segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Gn 19 Uma cidade sob juízo





Introdução:

Robert Linthicum, conhecido preletor sobre a teologia da cidade, considerando a perspectiva bíblica e histórica do contexto urbano, começou seu ministério numa favela de Chicago em 1955, posteriormente tornou-se colaborador num projeto com Madre Tereza de Calcutá em Bombaim, Índia, e no seu livro, Cidade de Deus & Cidade de Satanás o homem, faz uma pergunta crucial:
“Como Deus vê minha cidade?”

Para responder a esta pergunta ele propõe duas linhas mestras:
Þ      Cidade é o local de uma grande e contínua batalha entre o Deus de Israel e o Deus deste mundo;
Þ      Nossa cidade deve ser vista como habitação do mal, pessoal e sistêmico e objeto constante do amor de Deus.

Compreensão textual:

Neste texto, a palavra “cidade” aparece 12 vezes em 29 versículos. Isto revela como a questão da cidade palpita nesta perícope. Sodoma e Gomorra são cidades perversas, marcadas por uma espiritual secularizada e uma ética permissiva. Sua maldade se tornou proverbial, e chegou aos céus. Deus afirma que “o clamor de Sodoma e Gomorra tem-se multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muito” (Gn 18.20). Este ethos pecaminoso, tornou-se a causa de sua queda e destruição.
O relato bíblico é severo e duro. Lutero afirma que não conseguia ler este texto sem ser tomado por uma grande repulsa e indignação diante da maldade da cidade.

Estas cidades viviam uma curiosa dialética, sendo famosas, por duas coisas:

¨       Sua economia e beleza – O texto bíblico afirma “era toda bem regada (antes de haver o Senhor destruído), como o jardim do Senhor, como a terra do Egito, como quem vai para Zoar” (Gn 13.10). Ficava na campina do Jordão, com água abundante, toda bem regada, uma várzea como as margens do Nilo. Ló, pecuarista treinado, não teve dificuldades de decidir que era para esta direção que levaria seu rebanho;

¨       Sua maldade – Este era seu lado negro. Sua riqueza a tornara arrogante e prepotente. Sodoma foi se distanciando do temor de Deus, construiu uma cosmovisão absolutamente pagã. Até mesmo comportamentos humanos tidos como muito importantes para o mundo antigo como hospitalidade e sexualidade foram desprezados. Era um povo sem freios, dominados por desejos e orgias, sem temor de Deus.

O texto nos apresenta Sodoma desta forma. Como esta cidade chegou a esta condição?

1.       A má formação das gerações – Os filhos daquela cidade cresceram aprendendo costumes e comportamentos bizarros: “Mas, antes que se deitassem, os homens daquela cidade cercaram a casa, os homens de Sodoma, assim os moços como os velhos, sim, todo o povo de todos os lados” (Gn 19.4) Os jovens estavam seguindo os modelos dos velhos. Isto pode ser percebido na descrição do texto que fala dos jovens e dos velhos juntos nesta bacanal. Não se tratava apenas de alguns jovens arruaceiros e desenfreados, mas “velhos e jovens” se juntavam para praticar o mal. Comportamento aprendido e imitado, desde cedo.
Se quisermos olhar com seriedade para as gerações futuras devemos perguntar:
ü       Quais modelos influenciam estão formando a ética dos jovens de hoje?
ü       Que futuro moral norteia esta geração? 
ü       Quais são os ícones e formadores de opinião. Quem está sendo admirado? 
Uma cultura onde os valores morais são desprezados traz sérios impactos sobre filhos e netos. Sodoma estava debaixo de conceitos e filosofias absolutamente pagãs.

2.       Falta de uma ética básica para a vida – Na medida em que o texto faz sua narrativa, percebemos que não havia algo princípio ético norteando aquela cidade. (Gn 13.13) O povo saia para estuprar como quem vai à padaria. Interessante notar que “o clamor daquela cidade subia até os céus”. A ética sexual permissiva torna-se algo grave para Deus. Os filhos participam daquele etos e a cidade assimila isto naturalmente. O profeta vai afirmar também que sob aquela cidade havia uma terrível culpa porque sistemicamente esmagavam os pobres (Ez 16.49). Faltavam referencias morais.

3.       Falta de princípios espirituais- (Gn19.13) Deus não ocupa espaço na agenda e nos discursos humanos. Ele é excluído das conversas, da agenda e da história do povo. Deus foi daquela cultura, ou, caso faça parte dela, não era alguém muito interessado ou preocupado com sua sorte. Este texto nos mostra como a secularização pode atingir uma sociedade. Os genros de Ló, ao ouvirem a conversa de que Deus traria juízo sobre eles, passou a fazer chacota e a gracejar. Aqueles jovens jamais poderiam conceber que houvesse um Deus sendo magoado ou ferido por causa da atitude libertina e cruel da cidade. Este texto parece nos dar o melhor exemplo de como funciona uma sociedade sob forte cultura da secularização. Ela não consegue conceber a idéia do Sagrado se imiscuindo no dia a dia e na sua história. No máximo possuem um conceito de um Deus distante e desinteressado nas suas vidas.

4.       O pecado assume dimensão corporativa- Este é outro aspecto que devemos considerar no texto. “Velhos e jovens” se uniam para praticar orgias. Toda estrutura social danificada. Assim como avivamentos afetam as relações sociais, o pecado, na sua dimensão mais profunda, afeta estruturas sociais como um todo. Linthicum afirma: “As Escrituras nos fornecem modelos indicados no que concerne ao mal de uma cidade. Em primeiro lugar, enfatiza que grande parte do mal de uma cidade é pessoal. Quando tal pecado se acumula entre seus habitantes como aconteceu em Sodoma, a própria cidade torna-se opressa e possuída por ele”[1]. Numa cidade grande, as vezes, e único poder que muitos pobres possuem é o de seus próprios corpos. Herbert de Souza certa vez afirmou criticamente que “As igrejas ensinaram a resignação, mas não reação contra a injustiça”.[2] Desta forma, o pecado assume dimensões corporativas:

  1. É injusta contra os que não tem poder;
  2. Oprime sistematicamente os pobres;
  3. Explora desumanamente os trabalhadores;
  4. Perde o referencial de valor humanos;
  5. Esvazia a santidade da família;
  6.  Desvaloriza a sacralidade da sexualidade

Posteriomente, o profeta Ezequiel ao descrever as causas do fracasso e destruição desta cidade perversa, afirma exatamente isto: "Ora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: Ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados. Eram altivas e cometeram práticas repugnantes diante de mim. Por isso eu me desfiz delas conforme você viu” (Ez 16.49)..
Sodoma era estruturalmente má, as novas gerações, por sua vez, não eram capazes de romper com a cultura vigente, e apenas imitavam a atitude dos seus pais. Cultura é uma das coisas mais complexas para mudanças históricas, por esta razão me assusta tanto a cultura do suborno e da corrupção do povo brasileiro, que vem desde as épocas da colonização. Apenas Ló, vindo de outra cultura, foi capaz de perceber o processo de satanização naqueles movimentos históricos, e assim denunciar a malignidade deste povo, sendo duramente julgado por isto, e aparentemente causando reações de oposição no meio daqueles cidadãos (Gn 19.7).
O mal assume dimensões corporativas e sistêmicas: comerciantes, policiais, empresários e políticos agem dentro desta estrutura maligna. Quando isto acontece, todo o sistema legal e político colocado à disposição deste ethos maligno. Isto acontece no caso da corrupção, em situações de exploração econômica, política e religiosa. É trágico relembrar que a chacina das 7 crianças na Candelária, no Rio de Janeiro em 24 de Julho de 1993  se deram na porta de uma Igreja Católica (poderiam acontecer também numa igreja protestante), mostrando a impotência das estruturas religiosas diante do mal.

Devemos considerar as Consequências de uma cidade que vive debaixo da opressão deste modelo sistêmico do mal:

A.                  A experiência cotidiana da violência - Ao se verem impedidos de seus intentos malignos, quiseram “arrombar a porta” (Gn 19.9). O mal se agrava, agride, se torna mais ousado. Em Sodoma, a lei do respeito à sacralidade do lar foi desfeita face àquele ambiente hostil. Queriam violar não apenas aqueles homens que estavam hospedados com Ló, mas também a privacidade dele e de sua casa. Ninguém está protegido quando a sociedade se desumaniza.

B.                   Aumento da promiscuidade - O povo queria que Ló trouxesse os homens para fora para que “abusassem deles” (Gn 19.5). Isto revela que era um povo já se acostumando com o grotesco e com a crueldade.  A alarmante insistência de Ló no vs 3, em levar estes homens da praça pública para sua casa, parece demonstrar que ele conhecia muito bem os habitantes daquela cidade e sabia o que aqueles homens eram capazes de fazer.

C.                   Auto-destruição política e social - A índole da cidade era a de ignorar as trágicas advertências. Mesmo quando Ló chama os seus genros para lhes alertar, eles continuaram no mesmo estilo de vida e não sentiram necessidade de qualquer mudança. As coisas espirituais estavam muito distantes de sua realidade. O trágico destino de toda nação cruel e promíscua é sua destruição. A queda dos impérios está intimamente associada à sua maldade. Nenhum governo se firma batendo as estacas da iniqüidade.

D.                  Abandono de Deus - Manifesto na ironia que dos genros ao receberem a notícia (Gn 19.4). O povo estava tão alheio à vida de Deus que jamais conseguia acreditar na intervenção do sobrenatural no seu mundo secularizado. Por definição, esta é a melhor idéia que podemos ter sobre secularização: O povo perde a capacidade de considerar o Sagrado na vida.

O que pode sustentar uma cidade?
O texto demonstra que a presença de pessoas justas pode reestruturar a cidade e mantê-la de pé. A pergunta de Abraão é incisiva: “Destruirás o justo com o ímpio?”
O que Deus espera do justo na cidade?
Linthicum afirma que há evidências  textuais significativas nos manuscritos mais antigos que dão suporte à leitura de que “O Senhor ficou ainda em pé diante da face de Abraão”, ao invés de afirmar que “Abraão ficou em pé diante da face do Senhor”. Isto nos leva a indagar sobre quem estava suplicando pela cidade? Se a leitura da passagem for verdadeiramente esta, parece nos indicar que o Senhor era o suplicante perante Abraão. Era Deus quem estava advogando o livramento de Sodoma! Era como se Deus estivesse dizendo ao patriarca: “Eu ouço as suplicas do meu povo. Vá em frente, Abraão, peça-me! Peça-me para salvar Sodoma por cinqüenta pessoas justas e eu o farei!”
Abraão pede com fé, e Deus lhe dá tudo quando ele pede. Linthicum indaga: “Se Abraão pedisse, teria Deus poupado a cidade por causa de uma família, a família de Ló? Teria Deus poupado a cidade somente por causa de Ló? Se a ordem das palavras em Gn 18.22 realmente foi invertida, então a resposta claramente seria, sim! Deus amava tanto a Abraão, como a Sodoma e Gomorra e teria dado a cidade ao patriarca por qualquer coisa que tivesse pedido. Deus queria salvar a cidade. O sentido de justiça de Deus, entretanto, exigia julgamento...além de seu pedido por dez pessoas, Abraão não pode ir. Foi assim que a negociação acabou – não porque faltasse a Deus misericórdia, mar porque Abraão não possuía ousadia maior”.[3]
Vários textos nos mostram que a presença da igreja pode alterar a realidade de um povo e de uma nação. Quando Israel  saiu do Egito, diz-nos a palavra de Deus, que “naquele dia, saíram todas as hostes espirituais de Yawé” (Ex 12.41). Que significavam estas palavras? A que hostes espirituais se refere o texto?
Paulo afirma também que o mistério da iniqüidade já opera, e aguarda que seja retirado aquele que agora o detém (2 Ts 2.7). A que se refere este “mistério da iniqüidade?” O que pode detê-lo. O texto sugere que existe algo, ou alguém, ou um grupo, que resiste á força do maligno. Para muitos trata-se do Espírito Santo, e nós sabemos pelo Palavra de Deus, que Deus resolveu habitar, pelo seu Espírito, dentro de cada um de seus eleitos, dando-nos o Espírito Santo. Ele habita dentro de nós. Nós somos o templo do Espírito Santo.
Então, podemos concluir, que a presença do povo de Deus, suas orações, sua comunhão com Deus, age poderosamente para confrontar e impedir o mal.
Que Deus nos ajude nesta grandiosa tarefa de trazer, grande alegria á cidade, como os discípulos fizeram ao chegar à Samaria, com a mensagem do Evangelho. “E houve grande alegria naquela cidade” (At. 8.8).



[1] Linthicum, Robert – Cidade de Deus, Cidade de Satanás, Belo Horizonte, Missão Editora, 2ª edição, 1991, pg.46)
[2] Revista Veja, Edição comemorativa de 25 anos.
[3] Linthicum. Op. Cit. Pg 126-127

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