domingo, 14 de fevereiro de 2016

Mt 24.45-51 O Deus desaparecido



Uma das questões filosóficas centrais da humanidade é sobre um Deus que parece distante, assim como é comum o sentimento de ser esquecido de Deus. Desde Camus, Sartre a Beckett, vemos sempre este pensamento de que o Senhor da terra abandonou este universo.

Esta preocupação também pode ser encontrada pelos personagens bíblicos. Existem vários textos no livro dos Salmos, repleto de exclamações e lamentos neste sentido:

Salmo 42.3,10: “As minhas lágrimas tem sido o meu alimento dia e noite, enquanto me dizem continuamente: O teu Deus, onde está? (...) digo a Deus, minha rocha: Porque te olvidaste de mim?”. As pessoas viam o sofrimento do salmista e diziam: “Você não crê em Deus? Onde ele está?”

Sl 44.23,24: “Desperta! Por que dormes Senhor? Desperta! Não nos rejeites para sempre! Por que escondes a face e te esqueces de nossa miséria e da nossa opressão?”

Sl 60.10: “Não nos rejeitastes, ó Deus? Tu não sais, ó Deus, com os nossos exércitos”.

Sl 77.7: “Rejeita o Senhor para sempre? Acaso, não torna a ser propício? Cessou perpetuamente a sua graça? Caducou a sua promessa para todas as gerações? Esqueceu-se Deus de ser benigno? Ou, na sua ira, terá ele reprimido as suas misericórdias? Então disse eu: isto é a minha aflição; mudou-se a destra do Altíssimo”.

Até mesmo Jesus, diante de sua agonizante experiência de morte, clama ao Senhor: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparastes?”. Há, portanto, uma grande quantidade de pessoas em diferentes situações fazendo este desabafo diante de Deus, sem ter certeza de que Deus as ouve.

Ao lermos as últimas parábolas de Jesus no Evangelho de Mateus, no conhecido “sermão escatológico” observamos assustados e estarrecidos que o próprio Jesus fala deste tema, e que, em todas as parábolas, este tema está presente como pano de fundo: Deus desapareceu.

Na parábola do bom e do mau servo (Mt 24.45-51) vemos um empresário deixando o trabalho na mão dos funcionários, e as coisas pareciam tão abandonadas que eles acharam que eram donos e começaram a usar os recursos de forma equivocada. Os servos desobedientes descuidadamente começaram a gastar o que não lhes pertencia e a viver de forma dissoluta e despreocupada, comendo e bebendo com ébrios, mas Jesus adverte: “O Senhor virá em dia que não o espera e em hora que não sabe” (Mt 24.50).

Na segunda parábola, das dez virgens, os noivos chegam tão tarde, demoram tanto, que o azeite acaba e as noivas dormem: “E, tardando o noivo, foram todas tomadas de sono e adormeceram” (Mt 25.5). É uma mensagem clara de Jesus de que é possível perdermos a referência de Deus porque o julgamos desaparecido.

Na parábola dos talentos, a terceira, um fazendeiro faz uma longa viagem, e depois de distribuir os talentos, segundo a capacidade de cada um, partiu, deixando os empregados cuidando de sua lavoura, e retorna, “depois de muito tempo, para ajustar as contas com eles” (Mt 25.19).

Em todas estas narrativas contadas por Jesus, o Senhor desaparece, deixando os servos livres para agirem. Ilustram situações em que as pessoas tem que lidar com este Deus que “partiu e desapareceu”, e parece não ter deixado orientação e direção. Assim tem sido a experiência moderna daqueles que deixaram de crer num Deus soberano da terra e passaram a estabelecer suas próprias regras, esquecendo-se de que “o Deus desaparecido” voltará. A ética sem referência, pois, “se não existe Deus, tudo é permitido” (Dostoievski).

“Na verdade, as histórias de Jesus anteciparam a questão central da era atual: ´onde está Deus agora? ´ A resposta de hoje, de pessoas como Nietzsche, Freud, Marx, Camus e Beckett é que o Senhor das terras nos abandonou” (Yancey).

Destes textos, podemos extrair algumas lições:
1.   Tome cuidado com este falso sentimento de um Deus ausente: ele voltará!

Em todas as parábolas, Jesus deixa claro de que, depois de muito tempo, o “Deus desaparecido”, voltará. Esta também foi a mensagem dos anjos, na ascensão de Jesus, enquanto os discípulos assustados via Jesus sendo elevado aos céus: “Varões galileus, porque estás olhando para as alturas? Este Jesus que dentre vos foi assunto ao céu, virá do modo como o viste subir” (At 1.11).
Deus não perdeu o “timing”, embora o julguemos demorado. Portanto, não deixe o seu azeite acabar “Mt 25.8); não crie éticas achando que o Senhor não volta (Mt 24.48-49), não esconda seus talentos (Mt 25.19), porque este Jesus voltará! (At 1.11).

2.   Na parábola das ovelhas e bodes, que descreve o grande julgamento (Mt 25.31-46), somos surpreendidos mais uma vez.

Jesus fala do Deus que desaparece, só retornando para o dia do acerto de contas. Ele novamente se refere a este período intermediário, quando Deus parece ausente. No entanto, na visão de Jesus, Deus não estava oculto, mas assumiu o disfarce mais imprevisível e chocante na pele daqueles que sofrem e são desprezados.

“Quanto te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou preso, e não te servimos? E Jesus nos surpreende ao dizer: “Na verdade, todas as vezes que o deixastes de fazer a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer”. Com isto aprendemos que “se não podemos detectar a presença de Deus no mundo, pode ser que o tenhamos procurado nos lugares errados” (Yancey).

Deus não desapareceu, mas apenas assumiu uma nova forma de se manifestar.
Boa parte das indagações filosóficas e teológicas seriam dissipadas, se, ao invés de fazermos um retorno ao nosso interior, na introspecção mórbida ou depressão egóica, fizéssemos um movimento para fora, em direção ao outro, ao irmão, e ao que sofre. Excesso de auto análise, de reflexão auto centrada e vitimismo, adoece ainda mais, porque entra-se em contato com o cinismo, incredulidade e ceticismo, e o ciclo do desespero silencioso da alma.

Certamente não encontraremos Deus dentro do coração vazio e sem esperança, mas facilmente enxergaremos o “Deus desaparecido”, na face oculta do que sofre, no amor e serviço ao ser humano, que foi atropelado pelas circunstâncias adversas da vida. Ali contemplaremos, assustados, o rosto deste Deus, que se oculta no meio desta caótica situação de dor e angústia humana.

Um milionário rico resolveu visitar Madre Tereza de Calcutá e lhe indagou como funcionava a espiritualidade dela, e ela respondeu: “Somos uma ordem contemplativa. Primeiro meditamos, depois saímos e procuramos Deus disfarçado no pobre”.

3.   Todos os homens de Deus, como lemos no Sl 42, 44, 60 e 77 sabiam que o desaparecimento de Deus, era muito mais uma questão de sentimento, que realidade.

O sentimento da ausência de Deus era real, mas o fato é que ele sabia que sua alma poderia colocar a âncora segura em Deus.

Em outro salmo ele ainda é mais enfático. Depois de vários questionamentos afirma: “Isto é a minha aflição” (Sl 77.10). Por sua alma estar perturbada, os sentimentos se tornaram confusos. Não é assim que fazemos no meio da angustia e da dor? Fazemos leituras erradas, colocamos lentes distorcidas, interpretamos erroneamente os fatos.

A verdade é que Deus sempre se revelou na história: “Contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, dando-vos do céu chuvas e estacoes frutíferas, enchendo o vosso coração de fartura de alegria” (At 14.17).

Que verdade maravilhosa. O Deus desaparecido se revela no rosto do que sofre, se revela na natureza criada (Rm 1.19-21), e por meio do seu cuidado como lemos em Atos.

Por isto podemos declarar a grande verdade do Sl 27.13-14:

Eu sei que virei a bondade do Senhor na terra dos viventes. Espera no Senhor e tem bom ânimo. Espera, pois no Senhor!”

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