quinta-feira, 24 de abril de 2014

Gn 38 A Estrada do Legalismo



 (Arrogância e Julgamento)
       
Introdução:
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  Esta é uma estrada da qual pouco se fala. Talvez porque não estejamos tão conscientes de sua existência e dos seus riscos, no entanto, religiosos facilmente se perdem por esta via. Jesus foi mais crítico dos religiosos da sua época, que de pessoas de moral duvidosa. “A máquina religiosa é capaz de engolir as pessoas!”[1].

A religiosidade humana muitas vezes encontra-se na contramão do projeto de Deus para a vida. Jesus estava sempre advertindo sobre os riscos da religiosidade. Ela torna estéril a nossa alma e é capaz de secar nosso coração, além de nos tornar críticos, com grande tendência à superioridade moral e capacidade de julgar os outros. Temos que aprender como ser cristãos sem sermos religiosos, já que o religioso pode atravessar o mar para fazer um prosélito e colocá-lo no inferno duas vezes mais, como afirmou Jesus (Mt 23.15). Não é sem razão que a justiça própria é a inimiga número 1 do Evangelho. O Moralista, cioso de seus deveres, encontra muita dificuldade de se submeter a Deus, e depender de sua graça para salvação.

O texto de Gênesis 38, que servirá de ponto de partida para esta reflexão, nos mostra como o comportamento religioso pode enganar e trair.

Judá, um dos filhos de Jacó, foi a Adulã e casou-se com uma cananita. Ela lhe deu 3 filhos: Er, Onã e Selá. O primeiro casou-se com Tamar, mas a Bíblia afirma “Er, porém, o primogênito de Judá, era perverso perante o Senhor, pelo que o Senhor o fez morrer” (Gn 38.7). Sem entrar em detalhes sobre o tipo de perversidade que ele teria cometido e que o levou à morte.

Segundo a Lei do levirato, o irmão imediato deveria se casar com a mulher para suscitar descendência ao irmão que não teve filhos. “Sabia, porém, Onã que o filho não seria tido por seu; e todas as vezes que possuía a mulher de seu irmão, deixava o sêmen cair na terra, para não dar descendência à seu irmão. Isso, porém, que fazia, era mau perante o Senhor, pelo que também a este, fez morrer” (Gn 38.9-10). Daí surgiu o termo “onanismo”, que é a prática da masturbação. O filho mais novo, Selá, era ainda criança, e Judá disse a Tamar, sua nora, para aguardar até que este se tornasse um homem, e então o daria para suscitar descendência. O tempo passou e Judá não cumpriu sua promessa. Tamar voltou para casa de seus pais, que ficava na região onde se tosquiava o rebanho.

Depois de ter ficado viúvo, Judá sobe à região onde morava Tamar. Esta cobriu-se com um véu e se fez passar por uma prostituta. Ele se dirigiu a ela e a convidou para se deitar com ele. Ela lhe perguntou o que ele lhe daria para este encontro e ele prometeu que enviaria um cabrito do seu rebanho, e Tamar lhe pediu que lhe deixasse algum penhor como garantia de que o preço seria pago, e ele lhe deu o selo, o cordão e o cajado que tinha consigo. Judá a possuiu, voltou para sua casa e posteriormente procurou resgatar seus objetos e efetuar o pagamento, como havia combinado, mandando que lhe entregassem o cabrito, no entanto, ninguém conhecia qualquer prostituta na região e a pessoa responsável pelo dote, voltou para dizer-lhe que ela não havia sido encontrada. Judá se conformou, e a vida voltou ao normal.

Algum tempo depois Judá recebe a notícia de que sua nora estava grávida. Para uma cultura legalista, isto se constituía uma enorme afronta e vergonha. Quando Judá soube do acontecido, ordenou que ela fosse trazida à cidade e queimada. Quando vieram buscá-la, Tamar mostrou os penhores de Judá e desmascarou publicamente seu sogro que havia ordenada sua execução.

Assim age a lei. Ela é severa com os outros, mas não é capaz de tratar o coração daquele que se torna seu executor. Jesus afirmava que os fariseus “coavam mosquitos e engoliam camelos”. Haviam criado uma moral superficial, de pura representação diante de Deus. É fácil se tornar juiz dos outros sem considerar os riscos do próprio coração. Este é o fundamento do legalismo e da religiosidade e este é um caminho pelo qual facilmente enveredamos.

O Legalismo olha a letra da lei, mas não considera a essência da lei. Judá é um homem “honesto”, paga pela prostituta, mas é infiel. Judá fica preocupado com a reputação de sua família, afinal sua nora quebrara os códigos morais da sua sociedade (Gn38.22), mas não estava preocupado com sua atitude de procurar uma prostituta e ter um caso com ela, e nem como o significado de seu ato aos olhos de Deus.

O caminho da Lei é implacável. Paulo afirma que “a letra mata” (2 Co 3.6). A lei não considera “motivos” e “razões”. Ela apenas julga! Podemos facilmente transformar a lei num álibi e nos transfigurarmos num homem profundamente religioso e ainda assim virarmos um monstro e perdermos a nossa alma nos distanciando de Deus. O legalista sempre trata com severidade os outros, mesmo que seus pecados sejam iguais ou mesmo piores. Judá age de forma moralista: “Tirai-a fora para que seja queimada” (Gn 38.24), quando ele mesmo havia sido o homem que a engravidara. Ela não tivera relações sexuais sozinha. Judá nunca se preocupou com as necessidades pessoais da sua nora, mas agora a julga pelo pecado que ela comete.

Esta é a lógica da Lei: costumes e regras são mais importantes que a lei do amor. Judá deveria ser julgado pela lei, no entanto julga através da lei. A nora de Judá o apanha na sua própria acusação.  Esta é a lógica do legalismo. Toda moralidade esconde desejos, e a acusação é a neurose do próprio acusado.

Esta foi a atitude de Davi ao ouvir a parábola de um homem rico que havia tomado a única ovelha de seu vizinho para si. Davi age de forma legalista e faz severo julgamento, sem o saber, contra si mesmo. Seu veredicto foi: “Este homem deve morrer”. Ele, porém, não sabia que o profeta estava narrando a sua história.

A Lei é pomposa, bonita e perfeita, mas é impotente para mudar nossos impulsos. Dá aparência de santidade aos que dela se utilizam, mas não transforma o coração, levando-os a apegar-se aos seus aspectos e religiosidade externos: Rituais, programas, templos e coisas. A Nova Aliança focaliza o coração. Deus disse que tiraria de nós um coração de pedra e nos daria coração de carne (Ez 36.26). Que a lei passaria a ser escrita nos corações, não em tábuas de pedras (2 Co 3.3). É assim que o evangelho age na vida do homem, indo ao cerne da questão. Judá era legalista, mas tinha uma moral podre, era um “homem de bem”, mas que não tinha escrúpulos em possuir prostitutas de beira de estrada.

O legalista guarda a Lei, mas não o Espírito da Lei. Os Religiosos no tempo de Jesus guardavam o sábado, mas nenhum deles perguntou qual o objetivo de Deus ao criar o sábado. Jesus tenta mostrar que o sábado fora dado para a vida. Deus não precisava de descanso, no entanto o criou para o homem, a fim de que ele pudesse restaurar sua energia. Este é o conceito do shabath. O sábado seria uma oportunidade para que a alma pudesse ser restaurada e esta quebra de atividades seria positiva para o ser humano. Deus estava pensando no bem estar do homem ao criar o sábado, no entanto, os homens o transformaram num instrumento de opressão e na sua religiosidade perderam o propósito original de Deus.

Alguns estudiosos têm indagado se o sábado não seria o ápice da criação, já que no sexto dia Deus fez o homem e no sétimo dia teria criado o sábado. Não seria o sábado a última obra de sua criação, como um corolário de todo seu design original? Se tal idéia está certa eu não sei, mas certamente precisamos pensar sobre este assunto.

Qual é a função do sábado?

Dentre várias funções é um tempo para reorganizar mente e emoções, recarregar as baterias. Estudos demonstram quanto o descanso pode ser eficiente para o ser humano. O sábado também teria uma função social, já que considerava o escravo, que era alguém sem identidade e nenhum valor numa sociedade escravocrata; até o animal deveria ser poupado, e precisava descansar. Pessoas ambiciosas poderiam obrigar seus servos e animais a uma carga de trabalho exagerada, para tirar o máximo de lucro esquecendo-se de suas necessidades. O sábado teria implicações para a natureza, já que no sistema levítico era decretado que até mesmo a terra deveria passar por um ano sabático, no qual não se plantaria e assim daria descanso à terra. Os religiosos censuram Jesus porque comeu no sábado (Mc 2.23-24), e o censuram por fazer o bem, curando num sábado (Mc 3.5).

Estou citando o exemplo do sábado, porque é uma ótima alegoria de como podemos inverter o significado das coisas. A religiosidade facilmente se torna um fim em si mesma. Qual era o propósito da Lei? Trazer o homem para perto de Deus. Mas a Lei não tocava em aspectos internos, não lidava com a alma humana, mas apenas com aspectos exteriores. Ela não tem poder de ir ao coração e por isto cuidava apenas do exterior do homem (Mc 7.6-10). Esta é uma diferença crucial entre a lei e o Evangelho. Este toca o coração, a pessoa é transformada pelo poder que emana do Espírito de Deus. Poucas pessoas têm entendido isto.

O legalista sempre se torna antagônico ao Evangelho. Basta ler a Bíblia com cuidado para perceber como a moralidade religiosa é uma armadilha. Paulo afirma: “...tais coisas, com efeito, tem aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de rigor ascético; todavia, não tem valor algum contra a sensualidade” (Col 2.23). Por que a fé cristã se diferencia da religião? A fé cristã mira no valor da vida humana e na sua relação com Deus,  e minimiza rituais religiosos. Se nossa religiosidade não coloca o homem como o valor principal e o centro de nossa teologia, estamos perdendo a referência de Deus. "A religião pura e sem mácula para com nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo" (Tg 2.27). Jesus chama a atenção dos religiosos tão preocupados com a lei do Antigo Testamento, mas que não consideravam o bem estar do outro.

O evangelho, contrário ao legalismo, está interessado nas motivações. Qual é o propósito de nossa religiosidade? Quais os motivos e intenções do coração ao fazer o que faço? Para Deus não conta apenas o que faço, mas porque e como faço o que faço. Quantas vezes a religião se afasta tanto de Deus que as pessoas, supostamente em nome de Deus, se tornam malignas nos atos religiosos e rituais?  Basta assistir um seriado como “Pilares da Terra[2], para não termos nenhuma ilusão em relação a comportamentos patológicos dos homens que controlam a religião , criam os rituais e falam em nome de Deus.

Conclusão:

Como cristãos somos conhecidos por regrinhas: "Não fume, não beba, não dance, não jogue". 
Paulo questiona profundamente tais atitudes na carta aos Colossenses, dizendo que tais coisas são costumes e preceitos humanos, portanto, meros rudimentos: 
Se morrestes com Cristo, para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, 
vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, 
segundo os preceitos e doutrinas dos homens? 
Pois que todas estas coisas, com o uso se destroem” (Col 2.2022). 

Creio, porém, que deveríamos ser conhecidos de outras maneiras: Pelo amor a Deus, pela forma como os maridos cristãos tratam suas esposas, pelo cuidado e solidariedade com as pessoas que sofrem, pela identificação com a dor humana, por uma ética de justiça, ação social e defesa da ecologia, e assim por diante. Tácito, historiador romano nos Século I, fez o seguinte comentário ao ver os cristãos cuidando de crianças abandonadas e dos idosos: “Vede como eles se amam!”.  Naturalmente não estou aqui fazendo nenhuma apologia de bebida, de cigarro, jogo e dança, mas o que gostaria é de que pudéssemos ter uma visão mais madura dos desafios éticos que nos cercam nestes dias maus.

Deus fez promessas de que o Evangelho seria escrito, não mais em tábuas de pedras e sim nos corações. Deus está interessado na profundidade de nossa vida interior. Portanto, tudo que fizermos para restaurar o homem à dignidade de Deus, por meio da pregação do Evangelho, é o que Deus espera de nós.

Somos desafiados a aprofundar nossa relação com Deus. O religioso, cuja alma não aprofunda as raízes, corre sério risco, por paradoxalmente excluir em nome de seus ritos e liturgias, o próprio Deus. “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens” (Mc 7.6-7). Por meio dos seus códigos morais e da lei, das regrinhas e dos costumes, dos comportamentos meramente ritualistas e externos, se distancia de Deus.

Nossa podridão interior, ainda que não vista pelos outros, deveria ser suficiente para nos levar a uma humildade espiritual. Se Judá olhasse para o seu coração, não julgaria sua Nora... Se Davi olhasse o que fez, não julgaria tão severamente aquele homem da parábola que teria matado a única ovelha de seu vizinho pobre... Se aqueles homens olhassem seus comportamentos lascivos não teriam trazido a mulher adúltera diante de Jesus, para ser apedrejada  O legalismo tem um grave problema: Nos falar olhar para a Lei como algo fora de nós. Pensamos estar acima dela.

A Bíblia nos ensina que “o fim da Lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.4). A cruz desmascara e denuncia nossa tentativa de fazer as coisas pelo esforço próprio. Se alguém pudesse guardar toda lei, não haveria necessidade da vinda de Jesus. Por que Jesus deveria morrer pela humanidade, se, através do cumprimento da lei, os homens podem ter méritos suficientes para sua salvação? A lei apenas mostra o caminho, mas não nos dá força para segui-lo. Apenas o poder de Jesus em nossa vida nos torna pessoas graciosas, acolhedoras e capazes de compreender o significado do amor de Deus por nossas vidas.





[1] Young, William P - A Cabana. Ed. Sextante, São Paulo, pg 165
[2] Os Pilares da Terra, 2010 - Minissérie de 8 episódios. Gira em torno da construção de uma igreja no século XII na Inglaterra. Protagonizada pelos atores Ian McShane, Rufus Sewell, Matthew Macfadyen e Donald Sutherland, e com Sergio Mimica-Gezzan, de Battlestar Galactica, como realizador.

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