segunda-feira, 2 de junho de 2014

Amor em progressão em Cantares





Introdução:

Disse o poeta secular: “Por ser exato, o amor não cabe em si, por ser encantado, o amor revela-se". O poeta sacro afirma:  “As muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios afogá-lo, ainda que alguém desse todos os bens da sua casa pelo amor, seria de todo desprezado”.

O livro de Cantares celebra o relacionamento de um homem com uma mulher. Existem algumas linhas de interpretações em torno do texto, mas particularmente adoto a linha de Heinrich Ewald (1826) que trabalha com a hipótese de três personagens centrais, Salomão, Sulamita, e o namorado dela, que é pastor de ovelhas, fazendo uma triangulação complexa.
Para Ewald, Salomão compra a sulamita, pagando o dote de mil peças de prata por ela (Ct 8.12), mas ela era enamorada de um rapaz simples da aldeia que era pastor de ovelhas, e as filhas de Jerusalém tentam convencer a menina tentando demonstrar que era interessante se entregar para o rei, que era uma pessoa importante. Daí surgirem os refrões "Conjuro-vos, oh filhas de Jerusalém, que não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira" (Ct 2.7; 3.5; 5.8; 8.4), que surgem 4 vezes, dividindo o drama em 5 atos. Cantares possui uma unidade, composta de diálogos em progressão, que eventualmente são ríspidos entre a Sulamita, a menina negra que encontra-se no harém (Ct 1.5,6), e as outras moças que cuidavam da preparação das mulheres que seriam possuída pelo rei Salomão. Este drama teria como tema principal a fidelidade do verdadeiro amor, e uma critica de fundo a Salomão pela forma como levianamente se relacionou com as mulheres.
Como a discussão é ampla e longa, quero me ater apenas a uma idéia que podemos encontrar em Cantares. A de que ele fala de um amor que caminha para uma progressão e maturidade.

1ª fase do amor: “O meu amado é meu e eu sou dele” – (Ct 2.16)

Este me parece um amor condicional, imaturo (ação/reação): Porque ele é meu, me torno dele. É o amor de troca, da reciprocidade. Este amor é perigoso, por que ele caminha numa linha de raciocínio onde a base é se entregar até onde o outro se entrega. Esta relação é arriscada, porque amor não é um contrato social, uma relação de barganha, do tipo “Eu entro com 50% e você com 50%”, mas o amor verdadeiro tem a dinâmica de entrar com 100%, isto é, por inteiro. “O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca” (Antoine de Saint-Exupèry). “O amor, tal como existe na sociedade, não passa da troca de duas fantasias e do contato de duas epidermes” (Sébastien-Roch Chamfort). Todas as vezes que esperamos um favor em troca, um agradecimento, um elogio ou uma recompensa começa a se formar em nós um palco para muitas frustrações. O verdadeiro amor começa quando nada se espera em troca.
O poeta Manuel Bandeira assim declara:
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor_
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

2ª Fase: “Eu sou do meu amado e o meu amado é meu” (Ct 6.3)

Se no primeiro momento afirma-se “O meu amado é meu e eu sou dele” – (Ct 2.16) aqui existe uma entrega por antecipação. Eu sou dele, antes de mais nada, e estou feliz porque ele é meu. Isto revela (vulnerabilidade). Não tenho medo de admitir que amo, e tomo a iniciativa de declarar-me. Assumo o que sinto, arrisco-me.
É este o amor de Deus. João afirma: “Nós amamos, porque ele nos amou primeiro” (1 Jo 4.19). Nisto consiste o amor: não em que tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1 Jo 4.10). Jesus morreu por nós, o Pai o entregou por nós. Na nossa vida auto centrada e narcisista, não havia disposição para amá-lo, mas ele nos amou de forma unilateral e morreu por nós. Paulo afirma: “Mas Deus prova o seu próprio para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Não havia virtude em nós, apenas vicio; não havia mérito, mas ofensa. No entanto Deus, voluntariamente se entregou por nós. É o amor que se antecipa, faz doação de si mesmo, não está dependendo do outro para amar, mas ama de antemão e se entrega. “Casamento é uma troca de várias razões, para dar certo temos que fazer concessões, seguimos fazendo tantas concessões que um dia não sabemos se ainda respiramos as mesmas idéias ou se apenas fingimos” (Jeocaz Lee-Meddi). “O Amor não pede nada em troca, pede somente a oportunidade de nascer dentro de cada um de nós” (Edson Valdemar Blinke).No amor não há troca, não há posse, não há jogo. O amor é doação, ou seja, você dá pelo simples desejo de querer bem, sem nada esperar em troca” (Rodrigo Masi)

3ª Fase: “Eu sou do meu amado e ele tem saudade de mim”(Ct 7.10)

Nesta fase encontramos o amor que já construiu história com o outro. “Saudade é melhor do que caminhar vazio” (Peninha). Este tipo de amor já tem experiência, caminhada a dois e memória. Saudade tem a ver com história. Já existe uma caminhada acumulada e construída a dois que gera esta saudade. “O tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo...” (Mário Quintana). “A saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar” (Rubem Alves). A saudade revela a maturidade que faz projetar no presente aquilo que, sendo belo, não se perdeu. Na medida em que envelhecemos e caminhamos juntos, nos tornamos testemunhas da história do outro. Surge uma cumplicidade, no melhor sentido da Palavra. Portanto, esta fase revela esta dimensão do aprofundamento. Não dá para fazer projetos individuais, não somos dois, seres distanciados, mas pessoas que se amam e que constroem juntas porque viver sozinho e fazer sozinho já não é ser pleno. Já permitimos que o outro penetrasse nos arquivos de nossa memória, e “hackeasse” o software.

Conclusão:

Em todas estas etapas, vemos progressividade. O amor vai amadurecendo. Perguntei a uma experiente psicóloga se ela amava seu marido, com quem possui uma relação de 50 anos, se ela o amava da mesma forma, e ela me respondeu: “Não da mesma forma, mas melhor”. O amor passa por etapas e elabora, se constrói, faz movimentos. É assim o caminho de um homem com uma mulher.

Um comentário:

  1. Eu adoraria viver uma história assim, mas ao longo dos meus 20 anos e com todo cuidado que eu tive pra escollher alguém e minha dedicação a essas pessoas, apenas encontrei pessoas pra caminhar meia milha comigo e me deixar no início do caminho.
    Será que nunca vou viver uma historia de amor real?

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