Introdução
A vida de Davi é marcada por bom senso, equilíbrio, coerência e obediência. Por isto foi chamado de “Um homem segundo o coração de Deus.” (1 Rs 14.8; At 13.22). Entretanto, quando lemos atentamente a sua história entendemos que “o homem segundo o coração de Deus” é imperfeito. A Bíblia não tem nenhuma dificuldade de mostrar as sombras de sua alma, porque ela não se preocupa em criar heróis e nem em proteger a reputação de quem quer que seja. O homem Davi deixa brechas por onde passa, eventualmente é caprichoso, vingativo e vaidoso nas suas decisões, e a Bíblia não está interessada em mostrar homens sem falhas, mas em revelar o Deus amoroso e gracioso.
Um exemplo típico se dá logo após o chamado de Abraão em Gn 12. Deus faz promessas quanto à sua posteridade, apesar da desconfiança que Abraão expressa diante das circunstâncias reais relacionadas à sua vitalidade e à de sua esposa, mas Deus afirma que faria dele e Sara, uma numerosa sua descendência. No mesmo capítulo, porém, o texto nos revela um Abraão pusilânime e inseguro. Sua primeira atitude após as promessas foi entregar sua mulher a Faraó, movido pela atitude mesquinha de proteger a pele. No capítulo 15, Deus ratifica sua promessa, inclusive fazendo uma aliança de sangue, mas no capítulo 16, Abraão expulsa de sua casa a escrava Agar, com seu filho de colo, que certamente morreria no deserto, não fosse a intervenção miraculosa e sobrenatural de Deus. A Bíblia não oculta a fraqueza dos homens, mas procura demonstrar que neles opera sua graça suficiente.
Assim vemos os relatos bíblicos sobre a vida de Davi. Sua carreira segue uma trajetória ascensional até o 2 Livro de Samuel, quando toda sua força, unção, sensibilidade e mística se revelam frágeis demais.
Quais aspectos revelam esta fragilidade?
1. A zona do conforto ( 2 Sm 11.1)
O texto afirma que era tempo de guerra, mas Davi enviou seu comandante e ficou na cidade. Em dias de guerra, a cidade ficava deserta, com mulheres, crianças e alguns comerciantes idosos, que não tinham muita coisa para fazer. A cidade parecia dia de feriado, sem muito movimento, as atividades diárias se reduziam drasticamente.
Numa tarde, o rei estava no terraço, depois de se levantar da cama... Não havia desafios, o palácio estava calmo, mas o coração de Davi estava desassossegado, e é nesta zona de conforto que o desastre acontece.
Andando pelo terraço, vê uma linda mulher tomando banho, e isto o atrai cegamente. Manda buscar esta mulher, cujo marido encontrava-se na guerra, e depois de algum tempo de conversa, um bom vinho e risadas de sedução, estão envolvidos num relacionamento sexual. Tudo se passou meio escondido no palácio, mas as paredes tem ouvidos – e Deus vê o que acontece por detrás das portas. Davi é pego.
Assim como Davi, somos uma geração consumista que não gosta de nada que gere desconforto. Queremos satisfazer necessidades imediatas, agimos por impulso de forma hedonista e existencialista: Busca pelo prazer de forma rápida. Gostamos de coisas boas, carros e casas cada vez mais luxuosos e fácil acesso a bens de consumo. Certa piada diz que as mulheres detestam baratas e adoram carinho. Não gostam de roupas baratas, viagens baratas, comida barata, e apreciam restaurantes carinhos, carros carinhos, hotéis carinhos.
Esta busca pelo bem estar, entretenimento e lazer pode cobrar caro, podemos nos descuidar nesta zona de conforto quando deveríamos estar lutando. Ficamos no palácio, no terraço, com a mente vazia, espreguiçando, e como Davi, temos de tudo, mas falta-nos desafios. Nossa cabeça cheia de lascívia, pessimismo, depressão e descontentamento. Queremos o que não temos. Ficamos horas na internet, lendo e relendo páginas, com nossa mente vazia de sentido e de Deus.
Foi exatamente neste momento que a tentação veio forte sobre Davi.
Acredito que a grande tentação numa determinada fase da vida é o conforto, quando não temos grandes sonhos e nem achamos muitas razões para ir à luta. Desta forma paramos de orar, de buscar o Senhor, de aceitar desafios espirituais e ficamos com nossa mente vazia, abertos às sugestões, propostas e ofertas do diabo.
Certo presbítero cuja igreja enfrentara muitas lutas com disputas pastorais e divisões, fez o seguinte comentário: “Estamos cansados de lutar. Não queremos novos desafios, nem novas ideias, queremos apenas o básico, queremos sossego e paz. Estamos cansados...”. Outro casal se envolveu com minha esposa no trabalho de adolescentes, depois de algumas semanas, desapareceu e não mais apoiava o trabalho. o marido admitiu que desde que começara a dar suporte para este trabalho, sua vida estava um inferno e os problemas se acumularam. E completou: “Minha vida estava tão boa... porque mexer?”
É exatamente nesta zona de conforto que corremos sérios riscos.
Pv 14.4 afirma: “Não havendo bois, o celeiro fica limpo, mas pelo mexer dos bois há abundância de cereal”. Você pode não ter trabalho, mas também não vai ter colheita. Uma vida sem oração pode ser tranqüila, mas perigosa. Enterrar os talentos pode ser muito atraente, mas não dá frutos e não recebe a aprovação do dono da seara.
Clarice Lispector fala de um determinado personagem da seguinte forma:
"O hábito tem-lhe amortecido as quedas, mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintoma. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida; pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o beneficio de seu próprio aviso prévio"[1].
2. Licenciosidade moral (2 Sm 11.3-5)
Davi tinha várias mulheres, um harém dentro do palácio, mas o pecado coloca seus olhos em outro lugar, seu harém já não mais o atraia. Sua lascívia e luxúria o dominavam Na primeira oportunidade suas paixões afloram. Podemos ter a mulher de nossa vida ao lado, a mulher da mocidade, ter família respeitada, fé em Deus, mas sermos detonados por uma atração fatal, uma paixão irresistível, e estas coisas destrutivas ainda assim passarem a ter um profundo significado existencial em nossas vidas.
C.S.Lewis:
“Um homem com uma obsessão é um homem que tem pouca resistência à compra… Muitas pessoas dizem não praticar a castidade por ser ela impossível. Quando uma coisa é obrigatória, não facultativa, deve-se fazer o melhor e não pensar em possibilidade ou impossibilidade”. [2]
Davi perde o senso do seu chamado, de sua história, de seu Deus, de sua fé. Torna-se vulgar, mesquinho e desrespeitoso. Usa sua autoridade como pretexto para a luxúria. Sua vida torna-se um inferno, a partir de então. De repente, Bateseba está na sua cama, subsequentemente está grávida. Uma bomba chamada lascívia detona sua vida.
Mais e mais pastores e líderes estão se perdendo numa sociedade licenciosa e mundana. Visitei uma igreja do interior que viu cinco dos sete presbíteros, envolvidos em escândalos de divórcio e adultério. Como esta igreja ainda sobrevive é um milagre. O que pode acontecer espiritualmente com uma igreja que vê seus lideres sucessivamente envolvidos em escândalos financeiros, morais e familiares?
3. Demora em entrar em contacto com seu mal (2 Sm 12)
O que Davi faz quando pecou? Ele saiu em busca de subterfúgios e álibis. Ele não procura confissão, mas defesa. Não quer admitir, quer negar.
Sua reputação e glória pessoal tornaram-se mais importantes que a integridade e relacionamento com Deus. Davi tenta encobrir, ocultar, manter em segredo. Sua estratégia, porém, não funciona. O diabo ajuda a fazer, mas não ajuda a esconder. O Deus dos exércitos se torna seu opositor. O homem segundo o coração de Deus se afastou do coração de Deus.
Pior que o pecado que cometemos é a forma como tentamos manter uma vida de aparência e engano. Um abismo chama outro abismo, a máscara precisa cair para sermos curados. Na tentativa de acobertar, ao invés de confessar, nos tornamos mais religiosos, rígidos, legalistas e moralistas. Já viram isto?
Uma pessoa em pecado que se torna um religioso radical, um exemplo de fidelidade denominacional? Rígido e duro com censuras e crítico dos outros? Gente que acusa facilmente determinados pecados e trata com dureza todos os demais? Geralmente pessoas acusadoras e ícones moralistas possuem sérios conflitos, e buscam esta frágil defesa da acusação para se protegerem e se defenderem. Na verdade, toda acusação é a neurose do acusador.
Assim faz Davi.
Para proteger sua reputação manda matar Urias.
Para proteger seu nome manda matar.
Quantas pessoas já mataram em nome de um falso zelo? Davi é capaz de matar Urias, para criar álibis. Faz para si vestimentas de folhas de figo para cobrir sua patética nudez. Para salvar a pele, líderes inescrupulosos e em pecado, colocam fachada de santidade, aparentam piedade. Leia cuidadosamente o texto abaixo e vejam como Paulo denuncia esta realidade na igreja primitiva: “Não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais cousas, com efeito, tem aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não tem valor algum contra a sensualidade” (Col 2.21-23)
O problema é que sem confissão vem o endurecimento e aprofundamento do mal. “Aquele que confessa e deixa, alcança misericórdia, mas o que endurece o seu coração cairá no mal” (Pv 28.13). O caminho é a confissão, não a reputação. A confissão traz cura, redenção, restauração. O ocultamento nos torna rígidos e religiosos, cujo coração é endurecido pelo pecado.
O profeta Natã é enviado por Deus a Davi já que “...isto que Davi fizera, foi mau aos olhos do Senhor?”(2 Sm 11.27). Este profeta foi encarregado de trazer duras sentenças contra seu amigo e rei Davi. “O que fizeste em oculto, eu farei perante todo povo de Israel”(2 Sm 12.12). O pecado estava cobrando seus dividendos.
4. Davi descuidou da família (2 Sm 13)
As atividades palacianas, os encontros com chefes de estados, ministros e secretários, gente do poder, consumiram sua vida, sem que ele percebesse como sua base familiar estava sendo destroçada. Incidentes cada vez mais graves foram surgindo dentro de casa, e ele, impotente, indiferente e silencioso, não reagia nem tratava destas questões. Ao contrário de Jó que demonstrava profundo interesse pelos seus filhos (Jó 1.5), Davi se descuidou dos seus.
Filhos criados sem pais, facilmente se desorientam.
Davi não tratou Amnom
O primeiro a manifestar seu desequilíbrio foi seu sucessor, o primogênito, Amnom, que se apaixonou pela sua meia-irmã Tamar. Paixão vem do termo grego “pathos”, daí a palavra “patologia”. É uma doença. Davi teve a chance de interromper a loucura de seu filho, mas menosprezou os riscos. Faltou sensibilidade para perceber o risco que seu filho corria. Amnom, na verdade, pede ajuda. Davi soube que ele estava doente e foi visitá-lo, mas ao chegar ali ouve um pedido esdrúxulo e o atende. Faltou percepção. Estava na cara. Algo anormal estava surgindo e Davi não foi capaz de discernir.
A conversa que ele teve com Amnom, antes do fatídico estupro não fazia sentido. Ele pede para sua irmã ir preparar biscoitos para ele, que ele comeria das suas mãos (2 Sm 13.6). Ela era uma princesa, Havia numerosas cozinheiras muito melhores que ela, mas faltou perspicácia a este homem acostumado a tomar decisões de Estado. Era um grande executivo, acostumado a lidar com grandes decisões do governo, mas tergiversou, fez que não entendeu e atendeu ao pedido insano, ordenando a Tamar que fosse à casa deste filho adoecido e se tornasse vítima de um estupro (2 Sm 13.7).
Quando o incesto foi praticado, Davi não participou do drama, antes evadiu-se e se limitou a ficar irado (2 Sm 12.31). Esta atitude de ficar nervoso, é muito pequena ante a gravidade do fato, ele não tomou atitudes mais rígidas contra Amnom, o que certamente geraria uma catarse pública e seria disciplina para seu filho. Ele precisava ir para a cadeia, ter uma sentença pública pelo crime. Davi deveria punir publicamente, já que o problema se tornara público, cassar seus privilégios políticos de primogenitura e afirmar que pelo seu desatino, não seria mais o futuro rei de Israel.
Davi não protegeu Tamar
A segunda vítima de Davi, foi Tamar. Ele não a procurou para consolá-la, sua filha fora violentada, abusada, e ele simplesmente se afasta? Sua ausência lhe custou muito caro.
Por não tomar posição, ele enfrentaria oposição dentro de sua própria casa, e por não agir de forma assertiva, Absalão, o irmão de Tamar, transforma-se no seu maior opositor.
Sua indiferença destruiu sua família:
Trouxe morte a Amnom
Arrebentou as estruturas emocionais de Tamar.
Hoje as pessoas estão muito preocupadas com a lei da palmadinha no congresso. Na verdade, o grande risco no coração dos filhos é a frieza, a distância e o descaso. Estas coisas são bem mais danosas à alma.
Talvez esta tenha sido a maior sombra na ameaça de Davi: Nem guerras, oposições, inimigos declarados e ocultos, nem traição, mas a incapacidade de ser pai.
Davi não confrontou Absalão
A alma de Absalão era complicada, mas ele foi o irmão que protegeu Tamar. Certamente ele esperava que seu pai se manifestasse, mas depois do acesso de ira que Davi teve no palácio, nada aconteceu. As coisas aparentemente voltaram à sua normalidade, mas isto estava longe de ser verdade.
Absalão desenvolveu uma amargura profunda contra seu pai e seu irmão. Este porque abusara de sua irmã; aquele porque não tomou nenhuma atitude diante do incidente. Talvez o relacionamento entre Absalão e o rei não fosse bom, mas o fato é que ele passa a alimentar sua ira e ódio contra o irmão, e dois anos depois, num banquete que fez em sua casa matou Amnom.
Davi teve a chance de confrontá-lo, as coisas estavam muito claras para todo povo de Israel. Era visível que Absalão odiava seu irmão. Logo após a morte, Jonadabe afirma isto. “Assim o revelam as feições de Absalão” (2 Sm 13.32). Por isto Absalão insiste em que o rei deixe seu irmão ir para a festa de banquetes (2 Sm 13.27). Isto parece indicar que, inicialmente, Davi não o permitiu, mas pela insistência, concordou. Normalmente fazemos isto em relação aos nossos filhos. Não queremos o ônus de dizer não, de confrontar.
Nesta hora, Davi poderia ter dito: “Absalão, todos sabemos que você não gosta de seu irmão. Você está mal intencionado. Não faça isto. Isto será ruim para sua vida, seu futuro político, sua alma”. Entretanto, Davi se cala e consente e seu filho é assassinado num grande escândalo político em Israel. Todos sabiam disto, menos Davi, que deliberadamente ignorou o risco, ou fez de conta que ignorava.
Conclusão
Davi é um homem segundo o coração de Deus, não porque era perfeito. A Bíblia faz questão de revelar sua fragilidade, e isto deve nos ajudar a nos aproximarmos de Deus. Ele sabe como é a natureza humana.
A vida de Davi nos revela o poder do Evangelho, ainda que seja um personagem do Antigo Testamento.
Como Davi temos que lutar com o comodismo e conforto. Não raramente nos aproximamos desta complexa zona de risco. Davi foi tentando na sua indolência. Não somos diferentes.
Da mesma forma temos que lutar contra a luxúria, pensamentos lascivos e tentações sexuais, e isto não é prerrogativa só do sexo masculino. Mais e mais mulheres tem se tornado infiéis, desprezado os votos do casamento, encharcando-se de fantasias e futilidades. Estamos acossados com propagandas que tentam nos vender uma ética perniciosa e pecaminosa.
A vida de Davi nos revela a necessidade que temos de Jesus.
Ele entende, na sua própria dolorida e amarga experiência o poder da graça e do Evangelho.
“Bem aventurado é aquele cujo pecado é perdoado, e cuja iniquidade é coberta” (Sl 32.1). Ele não afirma que é bem aventurado o que não pecou ou não falhou. Nem nega a realidade de que o pecado está presente, mas experimenta a cura real do seu pecado real. Ele sabia e experimentara na sua própria vida o poder da redenção.
É Isto que podemos experimentar quando nos aproximamos da cruz.
Imperfeitamente crentes, podemos ser considerados perfeitos aos olhos de Deus pelos méritos de Jesus. “Justificados, pois, pela fé, temos paz com Deus” (Rm 5.1); “Agora, pois, nenhuma condenação há para aqueles que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Não pessoas perfeitas, mas pessoas restauradas. Declaradas justas, não pelos méritos pessoais, mas pela maravilhosa e completa obra efetuada pelo Cordeiro de Deus, que a si mesmo se entregou por nós para que isto se tornasse a nossa justiça diante de Deus.
[1] Lispector, Clarice - A descoberta do mundo, Rio, Ed. Rocco, 1999, pg 32
[2] Lewis, C. S. – Cristianismo puro e simples. Ed. ABU, 1982, pg 132.
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