sábado, 25 de setembro de 2021

Ex 1.15-22 Deus abençoa a mentira?

 



 

 

 

 

Introdução

 

Algumas pessoas já me procuraram para comentar este texto de Êxodo indagando: “Pastor, as parteiras egípcias mentiram e ainda assim Deus as abençoou”. Como explicar isto? Bem... vamos devagar...

 

Naturalmente existem divergências sobre a questão de como a verdade deve ser contada, até mesmo entre cristãos que são considerados ortodoxos e bíblicos. O Hierarquismo ético, por exemplo, afirma que há muitas normas universais, mas nem todas são iguais na sua importância intrínseca. Contar a verdade é bom, mas não a nível de se sacrificar a vida do outro. E que este seria o caso do texto.

 

Apesar de atraente, esta não é a posição que adotamos. Cremos na verdade absoluta, e que mentir é sempre errado. Quando relativizamos a verdade, muitas exceções podem ser criadas por causa de nossa natureza pecaminosa e dai a pouco não saberemos se a verdade é algo importante. Desta forma, sempre se pode contar a verdade sem que a vida tenha que ser tirada, um ponto de vista ético não conflitaria com outro. Outrossim, a verdade deve ser contada, mesmo quando a vida é tirada. Podemos dizer a verdade e assumir o preço, e podemos dizer a verdade confiando na providência divina.

 

O princípio é que “toda verdade é verdade de Deus!” Portanto, quando afirmamos a verdade, estamos nos identificando com aquele que que é o Pai das luzes, como afirma Tiago: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação.”  (Tg 1.17) Onde Deus está, há graça, verdade, clareza. Onde estiver o diabo, teremos penumbra, sombras e mentira. Afinal, ele “jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44), como bem afirmou Jesus.

 

Vivemos numa época de muito relativismo, onde a verdade não é mais aquilo que é, como defendeu Sócrates, mas a verdade é o que você acha que é. Perdemos a noção de absoluto e em certa medida, esta defesa do relativismo se torna ridícula. Quando alguém afirma, “tudo é relativo!”, na verdade, sem perceber, está fazendo uma afirmação absoluta. Se “tudo é relativo”, esta afirmação também não pode ser verdade, já que assumiu que há um absoluto ao afirmar que “tudo é relativo!”

 

Precisamos de fundamentos claros para nossa fé. A fé cristã é conceitual. Ela afirma que determinados princípios não podem ser negociados e transcendem épocas e culturas. Valores, princípios, ética e espiritualidade não são relativos nem alteram o conteúdo da verdade, como bem afirmou Schaeffer: “A velha moralidade nada mais é que a antiga imoralidade”.

 

Diante disto, vamos retornar ao texto lido no início, para não corrermos o risco de usarmos os três argumentos mais ardilosos que um pregador pode cometer: “Ler o texto, sair do texto e nunca mais voltar ao texto”. Vamos lá.

 

Primeiro: Deus não abençoou as parteiras porque mentiram. Deus as abençoou a despeito da mentira, por terem considerado a vida como valor maior.

 

Este é um princípio ético fundamental para os cristãos: Coloque-se a favor da vida.

 

Onde estiver a anti-vida. Seja na causa do aborto, da eutanásia, da violência, seremos contrários. Por isto não usamos a força para defender causas religiosas. O Islamismo não hesita em praticar o Jihad, e matar os ímpios em nome de Deus. O cristianismo não pode defender tal bandeira porque não é isto que aprendemos nas Escrituras. Apesar das cruzadas terem sido praticadas em nome da fé na época medieval, nós não a entendemos como algo correto.

 

O cristão deve ser a favor da vida. Devemos lutar ardorosamente contra toda expressão ou ideologia que defenda a morte. Deus certamente abençoou a vida destas parteiras porque, mesmo vivendo sob forte pressão, consideraram a vida como algo precioso. Em tempos de polarização política e ideológica, precisamos tomar muito cuidado. Existem cristãos quase defendendo a pena de morte aos homossexuais, aos comunistas e aos islâmicos. Alguns defendendo a pena de morte para o STF. Mas o princípio bíblico fundamental que encontraremos neste texto é que as mulheres foram abençoadas porque lutaram a favor da vida.

 

A Bíblia Sagrada é a fonte da orientação cristã e Jesus o modelo ético. Sua ética é humanizadora, tendo o amor em nível de superioridade a todos cumprimentos de responsabilidades e de códigos religiosos. Sua ética é pautada na defesa da dignidade de todos os seres humanos. Jesus não inaugurou um código moral para condenar os impuros e pecadores. Ele acolheu os grupos mais vulneráveis e excluídos da sociedade por esta razão sua ética fundamenta-se no cuidado com a vida.

 

Assim ensinam as Sagradas Escrituras: “Se vocês tivessem compreendido o que significa: misericórdia é o que eu quero, não o sacrifício, não condenariam inocentes” (Mt 12.7). A compaixão é um dos grandes pilares da ética de Jesus. A misericórdia, é uma “reação visceral” ao sofrimento do outro. O cristianismo não pode ser uma religião de acusadores enraivecidos.

 

Deus não abençoou as parteiras porque mentiram. Deus as abençoou por terem considerado a vida como valor maior. Aquelas crianças não passavam de filhos de escravos, que aos olhos dos governantes, despontavam como uma futura ameaça aos interesses econômicos da nação. Mesmo diante de toda esta condição desfavorável, de crianças indefesas e filhos de escravos, as parteiras valorizaram a vida e viram dignidade onde outros viam morte. Elas consideraram a vida como algo pelo qual se deve lutar.


Esta foi a razão de terem sido abençoadas por Deus.

 

Segundo Princípio: Deus abençoou as parteiras, pela coragem que tiveram de estar a favor dos vulneráveis.

 

Por isto, quando as pessoas colocam ênfase na mentira das parteiras, estão perdendo o foco da mensagem. O centro da mensagem não é a mentira, ou a ocultação da informação aos agentes egípcios, mas sim o enfrentamento, a coragem de, destemidamente, saírem em defesa dos fracos. Quantos de nós teríamos coragem de nos colocar a favor de crianças indefesas filhas de escravos, sabendo que isto poderia ser uma sentença de morte?

 

Milhares de cristãos na história já assumiram posições radicais a favor da vida, e muitos morreram por defenderem os fracos, e se colocarem ao lado da justiça. Um dos grandes problemas da Igreja na Alemanha, na época de Hitler, foi o fato da igreja não ter se colocado ao lado daqueles que estavam sendo exterminados, (não eram apenas os judeus), e se silenciarem diante do mal. Anna Arendt, filósofa alemã escreveu um livro muito sério sobre o assunto, falando sobre a “banalização do mal”, mostrando que muitas vezes o mal se apresenta e homens de bem, respeitáveis, não se colocam a favor dos oprimidos e violentados.

 

M. Luther King Jr afirma: “Deus vai julgar não apenas a maldade dos maus, mas o silêncio dos bons”. Será que temos coragem de defender a vida como estas parteiras fizeram?

 

O centro da lição é a intrepidez destas mulheres. A Bíblia, na verdade, faz um elogio quando chama duas, dentre muitas, de Sifrá e Puá, que significam, respectivamente, beleza e esplendor. São títulos que enfatizam seu ato de coragem, muito mais do que nomes próprios.

 

Elas decidiram se colocar ao lado da vida. Elas garantiram a sobrevivência daquelas crianças. A ordem do Faraó foi contra o valor mais elementar , ele ordena que onde a vida surgisse houvesse morte. A ordem para matar vem do caráter anônimo e impessoal do privilégio e do poder, tantas vezes manifesto na história humana.

 

Precisamos de gente que se coloque corajosamente contra o comércio que estimula meninas a se comportarem como mulheres, perdendo sua infância; contra o abuso e a mercantilização das mulheres; contra o mercado que venda crianças à beira de estradas em nosso país; contra o sexo que se banaliza, no qual meninas pré-adolescentes acham normal fazerem nudes, expondo seus corpos como se fosse mercadoria numa geração cada vez mais precocemente erotizada. Faraó triunfa quando isso acontece, o sistema perverso de morte se instala. É necessário que outros se levantem e digam não àquilo que agride a vida. 

 

As parteiras se comprometeram. Isto é coragem. Assumem o risco de perder suas vidas. Ao nosso redor também impera a lei da morte. Faraó está solto. É a força da anti-vida. Jesus disse: “O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo 10.10). É preciso compromisso com a vida, para denunciar, mobilizar, educar e transformar, se colocar ao lado de quem não tem defesa. As parteiras tinham a função de ajudar a surgir a vida e se mantiveram fieis ao seu chamado.

 

3. Deus as abençoou por temerem a Deus mais do que os homens. “E Deus fez bem às parteiras; e o povo aumentou e se tornou muito forte. E, porque as parteiras temeram a Deus, ele lhes constituiu família” (Ex 1.21)

 

Elas temeram a Deus, não a Faraó. Esta é a fonte da benção. Deus não apenas as protegeu, mas as abençoou, dando-lhes família. Comentaristas acreditam que as parteiras eram mulheres que não tinham casado, ou que eram estéreis, e agora Deus resolveu dar-lhes família.

 

A coragem dessas mulheres é semelhante a fé dos amigos de Daniel que a beira da fornalha não mostram temor “Se formos atirados na fornalha em chamas, o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará das suas mãos, ó rei. Mas, se ele não nos livrar, saiba, ó rei, que não prestaremos culto aos seus deuses nem adoraremos a imagem de ouro que mandaste erguer”. (Dn 3.17,18).

 

O texto afirma que o motivo de sua arriscada decisão foi o fato de que elas temiam a Deus. O temor a Deus humaniza e promove a vida. Toda a sociedade que se afasta de Deus, desvaloriza a vida humana.

 

É mais importante obedecer a Deus que aos homens. “Todavia, as parteiras temeram a Deus e não obedeceram às ordens do rei do Egito; deixaram viver os meninos.” (Ex 1.17). Quando um sistema pede para atentar contra a vida, a única resposta correta é a desobediência. Sifrá e Puá sabiam disso, elas tinham plena certeza que embora a ordem viesse de faraó ele não era Deus e sua ordem não provinha de Deus, e por isto deveria ser desobedecida. Schaeffer afirma que, em algumas ocasiões, quando as autoridades conspiram contra a vida e as verdades essenciais do Evangelho, não apenas podemos, mas devemos, desobedecer as autoridade, como fizeram os apóstolos ao declarar às autoridades judaicas: "Julgai se é justo, diante de Deus, ouvir-vos antes, a vós outros do que a Deus" (At 4.19). A desobediência civil deve acontecer todas as vezes que as autoridades ultrapassarem a Linha Limite, se interpondo contra a ordem de Deus.  

 

O que nos dá força e ousadia é o temor do Senhor. Quando não tememos a Deus somos capazes de fazer qualquer coisa para livrar a pele, mas quando temos o seu temor no coração, não negociamos convicções e valores. A falta de temor nos leva a quebrar a ética cristã, desrespeitar os valores do evangelho e nos perdermos na nossa vã tentativa de salvar a vida.

 

Jesus afirmou: “Não temais aqueles que podem matar o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo” (Mt 10.28). A obediência, a coragem e o cuidado dessas mulheres surpreendem. O temor do Senhor é fonte de sua coragem e enfrentamento.

 

 

 

Conclusão

 

Três observações finais:

 

1.     Tire o olho da questão periférica do texto que é a mentira das parteiras. Deus não abençoou as parteiras porque mentiram. Deus as abençoou a despeito da mentira.

 

É assim a graça de Deus para conosco. Deus não nos abençoa porque fazemos tudo certo, Deus nos abençoa apesar de cometermos muitos erros e eventualmente fazermos tudo errado. É a graça de Deus triunfando sobre o juízo.


Se Deus colocasse seus olhos sobre seus erros, você também jamais receberia bençãos. "Se contares nossos pecados, quem subsistirá?"

 

2.     No processo de abençoar outros, não raramente nos sentimos cansados e até mesmo perguntamos se vale a pena todo esforço.

 

Quem nunca se perguntou, num processo de vitimização: “Quem cuida de mim, quando eu cuido dos outros?” Você já se sentiu assim? Muitas vezes indagamos quando seremos cuidados? Cuidamos dos filhos, cuidamos dos amigos, cuidamos do trabalho, da casa, da igreja, da família, cuidamos, cuidamos e cuidamos…quem cuida de nós?

 

Este texto revela que quando cuidamos dos outros, Deus cuida de nós. Deus abençoa aqueles que o temem mais do que aos homens. Deus abençoa aqueles que se dispõem a enfrentar as ameaças dos homens porque valorizam aquilo que é essencial.

 

Enquanto Sifrá e Puá estavam ocupadas trazendo ao mundo os filhos de outras mulheres, auxiliando o crescimento de suas famílias, livrando os recém-nascidos da morte e evitando que suas mães chorassem sua perda, Deus estava o tempo todo cuidando delas.

 

O rei tinha todos os motivos para matá-las, caso fossem descobertas, mas isto não aconteceu. Deus lhes preservou a vida e permitiu que tivessem suas próprias famílias. Deus as presenteou com aquilo que certamente elas mais desejavam. Não há dúvidas de que é no cuidado com o outro e na demonstração de amor ao próximo que Deus cuida de nós.

 

3.     Olhe para Jesus. A forma como Jesus valorizou a vida deve nos motivar. Mesmo a sua morte conduz à vida, já pararam para refletir sobre isto?

 

Ele vos deu vida estando vós mortos em vossos delitos e pecados”. A vida jorra da cruz. Este é o paradoxo do evangelho. Sua morte não é mera morte, mas aponta para a ressurreição, para a redenção, para a justificação, para todos os processos que fazem surgir a vida. Não é sem razão que Stanley Jones, conhecido missionário metodista afirme que “a palavra central na Bíblia é vida”.

 

A essência do evangelho é o resgate da vida. “Ele vos ressuscitou e vos fez assentar em lugares celestiais”. A cruz, o lugar mais anti-vida, transforma-se no lugar mais transformador e poderoso. Ali se revela a misericórdia e a benção de Deus. Por isto Jesus afirma: “Eu vim para que tenham vida, e vida em abundância.”

 

Se você está sentindo sua vida se esvair, sua esperança se dissipar, está pensando em dar cabo de sua própria vida, considerando que não vale mais a pena viver, considere o fato de que Cristo, o autor da vida, é capaz de livrar sua alma da morte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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