quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Conceito de cultura

 

Texto Rev. Gildásio Reis

 

O que não é cultura?

Cultura é uma palavra comum! Normalmente nos referimos a uma pessoa como culta porque possui um elevado grau de estudo, ou porque ouve música clássica e ópera, ou porque fala várias línguas, ou por vários outros motivos que, via de regra excluem pessoas comuns e consagram os costumes e ideais de membros da elite de uma sociedade geralmente rica, poderosa e estudada. A permanecer tal idéia de cultura, implicitamente estamos pressupondo que pessoas comuns, particularmente as pobres e marginalizadas, não tem “cultura” exceto quando tentam se igualar à elite.

 

O conceito de cultura

Dezenas de definições de cultura foram elaboradas pela antropologia e outras ciências sociais, ao tentar estudar o comportamento humano Definir cultura não é uma tarefa fácil. Ricardo Gondim13 indica que os antropólogos já criaram mais de trezentas definições. Mas como poderíamos definir esse conceito? A palavra em si vem do latim e significa “trabalhar o solo” ou “cultivar”14 Uma boa compreensão do significado de cultura é um pré-requisito para qualquer comunicação eficaz das boas novas do Evangelho a um grupo distinto de pessoas.

 

11 BRUCE, F. F., citado por Geoffrey B. Wilson, Romanos - Um Resumo de Pensamento Reformado, (SP - PES) 130

12 G.C.Berkouwer, Man, The image of God, p. 107


13 Ricardo Gondim, É Proibido ( S. Paulo: Mundo Cristão, 1998) p. 12


14 HORTON, Michael S., O Cristão e a Cultura (S. Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998). p. 40

 

Não obstante a dificuldade de dar uma definição final para cultura, alguns missiólogos deram uma definição. Vejam algumas:

 

§  A cultura é um sistema integrado de crenças (sobre Deus, a realidade e o significado da vida), de valores (sobre o que é verdadeiro, bom, bonito e normativo), de costumes ( como nos comportamos, como nos relacionamos com os outros, falar, orar, trabalhar, jogar, comer, etc..), e de instituições que expressam estas crenças, valores e costumes ( governo, tribunais, templos, igrejas, famílias, escolas, hospitais, fábricas, sindicatos, lojas, clubes, etc..), que unem a sociedade e lhe proporciona um sentido de identidade, de dignidade, de segurança, e de continuidade15

 

Os sistemas mais ou menos integrados de idéias, sentimentos, valores e seus padrões associados de comportamento e produtos, compartilhados por um grupo de pessoas que organiza e regulamenta o que pensa, sente e faz.16

 

Conjunto de comportamentos e idéias característicos de um povo, que se transmite de uma geração a outra e que resulta da socialização e aculturação verificadas no decorrer da sua história17

 

Cultura é um sistema integrado de padrões comportamentais aprendidos, compartilhados e transmitidos de geração em geração, que distinguem as características de uma determinada sociedade18

 

O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial requer metodologia nova e criativa. Com a bênção de Deus, o resultado será o surgimento de igrejas profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser julgada e provada pelas Escrituras. Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e em bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca. O evangelho não pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas segundo o seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na aceitação de valores morais absolutos, em todas as culturas. As missões, muitas vezes têm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por vezes, têm ficado submissas aos ditames de uma determinada cultura, em vez de às Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus.19

 

As dimensões da Cultura

 

Para efeito desse estudo vamos abordar o conceito bem mais amplo e multidimensional de cultura, o qual leva em conta a própria natureza complexa e integrada do ser humano, conforme apresentado anteriormente. Segundo Paul Hiebert, são três as dimensões da cultura:20

 

A. A Dimensão Cognitiva (conhecimento, lógica e sabedoria)

 

15 Série Lausane. O Evangelho e a Cultura. A Contextualização da Palavra de Deus. Belo Horizonte, MG. Editora ABU. 1983. p. 10-11


16 HIEBERT, Paul G., O Evangelho e a Diversidade das Culturas, Ed. Vida Nova 1999. p. 30


17 NIDA, E.A. Costumes e Culturas, Uma Introdução à Antropologia Missionária. São Paulo, SP: Edições Vida Nova. 1985. p. 10

18 FREITAS, Maria Ester de. Cultura Organizacional: formação, tipologias e impacto. São Paulo: Makron, McGraw- Hill, 1991. p. XIX-XXVI.
19 Pacto de Lausane, Evangelização e Cultura


20 Hiebert, Op Cit, pp. 30-34

 

Esse aspecto da cultura relaciona-se ao conhecimento compartilhado pelos membros de um grupo ou de uma sociedade. Sem ele fica impossível a comunicação e a vida em comunidade. O conhecimento fornece o conteúdo conceitual da cultura. Reúne as experiências das pessoas em categorias e organiza as categorias em sistemas maiores de conhecimento.

 

É o conhecimento quem diz às pessoas o que existe e o que não existe. O conhecimento cultural é mais do que categorias que utilizamos para entender a realidade, a natureza do mundo e como ele funciona. Ele molda a própria percepção da realidade.

 

B. A Dimensão Afetiva (sentimentos e estética)

 

Aspecto que engloba os sentimentos das pessoas – suas atitudes, noções de beleza, preferências alimentares e de vestuário, seus gostos pessoais e a maneira com que alegram ou sofrem. As culturas variam muito na forma de lidar com o componente emocional do ser humano. A dimensão afetiva da cultura se reflete na maioria das áreas da vida: padrões de beleza, moda, culinária, bens de consumo, etc. Se imaginarmos uma cultura onde tudo seja pelo funcional a monotonia iria imperar em praticamente tudo.

As emoções também moldam as relações humanas, pois determinamos padrões comportamentais (expressões faciais, tom de voz, gestos, etc) para expressar ódio, escárnio e inúmeros outros sentimentos.

 

C. A Dimensão Avaliadora (valores e fidelidade)

Engloba os valores pelos quais as relações humanas são julgadas como morais ou imorais. Define o comportamento e escolhas tidas por certas ou erradas. Impõe seu próprio código moral e seus pecados definidos culturalmente. Cada cultura tem seus próprios valores supremos e suas devoções fundamentais, e seus próprios objetivos culturalmente definidos (e.g. sucesso econômico, ou honra e fama, ou poder político, ou méritos ancestrais ou divinos, etc).

 

O Evangelho nas 3 dimensões

O evangelho se relaciona com todas as 3 dimensões: cognitiva, afetiva e avaliadora. No nível cognitivo relaciona-se com o conhecimento da verdade, o conhecimento e aceitação da informação bíblica e teológica e o conhecimento de Deus.

 

Afeta também a dimensão afetiva, dos sentimentos. Sentimos temor e mistério na presença de Deus. Sentimos vergonha e culpa pelos nossos pecados. Sentimos felicidade e alívio pela presença de Deus e pelo perdão dos pecados. Sentimos conforto na comunhão com o povo de Deus.

 

O evangelho também tem a ver com a dimensão avaliadora, na medida que Jesus proclamou as boas novas do Reino de Deus, o qual governa com retidão. Suas “leis” contrastam com as dos reinos e governos humanos, e sua perfeição julga nossos pecados culturais. Ser cristão também é ser chamado a seguir a Jesus incondicionalmente, a ser totalmente fiel a ele. Qualquer outra coisa é definida como idolatria.

 

O conceito bíblico de conversão abarca todas as 3 dimensões:

ü  Precisamos saber (I Co 2:2) que Jesus Cristo é o Filho de Deus, mas só esse conhecimento não é suficiente.

ü  Precisamos dos sentimentos de afeição (I Co. 8:1-3) e aceitação da obra de Cristo por nós. Mas também isso só não é suficiente!

ü  Tanto o conhecimento quanto os sentimentos devem nos levar à adoração, submissão e obediência a Cristo (Jo. 14:15; 23; I Jo 2:3-6), transformando-nos em seguidores plenos e comprometidos do Mestre.

 

Manifestações de cultura

 

Há a parte da cultura que podemos ver, ouvir e experimentar através de outros sentidos. É manifestada através do que chamamos de:

 

A.     Comportamentos: Geralmente aprendemos a nos comportar através da nossa cultura. Mas nem todo comportamento é aprendido culturalmente. Nossas escolhas e decisões no dia-a-dia são influenciadas por circunstâncias políticas, econômicas, sociais e religiosas.

 

Podemos tentar quebrar ou contornar as regras sociais e sermos punidos ou não por isso, pois toda cultura tem seus próprios meios para impor esses regras. Quando não há punição pela quebra de regra e essa regra tende a generalizar-se, as leis culturais tendem a morrer e ocorre mudança social. As pessoas de uma mesma cultura nem sempre concordam com as mesmas regras.

 

B.     Produtos: A cultura inclui objetos materiais – resultado de nossa interação e adaptação ao meio ambiente e do poder transformador que exercemos na natureza. A cultura material inclui mais do que respostas humanas ao ambiente. As pessoas fazem muitas coisas para seu uso próprio e para expressarem suas habilidades criativas.

 

O comportamento humano e os objetos materiais derivados são prontamente observáveis. Consequentemente, são meios importantes para compreendermos e estudarmos uma determinada cultura.

C.     Símbolos: forma e significado: O comportamento e os produtos culturais do homem não são partes independentes de uma cultura; eles estão intimamente ligados às idéias, aos sentimentos e valores presentes dentro de seu povo.

 

HIEBERT, Paul G., O Evangelho e a Diversidade das Culturas

Essa associação entre um significado, uma emoção ou um valor específico e um certo comportamento ou produto cultural é chamada de símbolo. Num certo sentido a cultura é formada por um conjunto de símbolos. Ex. a fala, a escrita, os sinais de trânsito, a moeda, os selos, sirenes e alarmes sonoros, perfumes, etc

 

Cultura e Cosmovisão

As pessoas percebem o mundo de maneiras diferentes porque constróem pressupostos diferentes da realidade. Juntos, os pressupostos básicos sobre a realidade que se encontram atrás das crenças e comportamentos de uma cultura são, algumas vezes, chamados de Cosmovisão21.

 

21 O termo cosmovisão [worldview] veio da língua Inglesa como uma tradução da palavra alemã Wel-tanschauung [percepção (de mundo), ponto-de-vista, concepção (de mundo), cosmovisão]

 

 

 

As pessoas acreditam que o mundo é realmente da maneira como o vêem. Raramente estão cientes de que a maneira que vêem é moldada por sua Cosmovisão.

 

Há pressupostos básicos implícitos em cada uma das 3 dimensões da cultura. Os pressupostos existenciais dão à cultura estruturas cognitivas fundamentais que as pessoas utilizam para explicar a realidade. Essas estruturas definem o que é “real”.

 

As suposições existenciais ou cognitivas também munem as pessoas com os conceitos de tempo, espaço e outros mundos. Os pressupostos cognitivos também modelam as categorias mentais que usamos para pensar, para reconhecer e acatar determinados tipos de autoridade e o tipo de lógica utilizada. Juntos estes pressupostos dão ordem e significado à vida e à realidade.

 

Os pressupostos afetivos permeiam as noções de beleza, estilo e estética encontradas em uma cultura. Influenciam o gosto das pessoas em música, arte, vestuário, comida, arquitetura, e o sentimento mútuo em relação à vida.

 

Os pressupostos de avaliação fornecem os padrões que as pessoas utilizam para realizar julgamentos, incluindo critérios para determinar verdade e mentira, gostos e preferências, e o certo e o errado. Essas hipóteses de avaliação também determinam as prioridades de uma cultura e, por sua vez, moldam as vontades e as obrigações das pessoas.

 

Reunidos, os pressupostos cognitivos, afetivos e avaliadores fornecem às pessoas uma maneira coerente de ver o mundo, a qual faz que se sintam em casa e lhes garante estarem corretos. Essa Cosmovisão serve de fundamento para que edifiquem suas crenças e sistemas de valores explícitos, e as instituições sociais dentro das quais vivem no dia-a-dia.

 

Cultura compartilhada

 

Como afirmado anteriormente, uma cultura é “compartilhada por um grupo de pessoas” e simboliza suas crenças, símbolos e produtos dessa sociedade. O homem foi criado para ser um ser social (Gn 1:28a ; 2:18) e sua sobrevivência depende de seu relacionamento com seus semelhantes. Todas as relações humanas exigem uma grande soma de entendimentos compartilhados entre as pessoas – linguagem (verbal e não-verbal), um conjunto mínimo de expectativas, um certo consenso de crenças, etc. Quanto mais tiverem em comum, maior a chance e possibilidade de inter-relação.

 

É preciso ter claro como “sociedade” se relaciona com “cultura”.

Sociedade é um grupo de pessoas que se relaciona mutuamente de maneira ordenada em ambientes diferentes. A ordem básica implícita nessas relações é chamada de organização ou estrutura social. É na estrutura social que as pessoas verdadeiramente se relacionam umas com as outras. A estrutura social está ligada à cultura, mas é diferente dela: a cultura inclui o que as pessoas crêem sobre relacionamentos.

 

A relação entre uma sociedade e uma cultura é dialética - as pessoas desenvolvem estruturas para conduzir suas vidas. Com o tempo, ensinam essas estruturas aos filhos como parte da cultura que modelará suas vidas.

 

Os limites sociais e culturais são claramente definidos nas sociedades tribais. No entanto, em áreas urbanas e rurais complexas, os limites culturais e sociais se tornam confusos e a relação entre eles é mais complicada; por exemplo, nas metrópoles habitadas por diferentes grupos étnicos (São Paulo, Nova Iorque, Londres, etc), onde são nítidas a sub-culturas que têm que conviver debaixo de uma cultura mais ampla.

 

Em tais situações, o que constitui uma cultura ou uma sociedade? Aqui temos que retornar ao conceito das estruturas culturais (uma escola, um hospital, um banco, em clube, etc) com seu próprio grupo de pessoas, hierarquia social, conjunto de conhecimentos e regras e valores. Os indivíduos em sociedades complexas se mudam de uma estrutura para outra , de um grupo para outro e de uma cultura para outra “trocando engrenagens” à medida que se mudam.

Essas culturas locais, por sua vez, são integradas a culturas regionais e nacionais maiores compartilhando uma história cultural, crenças e valores comuns mais amplos.

 

FORMAÇÃO DA CULTURA

 

1o)Comportamento: Aquilo que as pessoas fazem. É a 1a camada da cultura e é superficial.

 

2o)Valores: São as decisões preestabelecidas. Escolhas sobre o que é “bom” ou “melhor”.

 

3o)Crenças: É a reflexão dos valores. Aquilo que de fato as pessoas acreditam.


 

4o) Cosmovisão: A forma como vêem a realidade. Geralmente não é questionada. Aí está o verdadeiro motivo para as crenças, valores e comportamento.

 

O EVANGELHO E A CULTURA A. A cultura humana é do maligno?

 

“...O deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus...” 2 Co 4:4

 

A partir desse trecho, muitos têm concluído que o mundo está sob controle de Satanás e suas hostes, crendo num dualismo cósmico entre Deus e Satanás, luz e trevas, o bem e o mal. No entanto, a Bíblia apresenta esse conflito tendo como palco esta terra, onde Satanás tenta confundir ou diminuir no crente a confiança em Cristo e sua justiça imputada como suficiente para a salvação. É uma batalha pelas mentes e corações dos homens e tem a ver com verdade x erro, fé x incredulidade, fé em Cristo x crença em qualquer outra coisa ou pessoa.

 

Paulo jamais argumentou que um Deus bom reina na esfera espiritual enquanto um deus mau (Satanás) reina nas arenas “seculares e mundanas”. Satanás é citado como deus deste século apenas porque está sendo servido como se fosse um deus pelos homens.

 

Como anjo caído, Satanás cegou tanto judeus como gentios, mas é sempre dentro da permissão divina, a qual é retirada sempre e quando Deus quiser.  Não há razão, portanto, para ver o mundo como algo inerentemente mau ou o campo de batalha para o controle do planeta e do universo, cujo resultado depende da habilidade humana em se

 

22 G.Linwood Barney. Citado por Nicholls in: Contextualização: Uma teologia do Evangelho e Cultura. P. 10

 

amarrar demônios. Embora a humanidade pecadora faça deste mundo um lugar de rebelião, maldade e desordem, Satanás jamais terá vitória final sobre os propósitos e intenções de Deus (Dn 4:34-37).

 

“Não existe uma só polegada, em todo o domínio de nossa vida humana, da qual Cristo, que é soberano de tudo, não declare: é minha” Kuiper

 

A soberania de Deus é essencial para a fé cristã. É preciso traçar uma linha divisória clara entre aquilo que a Bíblia declara como “mundo” e aquilo contra o que lutamos nossa batalha espiritual. Ef. 6:10-19, não deixa dúvidas que nosso inimigo não é a cultura humana (as manifestações multiformes inerentes à nossa humanidade) mas contra os poderes e autoridades espirituais que dominam um mundo de trevas e de maldade e distorcem a beleza e originalidade da criação e da obra de Deus. São esses poderes que foram humilhados e expostos à vergonha por Cristo na cruz (Cl. 2:13-15) e não a obra criativa de Deus – os homens.

 

A humanidade, com sua cultura, seu modo de ser e se relacionar entre si e com o mundo criado por Deus, não é má em si mesma e nem foi criada desta forma, mas contou com o planejamento e a aprovação de Deus (Gn 1:26-31). Esse texto não parece a descrição de algo ruim!

 

Quatro maneiras como reagimos á Cultura

É natural que o novo convertido rejeite muito do que se associa ao seu passado. Ele se retrai do seu ambiente social, abandonando todas as ligações e relacionamentos anteriores. O momento de afastamento e fechamento da cultura anterior é natural, visto que a experiência de ser uma nova criatura em Cristo frequentemente causa uma grande mudança e conflito. Este momento inicial da vida cristã deve ser encarado como necessário para a maturidade do novo crente, mas o retorno à identificação com a cultura secular deve acontecer, à medida que sua maturidade aumenta. Analise a seguir quatro reações23 quanto a cultura, suas causas e consequências:

 

1)    Rejeição: Mentalidade de Gueto. Um tipo de isolacionismo cristão. Causas: Medo da secularização e contaminação com o mundo.

Conseqüências: Barreira a evangelização. As pontes não são construídas.

 

2)    Imersão: Flexibilidade que permite uma identificação radical com a cultura humana. Causas: Necessidade forte de identificação com a cultura secular.


Conseqüências: Tornam-se essencialmente indistinguíveis do mundo. O sal perde o sabor, tem receptores, mas não tem Mensagem.

 

3)    Adaptação dividida: Mistura rejeição e imersão. Seria uma espécie de esquizofrenia espiritual.
Causa: Tem necessidade de estar a vontade nos dois mundos.


                                    Conseqüências: Fica em cima do muro, vida dupla.

 

4)    Participação crítica (nossa proposta): Sabe que Deus o tem envolvido numa missão redentora com implicações culturais.
Causa: Não acredita que o novo nascimento deva "desculturalizar" um novo cristão.

                                    Conseqüência: Possivelmente terá problemas com a colisão entre as culturas cristã e não- cristã. Vive sob a tensão constante entre a fé cristã e a cultura humana.

 

B. Princípios básicos para entender a tensão dinâmica entre o evangelho e as culturas humanas:

23 Joseph C Aldrich., Amizade - a chave para a Evangelização, Ed. Vida Nova, São Paulo 1992 pp. 51-69

 

Está fora de cogitação qualquer tentativa para associarmos o cristianismo com a cultura ocidental, seja a de hoje ou do passado. Mesmo se quiséssemos associar o cristianismo com a cultura judaica da época de Cristo, teríamos dificuldades na fundamentação da idéia, visto que a própria Igreja Primitiva teve dificuldades com essa tentativa de associação e não seguiu por este caminho, embora o cristianismo nos fosse entregue dentro do contexto dessa cultura. Não era preciso tornar-se um judeu para se tornar um cristão! E bem sabemos que ainda não o é e nunca será.

 

É preciso, portanto considerar pelo menos 3 princípios para entender essa tensão dinâmica entre evangelho e culturas humanas:

 

1o) O Evangelho deve ser separado de todas as culturas humanas.

Ele é revelação divina e não mera expressão humana. A tendência de associarmos o cristianismo com nossa própria cultura (não importa quem ou onde) tem sido um desastre e um sério tropeço em muitas ações missionárias.

 

2o) O Evangelho se expressa em todas as culturas

Embora o evangelho seja diferente das culturas humanas, ele sempre dever ser expresso em formas culturais. Os homens não podem recebê-lo fora de seus idiomas, símbolos e rituais. Se as pessoas devem ouvir e crer no evangelho, ele precisa ser apresentado em formas culturais.

No nível cognitivo as pessoas devem entender a verdade do evangelho. 


No nível emocional devem experimentar o temor e o mistério de Deus. 


No nível de avaliação o evangelho as desafia a responder à fé. 


 

Todas as culturas podem servir de canal para a comunicação do evangelho – não é preciso mudar de cultura para se tornar um cristão! Isso não significa que não haja maior grau de dificuldade para se comunicar o evangelho em algumas culturas. 


 

3o) O Evangelho propõe mudanças para todas as culturas 
Assim como a vida de Cristo foi uma condenação para nossa natureza pecaminosa, assim também o Reino de Deus julga todas as culturas. Apesar de sermos criados por Deus à sua imagem nosso pecado impregna nossas culturas de maldade e pecado.

 

Uma teologia verdadeiramente contextualizada deve não só reforçar os valores positivos (sob crivo bíblico) da cultura onde está sendo formulada, mas também deve desafiar aqueles aspectos dela que expressam o pecado e a maldade humanas. 


 

O evangelho exerce uma função profética, mostrando o caminho que Deus planejou para vivermos como seres humanos, julgando nossas vidas e nossas culturas por essas normas. Como cristãos, devemos lutar sempre com as questões sobre o que é o evangelho e sobre o que é cultura – e qual é a relação entre eles. Não fazer isso é correr o risco de perder as verdades do evangelho. 


 

A TENSÃO ENTRE Cristo E A CULTURA

 

H. R. Niebuhr classificou em cinco categorias as perspectivas defendidas por vários teólogos acerca da relação entre Cristo e a Cultura:24

 

(1)   Cristo contra a Cultura. Segundo esse posicionamento, o conceito de “mundo” é amplamente negativo e o cristão é desafiado a escolher entre servir a Cristo ou servir ao mundo. Cristo, aqui, está em franca oposição ao mundo. Amplamente defendida por Tertuliano (c. 155-220),25 esta posição rejeita qualquer vínculo com as manifestações culturais (esportes, músicas, teatro e até mesmo a filosofia) por entender que o cristianismo não pode ser preterido sob quaisquer argumentos. Qualquer tentativa de um diálogo entre Cristo e a Cultura seria visto por Tertuliano como uma afronta aos ensinos de Cristo.

 

Niebuhr apresenta três problemas teológicos com essa postura:

(1) a conceituação de pecado como algo de cunho eminentemente social, em detrimento da consideração daquilo que se passa na alma do homem;

 

(2) a há uma tendência ao legalismo, visto ser necessário e quase que inevitável que inúmeras regras sejam estabelecidas para se tentar definir o alcance do termo “cultura”;

 

(3) há uma tendência na concepção do dualismo metafísico, como se o mundo fosse governado por dois deuses. Esta posição contra a cultura é considerada como sendo uma posição radical.

 

(2)   Cristo da Cultura. Para os defensores dessa posição, não há qualquer tensão entre a cultura e Cristo. Na verdade, afirmam, o que há é uma grande concordância entre ambos. Cristo é o próprio Messias social, e sua vida é o maior exemplo do empreendimento humano. Por isso a sua vida, enquanto Deus encarnado, deve ser transmitida às diferentes culturas e gerações. Cristo é explicado ou entendido à luz das diferentes manifestações culturais.

 

Assim, os gnósticos procuraram uma conciliação entre o evangelho e as idéias gnósticas; os evolucionistas do séc. XIX interpretaram as doutrinas à luz da evolução das espécies. Hoje há tentativas de se conciliar o evangelho com a psiquiatria, psicologia, física, objetivando-se mostrar a harmonia entre ambos.

 

A observação de Niebuhr é importante: não é que o cristão deva deixar o mundo, mas que deva permitir a presença de Cristo em todas as esferas sociais, pois, no final das contas, o mundo pertence a Cristo. Dentre os problemas com esta posição, Niebuhr lembra o perigo de Cristo ser abandonado, a fim de que as próprias manifestações culturais prevaleçam. Talvez essa é considerada uma posição radical.

 

(3)   Cristo acima da Cultura. Cristo é tanto concebido como sendo Deus como sendo homem; ele é Senhor, mas também é o Logos feito carne. Ele participa da cultura, mas está acima da cultura. Há uma espécie de síntese na compreensão do Cristo. Há aqui uma tendência na preservação dos aspectos culturais como legítimos elementos divinos.

 

Nesse sentido a lei de Cristo é identificada ou considerada como sendo a lei da igreja; o senhorio de Cristo é representado ou equiparado com os seus pseudos sucessores. Há sempre alguém nesse sistema tentando fazer uma síntese no relacionamento de Cristo com algum aspecto social, desde que tal síntese siga o pensamento particular de quem a elabora. Assim pode ser visto o pensamento de Tomás de Aquino, assim pode ser visto o argumento moderno sobre o que é de Deus e o que é de César. Esta posição é considerada por Niebuhr como sendo sinteticista.

 

(4)   Cristo e a Cultura em Paradoxo. A posição dualista que rejeita a tentativa de síntese das duas esferas e afirma a cidadania dupla do cristão, constitui-se na abordagem denominada “Cristo e a Cultura em Paradoxo”.

 

O cristão possui duas cidadanias, ele é membro da Cidade do Homem e da Cidade de Deus. Sendo esferas diferentes de atuação, com propósitos diferentes, não há porque uma reger ou atacar a outra.

 

Aqui o que se enfatiza é que a graça está em Deus e o pecado está no homem. A graça de Deus não está na cultura nem no cristão, mas o que ocorre é que deve ser feita distinção entre as esferas da criação e da redenção. Como a cultura jamais será um meio de encontrar a Deus, a abordagem “Cristo da Cultura” está descartada, por outro lado, a cultura não pode ser objeto de desprezo, porque ela não promete salvar ou redimir, isso elimina também a abordagem “Cristo Contra a Cultura”. O prazer que advém do envolvimento no trabalho, na vida familiar, na educação, nas artes ou no lazer, é um dom criacional de Deus e não redentivo. Essa visão foi iniciada por Agostinho, recuperada por Lutero e apoiada por Calvino. Calvino sustentava que a sociedade não precisa ser explicitamente cristã para ser justa e cheia de virtudes civis, pois que a lei moral de Deus está escrita nas consciências humanas. Niebuhr identifica Lutero, Kierkegaard, Marcião e Paulo de Tarso como possíveis exemplos dessa posição.

 

 

24 H. Richard Niebuhr. Christ and Culture. Nova Iorque: Harper & Row, Harper Torchbooks, 1956, citado por HESSELGRAVE, David J. in: A Comunicação Transcultural do Evangelho. São Paulo. Vida Nova, 1995. Vol. 1 p. 97 (Michael Horton em sua obra O Cristão e a Cultura faz uma análise destas categorias desenvolvidas por Niebrhr (cf. pp. 40-51 )

25 HORTON, Michael Op Cit., p. 41

 

(5)   Cristo, o Transformador da Cultura.. Aqueles que sabem que este mundo nunca será transformado numa utopia pelo progresso humano e que, estão ansiosos por ver a mão de Deus nos avanços científicos, da medicina, das artes, e do conhecimento em geral, constituem-se na abordagem denominada “Cristo o Transformador da Cultura”. Os participantes dessa visão não querem ser apenas observadores, porém agentes de mudança, agentes transformacionais do mundo no qual estão inseridos, fazendo-o melhor.

 

São aqueles que realmente crêem na soberania de Deus em todos os aspectos da vida do homem, aqueles que crêem que, embora decaído, o mundo continua sendo objeto do amor e do interesse de Deus. Três são as convicções teológicas que sustentam essa visão:

 

1) a importância da doutrina da criação (graça comum e a imago Dei): “o mundo é o teatro da glória de Deus”;

 

2) a humanidade é caída: porém a depravação total não se constitui no mal ontológico, isto é, o homem não é mal meramente porque é humano; e

 

3) o mundo aguarda completa redenção, podemos ter vitórias parciais ocasionais enquanto aguardamos a volta de Cristo.

 

Há duas esferas distintas e Deus age em ambas: o transformador não adora e nem odeia a cultura. Alinham-se com essa abordagem Agostinho, Calvino e a tradição reformada. A proposta de abordagem que Horton faz, e que podemos abraçar é combinar os paradigmas “Cristo e a Cultura em Paradoxo” e “Cristo o Transformador da Cultura” para que os cristãos possam somar as vantagens de cada um. Nessa combinação o cristão reconheceria que esse mundo é do Senhor, e, contudo, aqui não é o seu lugar, ainda.

 

Conclusões:

A proporção que alcançamos maturidade, descobrimos que algumas de nossas regras precisam ceder ao machado do tempo. Contudo, como igreja de Cristo, temos pontos absolutos, intocáveis e não negociáveis, que não comprometeremos jamais. Estes estão enraizados solidamente na Palavra de Deus, são nossa doutrina e alicerce. O cristão precisa estar pronto para entrar numa outra cultura sem rejeitá-la, mas também não pode se render totalmente a ela. A tensão cultural vivida pela igreja é natural e reflete o choque entre coisas eternas e imutáveis, e portanto, divinas, e coisas temporais e humanas. As Boas Novas foram implementadas num contexto cultural, e o seu Autor utilizou-se fortemente deste elemento.

 

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