terça-feira, 23 de outubro de 2012

Ec 1.1-12 Vaidades


Introdução:

Eclesiastes é um livro de crise, e por isto destoa de boa parte da Bíblia. Alguém afirmou que “São vozes de combinação de uma decadente religião com uma decadente filosofia”.

O nome Eclesiastes é extraído da septuaginta da palavra “koheleth”, dando a entender que o autor é professor ou pregador. O ofício do que fala na Assembléia. Em grande parte autobiográfico. Ele se chama de “o filho de Davi”, embora o pregador não afirme que ele seja Salomão, mas todas as evidencias parecem demonstrar que ele de fato foi seu autor. Eclesiastes afirma que “tudo é vaidade”. Que não é possível encontrar nenhum referencial que possa trazer esperança. Por isto, Heine o chama de “Cântico dos cânticos de pessimismo”.

A palavra “vaidade” evoca a idéia de algo fútil, ou de uma pessoa que gosta de coisas sofisticadas, relógios caros, adereços atraentes, e é por isto chamada de vaidosa, mas a palavra no hebraico, Hebhel), deve ser traduzida por “vapor”, “brisa”;  indica a esterilidade, a ausência de objetivos, o vazio, a transitoriedade. A NVI em inglês preferiu traduzir por “meaningless”. Literalmente significa “bolha de sabão”. Esta palavra é o centro deste livro, sendo usada nada menos que 31 vezes. Ele conclui que todas as coisas, alegres ou sombrias, são somente vapor, pairando no corredor do tempo. O livro é uma rede de meditações acerca da vida, seus significados, valores e destinos.

A natureza é um sistema fechado, volvendo e revolvendo-se em torno de si mesma, sem uma penetração do sagrado, de algo de fora que lhe rompa o vazio. Hebhel “bolha de sabão” aponta para o fato de que a vida brilha, seu brilho traz fascínio por breve tempo, e logo desaparece. Heine classifica este livro como “a canção do ceticismo”- Das hohelied der skepsis.

Este livro possui uma profunda similaridade com um livro traduzido como “a insustentável leveza do Ser” de Milan Kundera, onde o autor inicia sua reflexão dizendo: “sempre me fascinou o conceito de eterno retorno do qual Nietzsche afirma”.

Esta vaidade (vazio) existencial nos coloca numa linha de desespero: Este vazio é desgastante e aflitivo, gera profundo desespero e desilusão. Entramos na área em que não há esperança. Albert Camus, filósofo existencialista no seu clássico “O Mito de sísifo” afirma: “Se há um problema filosófico verdadeiramente sério é o suicídio”.

Eclesiastes nos apresenta o vazio de todas as coisas:

1.      O vazio de todo esforço após a sabedoria – 1.12-18

2.      O vazio da alegria – 2.1-12

3.      O vazio do conhecimento – 2.12-17

4.      O vazio do trabalho – 2.18-23

 

Esta leitura desemboca em três visões:

 

1.      O vazio da vida – O mito de sísifo na mitologia grega fala de um homem, condenado por Zeus, que é eternamente condenado a carregar uma pedra para o alto de uma montanha, e quando ele está quase alcançando, Zeus com um dedo a faz desmoronar, obrigando o homem a recomeçar esta árdua tarefa, renovando indefinidamente seu ato sem sentido.

Kundera diz: “O mito do eterno retorno, nos diz, por negação, que a vida é sem peso e que está morta desde hoje, e que por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror, este esplendor - não tem o menor sentido”.

Do ponto de vista da história, esta é a visão cíclica da velha disputa entre a teoria platônica x cristã. Esta é a visão que Platão preconiza. A história não tem continuidade, ela anda em círculos - não tem objetivos. O autor de Eclesiastes enxerga a vida neste prisma: “O que foi é o que há de ser, e o que se fez, isto se tornará a fazer, nada há pois, novo, debaixo do sol” (Ec 1.9), ou como diz a Bíblia Viva: “A história sempre se repete”.

Os dois livros mais negados das Escrituras são o livro de Gênesis e Apocalipse, porque revelam a consistência da história na perspectiva de um Deus que se revela. A história humanista perdeu a referência do Sagrado, e a interpreta como algo cíclico, num interminável ir-e-vir, sem conexão alguma com algo que seja concreto. Tudo é vazio. Tudo é vaidade.

Veja como este relato de Bernardo Élis[1] reflete este dilema do vazio.

Quando percebeu que a morte o espreitava mais de perto do que nunca, se tornou contundente: “Eu sempre pensei em suicídio. E acho que a vida é uma besteira”. Ao fato de não ser possível compreender como alguém tão produtivo como ele podia ter a idéia de morte tão constante em sua vida, Bernardo se tornava mais frio ainda na resposta: “É porque você é colocado contra a parede: ou você morre ou você vive. Há muito preconceito contra a morte, sendo que a morte para mim não é nada. São os minerais que estão organizados em forma orgânica e vital que voltam à natureza. Mas é difícil acabar com a vida. O ser humano é muito duro, é difícil de morrer”. Fonte, O popular, dia 01/12/97, por ocasião de sua morte. Escritor Goiano, autor de “Ermos e Gerais” década de 70, “Veranico de Janeiro”,” a enxada”e  “O Tronco”.

Um dia, Élis confessou a vontade de morrer. Revelou que o pensamento suicida o acompanhou ao longo da vida ao ponto de fazê-lo manter, quando jovem, um frasco de veneno no criado-mudo, ao lado da cama. Não queria se enforcar e ficar com aspecto feio depois de morto. A cena da confissão não era tenebrosa, nem o momento era de dor. Parecia mais obra ficcional surgida na mente fértil de um homem cujo ofício era criar imagens e histórias com as palavras. A confissão se deu durante uma entrevista descontraída à jornalista Britz Lopes, na biblioteca da casa de Bernardo, no Jardim América, em 1992. Ele confessou seu desejo de morte enquanto mostrava livros, correspondências e escritos inéditos à repórter. A revelação, provavelmente, foi a mais impressionante do escrito. “A velhice é um palavrão. Você fica impossibilitado de tudo. É uma coisa idiota, sobretudo esperar sentado que a morte chegue, é muito difícil...

 

2.      Monotonia – O autor de Eclesiastes narra a vida como uma grande chatice. Nada é novo!  Todo esforço da natureza ou do homem é realizar algo do que já havia sido realizado.

A vida é uma eterna mesmice: “ Geração vai, geração vem, mas a terra permanece para sempre” (Ec 1.4). Do vs. 5 em diante, a história é revelada com algo caótica e sem propósito: “Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre. Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo. O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr. Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir. O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Não! Já foi nos séculos que foram antes de nós” (Ec 1.5-10).

 

Existe um interminável movimento de repetição que inclui:

Sol:  nascendo e se pondo todos os dias.

Vento, que gira e se movimenta sem direção e propósito.

A natureza no seu movimento cíclico e interminável: Rios - mar - rio

 

Ocorre aqui uma simetria hebraica. Há uma nota de desencanto nestes eventos naturais. O que poderia se tornar fascinante, agora se tornam uma chatice, porque não há um sentido mais profundo em tudo que acontece. O pregador não consegue perceber a mão de Deus nestes movimentos, nem é capaz de perceber algo que dê sentido a tudo o que acontece.

 

3.      Canseira – O resultado disto é canseira: “Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir” (Ec 1.8).

Nietzsche afirma: “A idéia do eterno retorno é o mais pesados dos fardos”. A questão filosófica se resume à seguinte síntese: “Se a vida é uma droga, tudo que advém dela é angustiante: “O que é já foi, e o que há de ser também já foi” (Ec 3.15). O trabalho é fadiga e canseira (Ec 3.9 e 2.20). Muito estudar é enfado da carne (Ec 12.12). A vida é náusea (Sartre) e a pergunta mais relevante é a seguinte: “Que proveito tem?... (Ec 2.22), afinal, tudo é “correr atrás do vento” (Ec 2.11).

 

O que levou Salomão a perceber a vida de forma tão pessimista?

 

1.      O afastamento de Deus: Salomão conhecia profundamente a Deus, e desfrutou da rica companhia de Deus no início do seu reinado, mas posteriormente veio a apartar-se dele. Conheceu muitas mulheres estrangeiras, das quais o Senhor havia dito para o povo de Deus não se envolver com elas, e começou a seguir outros deuses e o seu coração deixou ser de todo fiel a Deus. Não perseverou em seguir ao Senhor e seguiu a Astarote, deusa dos sidônios, e a Milcom, abominação dos amonitas (1 Rs 11.5), chegando ao cúmulo de edificar santuário a Camos (deus dos moabitas) e a Moloque (Deus dos amonitas), que exigia sacrifícios de crianças (1 Rs 11.8).

Sem o Deus verdadeiro, o mundo se torna lúgubre e vazio. Salomão começou a experimentar este vazio na alma, e este texto relato a dura experiência de viver longe do Senhor. A verdade é que só existe uma alternativa fora da esperança: O desespero.

Jean Paul Sartre, filósofo existencialista, entendeu corretamente esta questão ao dizer: “A vida é um absurdo, Deus dá ordem ao absurdo, mas Deus não existe”, noutro lugar diz: “Nenhum ponto finito pode ter significado, se não tiver relação com um ponto infinito”. Através do profeta Jeremias, Deus mostra ao seu povo as conseqüências do afastamento: “Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas” (Jr 2.13). O homem sem Deus procura sentido em coisas que são incapazes de saciar sua sede. Assim aconteceu com Salomão.

 

2. Uma equivocada visão da história – Salomão encontra dificuldade em ver que a história tem uma perspectiva ascensional, não cíclica, por isto afirma: “O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol “ (Ec 1.9).

Salomão, longe de Deus, perde a visão do propósito de todas as coisas é vazio, e vê que o esforço humano é inútil. Gerações humanas vão e vem; os dias e as noites se sucedem, num ciclo interminável de rotina; os fatos da natureza são repetitivos e as estradas são as mesmas. Esta também é a base de toda leitura secularista da vida, tudo é mera repetição. O pregador demonstra familiaridade com as leis da natureza, mas as vê como limitadores  da experiência humana.

Quando se é incapaz de enxergar o dedo de Deus para dar sentido a este absurdo histórico, a vida passa a ser canseira “tais que ninguém as pode exprimir” (Ec 1.8).

O uso freqüente da frase “debaixo do sol”, demonstra que o pregador está olhando a vida  numa perspectiva existencial. O resultado é um só: canseira e enfado. O trabalho torna-se angustiante, a sabedoria é um peso, a vida um absoluto vazio, um angustiante “já te vi”. Tudo é monotonia, mesmice e rotina. A história está em movimento, saindo do nada para lugar algum. “O que foi é o que há de ser, e o que se fez, isto se tornará a fazer”.

A visão de Eclesiastes possui o mesmo fundamento platônico. Tudo na história é cíclico! A visão da história nas Escrituras Sagradas possui uma perspectiva ascensional. A história cristã não vê a vida em departamentos estanques, mas a percebe no seu todo. Por isto ela possui princípio, meio e fim.

Para os existencialistas a visão é fragmentada. Percebe o aqui e agora, mas não identifica o sentido da vida (origem), não vê Deus, nem razão em nascer, e não vislumbra esperança (escatologia), a vida está sendo conduzida num arrastão existencial e somos levados como folhas. Deus não é perceptível na história e nem mesmo age nela. Os fatos são desordenados e mera sucessão de acasos. Afinal, “tudo depende do tempo e do acaso”. (Ec 9.11).

A vida é “mesmice” vs. 4. Esta simetria hebraica pode ser considerada com uma poesia de Chico Buarque que diz:

“Roda moinho, roda gigante,

roda moinho, roda pilão,

o tempo rodou num instante, nas rodas do meu coração”

Onde está o dedo de Deus?

 

Vinicius assim se expressa na sua belíssima música “Aquarela”:

“O futuro é uma astronave, que devemos pilotar

não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar,

sem pedir licença,muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar,

e no fim de tudo, descolorirá”.

 

3.  A incapacidade de perceber um Deus pessoal regendo a vida. “Pois que tem o homem de todo o seu trabalho e da fadiga do seu coração, em que ele anda trabalhando debaixo do sol? Porque todos os seus dias são dores, e o seu trabalho, desgosto; até de noite não descansa o seu coração; também isto é vaidade” (Ec 2.22,23). Esta é uma das grandes questões humanas: Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho?  Você faz, produz, realiza, se torna respeitado para descobrir no final que tudo isto é “ouro de tolo” (Raul Seixas).

No hebraico, existem vários nomes para Deus, cada um deles expressa atributos e o caráter de Deus. Por exemplo ”El Shaddai significa “Deus Poderoso”. Três termos são comuns para considerarmos os nomes de Deus: “El”; “Elohim” e “Yahweh”.

·        “El” significa Deus num sentido mais lato, verdadeiro ou falso, ou mesmo uma imagem que é tratada como Deus, como no caso de Gênesis 35.2;

·        “Elohim”, embora seja o plural da palavra “elohá”, pode ser tratado como singular, e significa a grande e suprema divindade que nossa visão traduz por “Deus”. Transmite a noção de tudo quanto pertence o conceito de “deidade”.

·        “Yahweh”, no hebraico, estritamente falando é único nome de Deus, era o Deus pessoal, o Deus dos patriarcas: Abraão, Isaque e Jacó. Ao contrário de Elohim, que apresenta uma dimensão cósmica, mas nunca o Deus dos patriarcas. O livro de

 

Eclesiastes é um livro que não emprega a palavra “Jeová”,  apenas “Elohim”, que é um Deus criador (deísmo). O nome “Jeová”, Deus do Pacto, não é aqui empregado. O Deus que é apresentado “impõe” tarefas e atividades à humanidade (Ec 1.13); exige prestação de contas (Ec 11.9), e você deve temê-lo porque é “dever” de todo homem (Ec 12.13). O trabalho é o instrumento mais comum de Deus para os afligir (Ec 1.13, 3.10). Em contrapartida é também um Deus que dá condições ao homem para sua alegria (Ec 2.24): comer, beber, e desfrutar o bem de todo o seu trabalho é um dom de Deus (Ec 3.13); estar atento às obras de Deus é importante porque ninguém pode “endireitar” o que ele torceu”(Ec 7.13). Apesar desta afirmação, Deus não é visto como a causa do desatino da humanidade, pois Deus fez o homem reto e ele se meteu em muitas astúcias (Ec 7.29); a despeito de todo emaranhado de contradições que se perpetuam na existência humana, ele tem a impressão de que Deus abençoa os que fazem o bem, ao passo que o perverso será como sombra por não temer a Deus (Ec 8.12,13).

O tema central de Eclesiastes é “vaidade”, referindo-se não à presunção, mas ao vazio de toda uma vida sem Deus. Vaidade significa “futilidade”.  Nascer, lutar, viver, sofrer, experimentar alguma alegria transitória que é nada à vista da eternidade, deixar tudo e morrer. Por isto é uma “bolha de sabão”

 

Conclusão:

O livro de Eclesiastes termina mostrando o fim de todo o problema: “De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem” (12:13). A síntese e essência da humanidade é o temor a Deus. Se existe algo que pode dar sentido, este algo é Deus. Embora o pregador não tenha uma perspectiva tão boa de Deus, pois o vê como alguém que julga e impõe trabalhos, afirma corretamente que a razão, o logos, a síntese da existência humana está em alguém maior do que nós: Deus. Pode-se buscar as mais criativas e diferentes soluções, mas os problemas existenciais mais profundos não estarão sarados. Só em Deus a vida pode ser encontrada.

Jesus afirmou: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo10.10). O mito de sísifo não é conclusivo. A vida pode ter outras rotas. As notas do Evangelho são vivas, cheias de vida e esperança. Ás pessoas desesperançadas Jesus sempre se aproximava com uma resposta específica, como podemos ver no Evangelho de João:

·        Para os religiosos – Jesus fala do novo nascimento: nova vibração do ser, um novo ser criado por Deus.

·        Para os sedentos de afeto, atenção, sentido, Jesus afirma: “Se tu soubesses quem é o que te pede, tu lhe pedirias e ele te daria água viva”.

·        Ao cansados, prostrados e desesperançados convida a levantar-se, tomar seu leito e andar.

·        À multidão faminta, Jesus faz milagre e alimenta, multiplicando os pães.

·        Aos pecaminosos afirma: “Nem eu te condeno, vai e não peques mais

Sem Deus a vida é caótica. Quando o excluímos a história se torna absurda, afinal, se tudo termina num túmulo frio, somos os mais infelizes dos homens.

 



[1] Bernardo Elis. Bernardo Élis Fleury de Campos Curado, nascido em Corumbá de Goiás, no dia 15 de novembro de 1915, foi o primeiro goiano a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL) foi considerado pelos estudiosos da literatura como um dos introdutores da fala caipira no conto brasileiro.

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