mesma. Qual era o propósito da Lei? Trazer o homem para perto de Deus.
Mas a Lei não tocava em aspectos internos, não lidava com a alma humana, mas
apenas com aspectos exteriores. Ela não tem poder de ir ao coração e por isto cuidava
apenas do exterior do homem (Mc 7.6-10). Esta é uma diferença crucial entre a
lei e o Evangelho. Este toca o coração, a pessoa é transformada pelo poder que
emana do Espírito de Deus. Poucas pessoas têm entendido isto.
O legalista sempre se torna antagônico ao
Evangelho. Basta ler a Bíblia com cuidado para perceber como a moralidade
religiosa é uma armadilha. Paulo afirma: “...tais coisas, com efeito, tem aparência de sabedoria, como culto de si
mesmo, e de rigor ascético; todavia, não tem valor algum contra a sensualidade”
(Col 2.23). Por que a fé cristã se
diferencia da religião? A fé cristã mira no valor da vida humana e na sua
relação com Deus, e minimiza rituais
religiosos. Se nossa religiosidade não coloca o homem como o valor principal
e o centro de nossa teologia, estamos perdendo a referência de Deus. "A
religião pura e sem mácula para com nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos
e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do
mundo" (Tg 2.27). Jesus chama a atenção dos religiosos tão preocupados
com a lei do Antigo Testamento, mas que não consideravam o bem estar do outro.
O evangelho,
contrário ao legalismo, está interessado nas motivações. Qual é o propósito de
nossa religiosidade? Quais os motivos e intenções do coração ao fazer o que
faço? Para Deus não conta apenas o que faço, mas porque e como faço o que faço.
Quantas vezes a religião se afasta tanto de Deus que as pessoas, supostamente
em nome de Deus, se tornam malignas nos atos religiosos e rituais? Basta assistir um seriado como “Pilares da Terra”[2],
para não termos nenhuma ilusão em relação a comportamentos patológicos dos
homens que controlam a religião , criam os rituais e falam em nome de Deus.
Conclusão:
Como cristãos somos conhecidos por regrinhas:
"Não fume, não beba, não dance, não jogue".
Paulo questiona
profundamente tais atitudes na carta aos Colossenses, dizendo que tais coisas
são costumes e preceitos humanos, portanto, meros rudimentos:
“Se morrestes com Cristo, para os rudimentos
do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo,
vos sujeitais a ordenanças: não
manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro,
segundo os preceitos
e doutrinas dos homens?
Pois que todas estas coisas, com o uso se destroem”
(Col 2.2022).
Creio, porém, que deveríamos ser conhecidos de outras maneiras: Pelo
amor a Deus, pela forma como os maridos cristãos tratam suas esposas, pelo
cuidado e solidariedade com as pessoas que sofrem, pela identificação com a dor
humana, por uma ética de justiça, ação social e defesa da ecologia, e assim por
diante. Tácito, historiador romano nos Século I, fez o seguinte comentário ao
ver os cristãos cuidando de crianças abandonadas e dos idosos: “Vede como eles
se amam!”. Naturalmente não estou aqui
fazendo nenhuma apologia de bebida, de cigarro, jogo e dança, mas o que
gostaria é de que pudéssemos ter uma visão mais madura dos desafios éticos que
nos cercam nestes dias maus.
Deus
fez promessas de que o Evangelho seria escrito, não mais em tábuas de pedras e
sim nos corações. Deus está interessado na profundidade de nossa vida interior.
Portanto, tudo que fizermos para restaurar o homem à dignidade de Deus, por
meio da pregação do Evangelho, é o que Deus espera de nós.
Somos
desafiados a aprofundar nossa relação com Deus. O religioso, cuja alma não
aprofunda as raízes, corre sério risco, por paradoxalmente excluir em nome de
seus ritos e liturgias, o próprio Deus. “Este
povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me
adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens” (Mc 7.6-7). Por
meio dos seus códigos morais e da lei, das regrinhas e dos costumes, dos
comportamentos meramente ritualistas e externos, se distancia de Deus.
Nossa podridão interior, ainda que não vista
pelos outros, deveria ser suficiente para nos levar a uma humildade espiritual.
Se Judá olhasse para o seu coração, não julgaria sua Nora... Se Davi olhasse o
que fez, não julgaria tão severamente aquele homem da parábola que teria matado
a única ovelha de seu vizinho pobre... Se aqueles homens olhassem seus
comportamentos lascivos não teriam trazido a mulher adúltera diante de Jesus,
para ser apedrejada O legalismo tem um
grave problema: Nos falar olhar para a Lei como algo fora de nós. Pensamos
estar acima dela.
A Bíblia nos ensina que “o fim da Lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (Rm
10.4). A cruz desmascara e denuncia nossa tentativa de fazer as coisas pelo
esforço próprio. Se alguém pudesse guardar toda lei, não haveria necessidade da
vinda de Jesus. Por que Jesus deveria morrer pela humanidade, se, através do
cumprimento da lei, os homens podem ter méritos suficientes para sua salvação?
A lei apenas mostra o caminho, mas não nos dá força para segui-lo. Apenas o
poder de Jesus em nossa vida nos torna pessoas graciosas, acolhedoras e capazes
de compreender o significado do amor de Deus por nossas vidas.
[1] Young, William P - A Cabana. Ed. Sextante, São Paulo, pg 165
[2] Os Pilares da Terra, 2010 - Minissérie de 8
episódios. Gira em torno da construção de uma igreja no século XII na
Inglaterra. Protagonizada pelos atores Ian McShane, Rufus Sewell, Matthew
Macfadyen e Donald Sutherland, e com Sergio Mimica-Gezzan, de Battlestar
Galactica, como realizador.