Introdução
De toda esta narrativa
bíblica que se inicia em 4.8 até o vs 36, a frase que me chamou mais a atenção
foram estas: “Não mintas a tua serva”
(2 Rs 4.16) e “Não me enganes!” (2 Rs
4.28).
Esta mulher é
sunamita, isto é, da região de Suném, que ficava próximo ao vale de Jezreel, da
mesma região onde encontraram uma jovem bonita chamada Abisague, que foi a
companheira de Davi na sua velhice (1 Rs 1.1-4) e se tornou o pivô e a causa da
morte de Adonias, que a pediu para si após a morte de seu pai (1 Rs 2.20-25).
Esta mulher possui
algumas características marcantes, conforme nos relata o texto sagrado:
A.
Era
sensível – Sua sensibilidade e presteza se revelam na forma cuidadosa com que
decidiu cuidar de Eliseu. Ao vê-lo na sua simplicidade, passando necessidade de
tudo, resolveu providenciar comida (2 Rs 4.8) e hospedagem (2 Rs 4.10) para o
profeta. Edméia Willians, analisando este texto chama atenção até para o fato
dela providenciar uma mesa para que o profeta pudesse colocar seus pergaminhos.
Esta sensibilidade se torna evidente no texto lido. É uma benção ter pessoas
sensíveis assim no ministério, que se preocupam com a realidade dos
missionários e pastores. Que alivio podemos encontrar em famílias amorosas e
cuidadosas...
B.
Tinha
grande percepção espiritual – Isto é nítido na forma como ela percebe aquele
homem. “Vejo que este que passa sempre
por nós é santo homem de Deus” (2 Rs 4.9). Ela é capaz de perceber a graça
de Deus sobre a vida daquele homem que regularmente passava por ali.
C.
Cultivava
a simplicidade – Quando Eliseu resolve fazer alguma coisa em resposta de
gratidão pelo seu cuidado, ele lhe pergunta se poderia falar alguma coisa ao
rei ou ao comandante do exército de Israel a seu favor. Sua resposta é simples
e maravilhosa: “Habito no meio do meu
povo”, a NVI traduz da seguinte forma: “Eu tenho casa entre o meu povo”, e
a versão The Message ainda é mais incisiva: “Não há nada. Estou satisfeita e
feliz com minha família”. Isto expressa contentamento e simplicidade. Estou
feliz com o que tenho, minha vida está completa. Como precisamos aprender isto
em nossos dias, quando achamos que precisamos de mais para encontrar sentido, e
não somos capazes de celebrar a nossa vida, mesmo as coisas mais simples que
passamos.
D.
Demonstrava
espirito de abnegação – O próprio profeta a descreve como uma pessoa abnegada.
Abnegação significa fazer algo por alguém, mesmo com sacrifício pessoal. Em
geral, podemos até ajudar os outros, mas temos muita dificuldade em fazer isto
quando implica em sacrifício pessoal.
E.
Objetividade
e determinação – Ela sempre vai direto ao ponto. Quando o profeta lhe diz que
teria um filho, ela replicou: “Não mintas
a tua serva!” (2 Rs 4.16). A tradução The Message afirma: “Não dê falsas
esperanças à tua serva”. Quando ela se encontra com o profeta, depois da morte
do seu filho ela chega a ser rude: “Não
disse eu: Não me enganes?” (2 Rs
4.28). A NVI traduz: “Não te disse: Não levante as minhas expectativas?”. Ela
não tem dificuldade em afirmar sua posição e o que lhe acontece.
a. Após a morte de seu
filho, sai rapidamente em busca de solução. Não fica se lamentando e chorando
sobre o seu cadáver.
b.
Não
conta ao seu marido sobre a morte do filho quando estranhamente vai ao encontro
do profeta (2 Rs 4.23). A pergunta do marido demonstra que seu pensamento
religioso o levara a pensar que o homem de Deus era apenas um celebrante de
liturgias religiosas nos sábados e luas novas. Ele não podia compreender que a
fé traz soluções às situações imediatas e mais angustiantes da vida.
c.
Não
perde tempo como jovem Geazi, quando este vem ao seu encontro perguntar-lhe se
vai tudo bem. (2 Rs 4.26). Ela precisava falar com o profeta e seu
intermediário não resolveria o problema. O profeta tinha que se explicar com
ela sobre o que tinha acontecido.
O mais importante,
porém, é o conflito que esta mulher enfrenta. Aqui está o ponto central deste
texto.
A frase “Não me enganes!” (2 Rs 4.28) traz aqui o
eixo central deste texto de crise humana e espiritual. Quando ela vem ao
encontro do profeta, depois de chorar por algum tempo sem nada dizer, abraçada
aos seus pais, olha para ele e diz: “Pedi
eu a meu senhor algum filho? Não te disse eu: Não me enganes?”.
Eliseu percebia que
algo muito ruim acontecera à mulher, mas ele não sabe. A atitude do profeta me
chama a atenção pela sensibilidade com que ele lida com a dor daquela mãe. Ele
respeita à sua dor, espera sem pressionar que ela chore e derrame toda sua dor.
Esta psicoterapia do silêncio à dor do outro é uma das coisas mais lindas e salutares
da vida.
O livro de Jó nos
mostra como o silêncio, em contraste com as respostas imediatas, surgem efeitos
completamente distintos. Quando seus amigos o encontraram na sua decadência,
eles “sentaram-se com ele na terra, sete
dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, pois viam que a dor era
muito grande” (Jó 2.13), mas depois resolveram explicar a dor de Jó e fazer
teologia em cima de seu sofrimento, e o resultado, como sabemos, foi
catastrófico: “Todos vós sois
consoladores molestos. Porventura não terão fim essas palavras de vento?”
Jó 16.2,3).
Questões para se considerar:
Este texto é paradoxal
na sua narrativa. Por que Deus permite que todas estas coisas aconteçam?
Deus dá o filho quando
esta mulher não pede, enchendo seu coração de alegria, e tira o que ela ama,
sem dar explicações, sem nenhum motivo plausível. O que podemos aprender disto?
Duas realidades, duas
respostas:
Primeiro, nem sempre
entendemos porque Deus dá, de forma graciosa, coisas que sabemos que não
merecemos, e eventualmente que sequer sonhamos. A verdade é que Deus dá
bênçãos, quando sequer imaginávamos ter. Deus nos dá honra, recursos,
trabalhos, oportunidades. Em todo tempo, Deus é bom, Deus é bom em todo tempo.
Surpreendente e generoso nas suas manifestações.
Fiquei pensando em
coisas que Deus me deu sem esperar. Meu encontro com a Sara foi surreal.
Estudante com poucos recursos no Seminário de Campinas, São Paulo, chega a Semana
Santa e não tinha dinheiro para visitar meus pais que moravam em Gurupi-TO,
então recebo um convite de um colega de turma para ir a sua casa, com uma
inusitada recomendação: “que não me envolvesse com sua irmã para que isto não
prejudicasse nossa amizade”. Como vocês observam, não sou de confiança e fiz o
contrário do que ele falou: Isto é o que chamo de “profecia reversa”. A forma
como nos encontramos, namoramos e casamos, sempre foi surpreendente.
Deus nos reserva
sempre bençãos inusitadas e inesperadas. É sua bondade e graça se manifestando,
afinal, não é isto que sempre declaramos: Deus é bom, Deus é muito bom, Deus é
bom demais?”
Neste texto
presenciamos a inesperada promessa feita a uma mulher, cujo marido já era
idoso. Nasce-lhe um filho. Sua alegria transcende à compreensão humana,
enchendo aquela casa de alegria. Assim é a graça de Deus. Deus nos dá a
salvação em Cristo, sem que nada tenhamos feito para merecer, fruto de sua
graça livre e soberana, ele perdoa nossos pecados, nos dá vida eterna. Como
entender a gratuidade de seu amor?
Quase nunca somos
capazes de entender porque Deus nos dá estas coisas que amamos de forma
surpreendente e espontânea.
Certamente não há
crise nenhum para nós, em acolher esta maravilhosa expressão de sua bondade e
amor. Pelo menos, não me lembro no meu ministério de alguém vindo a mim e
reclamando porque Deus o tem abençoado tanto. Já viram alguém assim? Zangado
com a bondade e provisão de Deus?
Agora,
O segundo ponto já é
outra história.
Se no primeiro
consideramos as grandes bençãos que Deus dá e as alegrias inesperadas que
recebemos, no segundo ponto, a questão é inversa, e gera grandes
questionamentos: Por que Deus retira de nós coisas preciosas, que amamos?
Isto pode se dar numa
doença incurável,
Num trágico acidente de carro,
No desemprego que
desestrutura a vida familiar
Nas portas
que inexplicavelmente se fecham
Na
morte de uma pessoa jovem e querida.
Certo dia a irmã da
zeladora da igreja, com apenas 40 anos de idade, sentindo fortes dores de cabeça foi ao
hospital. Diagnóstico: tumor maligno no cérebro. Um mês depois estava morta. Os
motivos de Deus brotam naturalmente nos questionamentos que fazemos. Assim
aconteceu comigo quando perdi uma querida sobrinha de 22 anos num acidente de
carro ao atravessar uma rua de Palmas? Uma vida cheia de sonhos, planos e
aspirações? Tudo acaba de forma trágica num descuido de uma jovem ao telefone e
na alta velocidade de outro jovem descuidado dirigindo displicentemente na
cidade. Tente encontrar respostas aos questionamentos que surgem. Tente
equacionar esta dolorida situação. Onde estava Deus? Por que não impediu que
esta tragédia acontecesse?
A história de Jó é um
desafio filosófico para a mente humana, permanecendo como um enigma
indecifrável. Tentamos fazer relação de causa
& efeito. Isto aconteceu por isto... porque fizeram isto... porque
deixaram de fazer... mas estas coisas simplesmente não se fecham. Não dá para
equacionar a mente de um Deus misterioso. Por isto diz o profeta: “certamente tu és para mim um Deus misterioso”
(Is 45.15), e ainda o brado do profeta Naum: “Deus tem seu caminho na tormenta e na tempestade, e as nuvens são o pó
de seus pés” (Na 1.3).
Billy Graham afirmou
numa palestra e políticos em Harvard, na qual estava presente, que existem três
coisas ainda inexplicáveis para o ser humano:
o
mistério da morte,
o mistério da dor e sofrimento,
e o mistério do mal.
Tente explicar o mal
quando ele repentinamente acontece?
A sensação pode ser a
mesma desta mulher: “Pedi eu a meu senhor
algum filho? Não te disse eu: Não me enganes?”. Ela se sente traída,
enganada, lesada pelo próprio Deus, por causa do filho querido que lhe fora
dado como demonstração de sua especial graça.
Deus tira da mulher
aquilo que ela mais ama. Nestas horas, precisamos evocar promessas da sabedoria
e misericórdia dele para sobreviver:
è “Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito? Pensamentos de bem
e não de mal, para vos dar o fim que desejais”.
è “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança. As
misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas
misericórdias não tem fim, renovam-se cada manhã”.
è O que faço agora, entendê-lo-á depois...
Diante da dor, do
mistério e da incompreensibilidade, duas reações são possíveis ao coração:
A.
Questionamento e interpelação – Esbravejamos contra
Deus, nos sentimos lesados por ele, ficamos com raiva de Deus, brigamos,
arguimos. “Onde está o Senhor?”, “por
que o Senhor permite que isto aconteça”... Duvidamos da bondade e do poder de Deus,
duvidamos das nossas orações, e questionamos até mesmo a existência de Deus.
Ele é real?
B.
Resignação e submissão – Perplexos, embora
submissos, nos rendemos a Deus, confiando no seu caráter e provisão. No meio de
cacos e cinzas dizemos: “Deus deu, Deus tirou, bendito seja o nome do Senhor”.
Quando
esta mulher se dirige ao profeta, ele lhe envia seu auxiliar, o jovem Geazi que
lhe pergunta: “Vai tudo bem com a
senhora, vai bem com seu filho?” Ela responde de forma enviesada: “Tudo
bem”, e dirige-se ao profeta sem perder tempo. No entanto, ao chegar ao
profeta, ela se desmancha e revela toda sua angústia, se joga ao chão e agarra
seus pés (2 Rs 4.27). Não dá para fazer de conta que está tudo bem quando a
morte ronda a casa. Não se pode viver em constante estado de negação. Negar a
realidade da morte é mais complicado que
enfrentá-la, com todas suas agruras e variáveis.
As
coisas não se resolvem porque dizemos que está tudo bem, e não temos nada a
fazer, senão cair de joelhos, em choro e dor, mesmo quando os pensamentos
encontram dificuldade em se organizar e as palavras demoram a chegar aos
lábios, como foi no caso desta mulher.
Depois
de ouvido a queixa da mulher, o profeta vai à sua casa, e a misericórdia de
Deus se revela. O filho é restaurado e volta a viver. Muitas vezes não é isto que
acontece, a cura se processa, o milagre não se realiza e a dor parece ser
soberana.
Mas
ainda assim, existe um lugar e um momento na história na qual é possível fazer
uma correta leitura da dor e do luto: A cruz de Cristo.
A
cruz de Cristo revela todo este paradoxo de um Deus que morre, que se entrega,
que enfrenta as ambiguidades. Naquele lugar de desprezo, Deus Pai coloca seu
Filho no meu lugar. Ele sofre a minha dor e vergonha pelo pecado e culpa que
carrego. A dor e a vergonha que ele enfrenta não lhe pertencem, elas são
minhas. “Certamente ele levou sobre si
nossas dores e as nossas enfermidades levou sobre si” (Is 53.4). Ele é o
inocente, eu o culpado. Que mistério tremendo percebo na cruz. Ali meus
pressupostos, perplexidades e ambiguidades são revelados na sua forma mais
visceral. No entanto, neste mistério da dor/redenção, encontramos o significado
de um Deus que ama, mesmo quando ouvimos o Filho dizendo: “Se possível, afasta
de mim este cálice”, e isto não acontece.
Não
entendo todos os motivos que levaram Paulo a afirmar: “Eu me glorio na cruz de Cristo”, mas posso perceber que ele estava
entendendo que neste lugar de tragédia e escárnio, ainda assim poderia discernir a presença de
Deus. No contexto de abandono e desencontro há ponto de convergência na
reconciliação da raça humana consigo mesma e com Deus.
Quando
Jesus apanha o pão, e o agradece a Deus, entregando-o aos discípulos, ele diz:
“Isto é o meu corpo partido por vós,
fazei isto em memória de mim”. Como Jesus consegue agradecer quando a
referência que tem diante de si é a dor e o esmagamento de seu corpo?
Para
Jesus, a dor não é mera dor. As coisas encontram sentido e convergência em
Deus, mesmo diante das contradições da vida, quando sequer conseguimos
organizar as emoções, ao permitir que a perplexidade passe pelo crivo da cruz é
possível mesmo sem entender todo o mistério do mal, da morte e da dor,
discernir um Deus que se revela no contexto das contradições. Foi ali na cruz,
que Deus revelou seu maior amor e se entregou por nós.
Por
isto gosto de pensar na frase final deste texto, quando a mulher recebe seu
filho restaurado e ouve a afirmação do profeta: “Toma teu filho!”. A versão bíblica The Message expressa-se assim: “Abrace seu filho!”.
Seja
qual for a situação, a morte precisa ser enfrentada. Em algum momento, ela
precisa ser superada, é necessário que saiamos da morte para o abraço, da distância
e frieza para a ternura, e acolher a vida nos braços. A morte precisa dar lugar
à vida, e a tristeza à celebração.
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