segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Col 1.13-23 A pessoa e a obra de Cristo








Introdução

As grandes controvérsias teológicas iniciais da igreja de Cristo se deram em torno da sua verdadeira identidade. Nem a soteriologia, nem a eclesiologia, nem mesmo a formação do cânon consumiram a discussão do povo de Deus tanto quanto à pergunta essencial: Quem é Jesus?

1.     Docetismo: . Sua humanidade era apenas aparente (controvérsia ariana).  Jesus, apenas parecia ter se encarnado, mas Deus, de fato, não se encarnara.

Tillich comentando o pensamento dos docéticos afirmava que “Jesus teria tomado um estranho corpo, que somente parece ser corpo, mas ele não torna-se corpo". Uma união completa seria loucura. "Era inconcebível que o divino Cristo, viesse em carne". Seu corpo tinha aspecto, ou dokesis.

João rejeitava veementemente este grupo afirmando que se alguém procurasse um dos membros da igreja com tal doutrina, não deveria nem mesmo ser aceito em casa (2 Jo 10), João afirma: “Muitos enganadores tem saído mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anti-cristo.” (2 Jo 7).

O docetismo sustentava a idéia de um Cristo aparente (do grego Dokein:  Parecer, simular, dar a impressão); não viera na carne, mas sim no aspecto de um fantasma.

2.     Gnosticismo, porque eram platônicos não acreditavam que Deus, poderia se submeter ao vexame de se tornar humano, pois a grande conquista tratava-se de se afastar da carne. A matéria era o problema humano. Como então Deus se encarnaria?

Como poderia o Pai Ingênito, o Deus inacessível, contaminar-se com a carne vil? Sendo o corpo a sede do mal e oposto a tudo o que era divino, como se poderia falar de ressurreição? O logos divino, não poderia se limitar à fragilidade da corporeidade.

Parece que esta foi uma das razões de João ser tão enfático sobre a encarnação de Cristo. “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam com respeito ao verbo da vida” (1 Jo 1.1). Jesus era humano, podia ser tocado, andou de fato entre os homens. Não era um ser desencarnado.

"O gnóstico deverá rejeitar a encarnação real de Jesus Cristo, afirmando que este era apenas fantasmagórico ou aparente" (Rubio). Para Tillich A posição do gnosticismo sobre Jesus tornou-se uma grande tentação para o Cristianismo. "Cristo permaneceu no centro da história como aquele que traz a salvação, mas foi  posto dentro de uma estrutura da visão dualística do Helenismo".

O apóstolo João afirma: "Nisto reconheceis o Espírito de Deus: Todo espírito que confessa que Jesus veio em carne é de Deus, e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de  Deus; pelo contrário, este é o Espírito do anti-cristo" 1 Jo 4.2,3.

  
3.    Arianismo. Este afirmava que Jesus era homem, mas não era Deus. Era um profeta especial, alguém superior, uma espécie de semideus, mas não era Deus. Portanto, não poderia ser adorado.

Este pensamento ainda hoje tem enorme influencia sobre um uma seita religiosa que se considera cristã, os Testemunhas de Jeová. Eles não reconhecem nem aceitam a Trindade: “Três pessoas subsistindo em forma de uma só!”. Para Ário, o Filho teve um começo, sendo “criatura” de Deus, assim, a divindade do Pai é maior que a do Filho.

4.     Ebionismo, Jesus seria simplesmente um ser humano, inspirado de forma especial.

5.     Cerintianismo - O Espírito de Cristo não teria habitado verdadeiramente no Jesus humano senão depois do batismo, deixando-o após a sua morte na cruz. A divindade não poderia morrer. Para o Cerintianismo, tal conceito fere a essência do que é divino, sendo algo absolutamente impossível de acontecer.  Afirmava ainda que "o mundo fora criado pelos anjos e que Jesus fora criado da semente de José, sendo meramente humano, sem divindade".

Todos estes pensamentos espúrios, embora não tivessem grande projeção no núcleo central da igreja, andavam constantemente ao redor. Então, um grande concilio foi estabelecido no ano 325 d.C., convocando todos os 1800 bispos de diversas regiões, para discutirem o assunto. As viagens eram complicadas e muitos bispos estavam distantes geograficamente ou eram idosos, por isto, apenas 318 apareceram, mas foi um marco importante para estabelecer, de uma vez por todas, a compreensão da natureza de Cristo.

Outro enclave importante foi o Concílio de Calcedônia (431 d.C.). Onde se retira toda especulação e confusão, e declara que Jesus tinha duas naturezas, a humana e a divina, cada uma completa e inteira, não misturadas embora não separadas e que agem em uma única pessoa. Assim é relatada a definição de Calcedônia: “Portanto, seguindo os santos padres, todos nós, em acordo, ensinamos os homens a conhecer um e o mesmo filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, completo em Deus Pai, e completo em ser humano, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, consistindo também de alma e corpo, de uma substância (omoousios) com o Pai".

O Concílio de Calcedônia estabeleceu que Jesus possuía uma natureza teândrica (os termos gregos não correspondem bem aos nossos), mas equivalia a dizer que possuía duas naturezas: Uma divina, outra humana. Estas duas naturezas não estavam separadas (Não são dois seres acidentalmente unidos), nem misturados na unidade pessoal. Jesus é consubstancial ao Pai quanto à divindade, é consubstancial conosco quanto a humanidade. E se deveria reconhecer em um só, duas naturezas sem confusão, mudança, divisão ou separação, concorrendo em uma única pessoa, e em uma hipóstase (normalmente evita-se traduzir esta palavra dada a profundidade que ela encerra, mas que equivale as palavras subsistência ou substância).

Apesar desta Introdução longa, julguei oportuno dar aos leitores, que tiverem paciência de ler, uma abordagem um pouco mais profunda deste tema. Se quiserem ler um pouco mais abordo profundamente este assunto no livro: “O Império gnóstico contra ataca”[1]

Voltemos ao texto de Colossenses, lido inicialmente.
Este texto nos fala de dois aspectos de Cristo: Sua identidade e sua obra.

Vamos analisar, primeiramente, a obra de Cristo.
O que Jesus fez?

Em primeiro lugar, “ele nos libertou do império das trevas”. (Col 1.13).
Esta afirmação deve ser vista como uma operação de guerra. Para que isto acontecesse, Jesus teve que “despojar principados e potestades” (Col 2.15). Outra linguagem militar.

Como se despojava?
Quando os soldados iam para a guerra, se forem vitoriosos, eles tomavam as coisas mais preciosas e traziam para sua casa, e naturalmente, não permitiam que as armas ficassem com os derrotados. Eles retiravam o poder de fogo dos inimigos.

A Bíblia afirma que Jesus fez isto por nós.
Ele nos tirou do império das trevas. Império é algo conquistado à força. A linguagem é bem diferente de reino, onde a monarquia é estabelecida, existem direitos e suserania. No Império, existia a pessoa forte, que conquistava na guerra, e subjugava seus habitantes. No reino, existem leis, ordem, direção.
Jesus nos tira de um habitat de morte, e nos traz para um reino de amor e justiça. Ele nos livra do jugo e da escravidão. Ele nos torna cidadãos do seu reino. Há uma mudança de condição, de status. Saímos do domínio das trevas e de Satanás.

Em segundo lugar, ele nos deu redenção: Em quem temos a redenção” (Col 1.14).

Redenção é outro conceito importante para se entender. Trata-se de um preço de resgate pago, envolve transação. Uma linguagem moderna para isto tem a ver com o sequestro, quando o bandido exige que a família pague determinada quantia para que a pessoa seja solta.

Jesus pagou o preço da redenção. Para que isto acontecesse, ele derramou seu sangue. Sangue é moeda de troca no mundo espiritual.

Religiões animistas possuem uma pálida visão sobre isto. Eles acham que precisam aplacar a ira das entidades e das forças espirituais matando animais e fazendo altares de sangue. Na macumba e no candomblé isto é perceptível. O mesmo se dá em religiões primitivas. Por desconhecerem o sacrifício de Cristo, eles trazem sacrifícios de outros animais, quando na verdade o que precisam é do sacrifício do Cordeiro.

Relembrem a frase de Jesus na cruz: “Tudo está consumado” (Tetelestai). A melhor tradução deveria ser: “Tudo está pago!” O que Jesus fez? Ele pagou o preço de nossos pecados, com o seu sangue. Nós fomos comprados com preço. “Sabendo que na foi mediante coisas corruptíveis como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro, sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (1 Pe 1.18-19).

Em terceiro lugar, ele nos deu remissão: “no qual... temos a remissão” (Col 1.14).

Remissão dá a ideia de “perdão”. Jesus pagou o preço do nosso pecado e fomos perdoados, declarados justos aos olhos de Deus. Não há mais nada a ser pago. O sangue de Jesus seu filho, nos purifica de todo pecado.

Por isto afirma o apóstolo Paulo: “E é assim também que Davi declara ser bem aventurado o homem a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras. Bem aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos” (Rm 4.6,7).

O texto não afirma “bem aventurado aquele que não pecou”, mas “bem aventurado o homem a quem Deus atribui justiça”. A justiça que recebemos é a justiça de Cristo, que foi “imputado” ou “atribuída” a nós.

Em quarto lugar, Jesus fez uma restauração cósmica – “E que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus” (Col 1.20).

A obra de Cristo na cruz teve impacto sobre todas as coisas. Não apenas na salvação dos homens, mas no cosmos. Ele reconciliou todas as coisas com o Pai.

Na carta aos Romanos, Paulo fala da ruptura e do dano que o pecado trouxe sobre a natureza e a criação de Deus. “Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou” (Rm 8.20). O pecado atingiu o ser humano, atingindo sua alma, distanciando-o de Deus, fragmentando suas emoções e impactando sua cosmovisão, sua forma de pensar, mas também gerou desarmonia na natureza.

A obra de Cristo vem restaurar aquilo que a queda causou de dano. O pecado gerou degradação, impactou severamente o meio ambiente. A obra de Cristo impacta todas as coisas. Ele “reconciliou consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus”. A obra de Cristo mexe com as estruturas da terra e dos céus, assim como a queda da raça humana, o pecado, também afetou diretamente toda a criação.

Abraham Kuyper afirma: “Não há nenhum centímetro quadrado, em todos os domínios da existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: é meu!”. Jesus é o criador, restaurador e mantenedor de todas as coisas.

Em quinto lugar, a obra de Cristo nos qualifica para nos apresentarmos diante de Deus – “E a vós outros também que, outrora éreis estranhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas, agora, porém, vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele, santos, inculpáveis e irrepreensíveis” (Col 1.21,22).

A obra de Cristo fez algo radical: Ela nos capacitou a nos apresentarmos, puros, inculpáveis, irrepreensíveis diante de Deus.

Sem a obra de Cristo, como nos apresentamos diante de Deus?
Jó responde a esta pergunta: “Seria, porventura, o mortal justo diante de Deus? Seria, acaso, o homem puro diante de seu Criador? Eis que Deus não confia os seus servos, e aos seus anjos atribui imperfeições; quanto mais àqueles que habitam em casas de barro, cujo fundamento está no pó, e são esmagados como a traça!” (Jó 4.17-19.

Paulo também afirma: “Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei (comportamento moral, ética, obras religiosas)” (Rm 3.20. Como então podemos nos apresentar diante de Deus?

O livro de apocalipse nos ajuda a entender isto. Uma das perguntas mais relevante para o ser humano é feita em Ap 6.17: “Chegou o grande dia da ira deles, e quem é que pode suster-se?. Quem poderá estar de pé diante do Cordeiro? É hora de julgamento, de acerto de contas. Quem poderá se manter diante deste Deus?

Estarão em pé. aqueles que lavaram suas vestiduras no sangue do Cordeiro. “Um dos anciãos tomou a palavra dizendo: Estes, que se vestem de vestiduras brancas, quem são e de onde vieram? Respondi-lhe: meu Senhor, tu o sabes. Ele, então, me disse: São estes os que vieram da grande tribulação, lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro.” ( Ap 7.9,13-14).  Para estar de pé, naquele dia, diante do trono do Senhor, precisamos ter nossas roupas purificadas e alvejadas no precioso sangue do Cordeiro.

Conclusão:
Anselmo de Canterbury foi um homem de Deus, nascido na Itália, em 1093 foi designado Arcebispo de Canterbury. Em seu livro Cur Deus homo fez uma das mais brilhantes análises teológicas sobre a expiação de Cristo, sua morte substitutiva em nosso lugar. Para ele, Deus, sendo santo, não poderia simplesmente ignorar o pecado e deixá-lo sem julgamento. “É mais que impróprio, é impossível”. Então, o que poderia ser feito? Se somos devedor, precisamos pagar o que devemos. O problema é que somos incapazes de pagar a grande dívida de nossos pecados. Nossa obediência não é suficiente para satisfazer a Deus, nem podemos salvar a nós mesmos. No começo do livro II afirma: “Não há ninguém… que possa satisfazer a justiça de Deus, exceto Deus mesmo”[2]. Por isto Deus morreu em nosso lugar. Jesus era, e é, a única pessoa que poderia estar em nosso lugar, e satisfazer plenamente a justiça divina. Jesus pagou um alto preço por estas pessoas, e o preço foi sua própria vida.

A obra de Cristo possui um impacto e alcance muito maior do que imaginamos. Ele nos resgatou das mãos do diabo, nos redimiu dos nossos pecados, reconciliou a natureza resgatando seu propósito, e nos justificou, permitindo que no dia do juízo, pelo seu sangue, não sejamos fulminados pela santidade de Deus, nem condenados pela gravidade de nosso pecado, mas sejamos restaurados e resgatados.

Todas as vezes que consideramos isto, o resultado é adoração em nosso coração. A obra de Cristo deve nos encantar. Eu era perdido e fui achado. Eu era cego, agora vejo, eu estava condenado, mas agora pela cruz, fui reconciliado.

Aleluia!


[1] Vieira, Samuel - “O Império gnóstico contra ataca”[1]. São Paulo, Cultura Cristã, 1999
[2] . citado em Stott, John R. W. – The cross of Christ,  Great Britain, Intervarsity Press, 1989, pg. 119

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