domingo, 8 de maio de 2016

2 Rs 4.16,28 Não me enganes!



Introdução

De toda esta narrativa bíblica que se inicia em 4.8 até o vs 36, a frase que me chamou mais a atenção foram estas: “Não mintas a tua serva” (2 Rs 4.16) e “Não me enganes!” (2 Rs 4.28).

Esta mulher é sunamita, isto é, da região de Suném, que ficava próximo ao vale de Jezreel, da mesma região onde encontraram uma jovem bonita chamada Abisague, que foi a companheira de Davi na sua velhice (1 Rs 1.1-4) e se tornou o pivô e a causa da morte de Adonias, que a pediu para si após a morte de seu pai (1 Rs 2.20-25).

Esta mulher possui algumas características marcantes, conforme nos relata o texto sagrado:

A.      Era sensível – Sua sensibilidade e presteza se revelam na forma cuidadosa com que decidi cuidar de Eliseu. Ao vê-lo na sua simplicidade, passando necessidade de tudo, resolveu providenciar comida (2 Rs 4.8) e hospedagem (2 Rs 4.10) para o profeta. Edméia Willians, analisando este texto chama atenção até para o fato dela providenciar uma mesa para que o profeta pudesse colocar seus pergaminhos. Esta sensibilidade se torna evidente no texto lido. É uma benção ter pessoas sensíveis assim no ministério, que se preocupam com a realidade dos missionários e pastores. Que alivio podemos encontrar em famílias amorosas e cuidadosas...

B.      Tinha grande percepção espiritual – Isto é nítido na forma como ela percebe aquele homem. “Vejo que este que passa sempre por nós é santo homem de Deus” (2 Rs 4.9). Ela é capaz de perceber a graça de Deus sobre a vida daquele homem que regularmente passava por ali.

C.      Cultivava a simplicidade – Quando Eliseu resolve fazer alguma coisa em resposta de gratidão pelo seu cuidado, ele lhe pergunta se poderia falar alguma coisa ao rei ou ao comandante do exército de Israel a seu favor. Sua resposta é simples e maravilhosa: “Habito no meio do meu povo”, a NVI traduz da seguinte forma: “Eu tenho casa entre o meu povo”, e a versão The Message ainda é mais incisiva: “Não ha nada. Estou satisfeita e feliz com minha família”. Isto expressa contentamento e simplicidade. Estou feliz com o que tenho, minha vida está completa. Como precisamos aprender isto em nossos dias, quando achamos que precisamos de mais para encontrar sentido, e não somos capazes de celebrar a nossa vida, mesmo as coisas mais simples que passamos.

D.     Demonstrava espirito de abnegação – O próprio profeta a descreve como uma pessoa abnegada. Abnegação significa fazer algo por alguém, mesmo com sacrifício pessoal. Em geral, podemos até ajudar os outros, mas temos muita dificuldade em fazer isto quando implica em sacrifício pessoal.

E.      Objetividade e determinação – Ela sempre vai direto ao ponto. Quando o profeta lhe diz que teria um filho, ela replicou: “Não mintas a tua serva!” (2 Rs 4.16). A tradução The Message afirma: “Não dê falsas esperanças à tua serva”. Quando ela se encontra com o profeta, depois da morte do seu filho ela chega a ser rude: “Não disse eu: Não me enganes?”  (2 Rs 4.28). A NVI traduz: “Não te disse: Não levante as minhas expectativas?”. Ela não tem dificuldade em afirmar sua posição e o que lhe acontece.

a.       Após a morte de seu filho, sai rapidamente em busca de solução. Não fica se lamentando e chorando sobre o seu cadáver.

b.      Não conta ao seu marido sobre a morte do filho quando estranhamente vai ao encontro do profeta (2 Rs 4.23). A pergunta do marido demonstra que seu pensamento religioso o levara a pensar que o homem de Deus era apenas um celebrante de liturgias religiosas nos sábados e luas novas. Ele não podia compreender que a fé traz soluções às situações imediatas e mais angustiantes da vida.

c.       Não perde tempo como jovem Geazi, quando este vem ao seu encontro perguntar-lhe se vai tudo bem. (2 Rs 4.26)

O mais importante, porém, é o conflito que esta mulher enfrenta. Aqui está o ponto central deste texto.
A frase “Não me enganes!” (2 Rs 4.28) traz aqui o eixo central deste texto de crise humana e espiritual. Quando ela vem ao encontro do profeta, depois de chorar por algum tempo sem nada dizer, abraçada aos seus pais, olha para ele e diz: “Pedi eu a meu senhor algum filho? Não te disse eu: Não me enganes?”.
Eliseu percebia que algo muito ruim acontecera à mulher, mas ele não sabe. A atitude do profeta me chama a atenção pela sensibilidade com que ele lida com a dor daquela mãe. Ele respeita à sua dor, espera sem pressionar que ela chore e derrame toda sua dor. Esta psicoterapia do silêncio à dor do outro é uma das coisas mais lindas e salutares da vida.
O livro de Jó nos mostra como o silêncio, em contraste com as respostas imediatas, surgem efeitos completamente distintos. Quando seus amigos o encontraram na sua decadência, eles “sentaram-se com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, pois viam que a dor era muito grande” (Jó 2.13), mas depois resolveram explicar a dor de Jó e fazer teologia em cima de seu sofrimento, e o resultado, como sabemos, foi catastrófico: “Todos vós sois consoladores molestos. Porventura não terão fim essas palavras de vento?” Jó 16.2,3).

Questões para se considerar:
Este texto é paradoxal na sua narrativa. Por que Deus permite que todas estas coisas aconteçam?
Deus dá o filho quando esta mulher não pede, enchendo seu coração de alegria, e tira o que ela ama, sem dar explicações, sem nenhum motivo plausível. O que podemos aprender disto?

Duas realidades, duas respostas:
Primeiro, nem sempre entendemos porque Deus dá, de forma graciosa, coisas que sabemos que não merecemos, e eventualmente que sequer sonhamos. A verdade é que Deus dá bênçãos, quando sequer imaginávamos ter. Deus nos dá honra, recursos, trabalhos, oportunidades.
Fiquei pensando em coisas que Deus me deu sem esperar. Meu encontro com a Sara foi surreal. Estudante com poucos recursos no Seminário de Campinas, São Paulo, chega a Semana Santa e não tenho dinheiro para visitar meus pais que moravam em Gurupi-TO, então recebo um convite de um colega de turma para ir para sua casa, com uma inusitada recomendação: “que não me envolvesse com sua irmã para que isto não prejudicasse nossa amizade”. Como vocês observam, não sou de confiança e fiz o contrário do que ele falou: Isto é o que chamo de “profecia reversa”. A forma como nos encontramos, namoramos e casamos, sempre foi surpreendente.
Deus nos reserva sempre bençãos inusitadas e inesperadas. É sua bondade e graça se manifestando, afinal, não é isto que sempre declaramos: Deus é bom, Deus é muito bom, Deus é bom demais?”
Neste texto presenciamos a inesperada promessa feita a uma mulher, cujo marido já era idoso. Nasce-lhe um filho. Sua alegria transcende à compreensão humana, enchendo aquela casa de alegria. Assim é a graça de Deus. Deus nos dá a salvação em Cristo, sem que nada tenhamos feito para merecer, fruto de sua graça livre e soberana, ele perdoa nossos pecados, nos dá vida eterna. Como entender a gratuidade de seu amor?
Quase nunca somos capazes de entender porque Deus nos dá estas coisas que amamos de forma surpreendente e espontânea.
Certamente não há crise nenhum para nós, em acolher esta maravilhosa expressão de sua bondade e amor. Pelo menos, não me lembro no meu ministério de alguém vindo a mim e reclamando porque Deus o tem abençoado tanto. Já viram alguém assim? Zangado com a bondade e provisão de Deus?

Agora,
O segundo ponto já é outra história.
Se no primeiro consideramos as grandes bençãos que Deus dá e as alegrias inesperadas que recebemos, no segundo ponto, a questão é inversa, e gera grandes questionamentos: Por que Deus retira de nós coisas preciosas, que amamos?
Isto pode se dar numa doença incurável,
            Num trágico acidente de carro,
                        No desemprego que desestrutura a vida familiar
                                   Nas portas que inexplicavelmente se fecham
                                               Na morte de uma pessoa jovem e querida.
Recentemente a irmã da zeladora da igreja, com apenas 40 anos de idade,  sentindo fortes dores de cabeça foi ao hospital. Diagnóstico: tumor maligno no cérebro. Um mês depois estava morta. Os motivos de Deus brotam naturalmente nos questionamentos que fazemos. Por que minha sobrinha de 22 anos morre ao atravessar uma rua de Palmas? Cheia de vida e sonhos?
A história de Jó é um desafio filosófico para a mente humana, permanecendo como um enigma indecifrável. Tentamos fazer relação de causa  & efeito. Isto aconteceu por isto... porque fizeram isto... porque deixaram de fazer... mas estas coisas simplesmente não se fecham. Não dá para equacionar a mente de um Deus misterioso (Is 45.15), que “tem seu caminho na tormenta e na tempestade, e as nuvens são o pó de seus pés” (Na 1.3).
Billy Graham afirmou numa palestra e políticos em Harvard, na qual estava presente, que existem três coisas ainda inexplicáveis para o ser humano: o mistério da morte, o mistério da dor e sofrimento, e o mistério do mal.
Tente explicar o mal quando ele repentinamente acontece?
A sensação pode ser a mesma desta mulher: “Pedi eu a meu senhor algum filho? Não te disse eu: Não me enganes?”. Ela se sente traída, enganada, lesada pelo próprio Deus, por causa do filho querido que lhe fora dado como demonstração de sua especial graça.
Deus tira da mulher aquilo que ela mais ama. Nestas horas, precisamos evocar promessas da sabedoria e misericórdia dele para sobreviver:

èEu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito? Pensamentos de bem e não de mal, para vos dar o fim que desejais”.
è “Quero trazer à memoria o que me pode dar esperança. As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não tem fim, renovam-se cada manhã”.
è O que faço agora, entendê-lo-á depois...

Diante da dor, do mistério e da incompreensibilidade, duas reações são possíveis ao coração:
A.      Questionamento e interpelação – Esbravejamos contra Deus, nos sentimos lesados por ele, ficamos com raiva de Deus, brigamos, arguimos. “Onde está o Senhor?”.

B.      Resignação e submissão – Perplexos, embora submissos, nos rendemos a Deus, confiando no seu caráter e provisão. No meio de cacos e cinzas dizemos: “Deus deu, Deus tirou, bendito seja o nome do Senhor”. Não sei porque Deus fez isto, e está doendo muito, mas sei que ele me ama e cuida de mim. preciso descansar nele.

Quando esta mulher se dirige ao profeta, ele lhe envia seu auxiliar, o jovem Geazi que lhe pergunta: “Vai tudo bem com a senhora, vai bem com seu filho?” Ela responde de forma enviesada: “Tudo bem”, e dirige-se ao profeta sem perder tempo. No entanto, ao chegar ao profeta, ela se desmancha e revela toda sua angústia, se joga ao chão e agarra seus pés (2 Rs 4.27). Não dá para fazer de conta que está tudo bem quando a morte ronda a casa. Não se pode viver em constante estado de negação. Negar a realidade da morte é  mais complicado que enfrentá-la, com todas suas agruras e variáveis.
As coisas não se resolvem porque dizemos que está tudo bem, e não temos nada a fazer, senão cair de joelhos, em choro e dor, mesmo quando os pensamentos encontram dificuldade em se organizar e as palavras demoram a chegar aos lábios, como foi no caso desta mulher.
Depois de ouvido a queixa da mulher, o profeta vai à sua casa, e a misericórdia de Deus se revela. O filho é restaurado e volta a viver. Muitas vezes não é isto que acontece, a cura se processa, o milagre não se realiza e a dor parece ser soberana.

Mas ainda assim, existe um lugar e um momento na história na qual é possível fazer uma correta leitura da dor e do luto: A cruz de Cristo.
A cruz de Cristo revela todo este paradoxo de um Deus que morre, que se entrega, que enfrenta as ambiguidades. Naquele lugar de desprezo, Deus Pai coloca seu Filho no meu lugar. Ele sofre a minha dor e vergonha pelo pecado e culpa que carrego. A dor e a vergonha que ele enfrenta não lhe pertencem, elas são minhas. “Certamente ele levou sobre si nossas dores e as nossas enfermidades levou sobre si” (Is 53.4). Ele é o inocente, eu o culpado. Que mistério tremendo percebo na cruz. Ali meus pressupostos, perplexidades e ambiguidades são revelados na sua forma mais visceral. No entanto, neste mistério da dor/redenção, encontramos o significado de um Deus que ama, mesmo quando ouvimos o Filho dizendo: “Se possível, afasta de mim este cálice”, e isto não acontece.
Não entendo todos os motivos que levaram Paulo a afirmar: “Eu me glorio na cruz de Cristo”, mas posso perceber que ele estava entendendo que neste lugar de tragédia e escárnio,  ainda assim podemos discernir a presença de Deus. No contexto de abandono e desencontro há ponto de convergência na reconciliação da raça humana consigo mesma e com Deus. Quando Jesus apanha o pão, e o agradece a Deus, entregando-o aos discípulos, ele diz: “Isto é o meu corpo partido por vós, fazei isto em memória de mim”. Como Jesus consegue agradecer quando a referência que tem diante de si é a dor e o esmagamento de seu corpo?
Para Jesus, a dor não é mera dor. As coisas encontram sentido e convergência em Deus, mesmo diante das contradições da vida, quando sequer conseguimos organizar as emoções, ao permitir que a perplexidade passe pelo crivo da cruz é possível mesmo sem entender todo o mistério do mal, da morte e da dor, discernir um Deus que se revela no contexto das contradições. Foi ali na cruz, que Deus revelou seu maior amor e se entregou por nós.

Por isto gosto de pensar na frase final deste texto, quando a mulher recebe seu filho restaurado e ouve a afirmação do profeta: “Toma teu filho!”. A versão bíblica The Message expressa-se assim: “Abrace seu filho!”.
Seja qual for a situação, a morte precisa ser enfrentada. Em algum momento, ela precisa ser superada, é necessário que saiamos da morte para o abraço, da distância e frieza para a ternura, e acolher a vida nos braços. A morte precisa dar lugar à vida, e a tristeza à celebração.




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