Introdução:
Eclesiastes é um livro de crise, e por
isto destoa de boa parte da Bíblia. Alguém afirmou que “São vozes de combinação de uma decadente religião com uma decadente
filosofia”.
O nome Eclesiastes é extraído da
septuaginta da palavra “koheleth”, dando a entender que o autor é professor ou
pregador. O ofício do que fala na Assembléia. Em grande parte autobiográfico.
Ele se chama de “o filho de Davi”, embora o pregador não afirme que ele seja
Salomão, mas todas as evidencias parecem demonstrar que ele de fato foi seu
autor. Eclesiastes afirma que “tudo é vaidade”. Que não é possível encontrar
nenhum referencial que possa trazer esperança. Por isto, Heine o chama de
“Cântico dos cânticos de pessimismo”.
A palavra “vaidade” evoca a ideia de
algo fútil, ou de uma pessoa que gosta de coisas sofisticadas, relógios caros,
adereços atraentes, e é por isto chamada de vaidosa, mas a palavra no hebraico,
Hebhel), deve ser traduzida por “vapor”,
“brisa”; indica a esterilidade, a
ausência de objetivos, o vazio, a transitoriedade. A NVI em inglês preferiu
traduzir por “meaningless”. Literalmente
significa “bolha de sabão”. Esta palavra é o centro deste livro, sendo usada
nada menos que 31 vezes. Ele conclui que todas as coisas, alegres ou sombrias,
são somente vapor, pairando no corredor do tempo. O livro é uma rede de
meditações acerca da vida, seus significados, valores e destinos.
A natureza é um sistema fechado,
volvendo e revolvendo-se em torno de si mesma, sem uma penetração do sagrado, de
algo de fora que lhe rompa o vazio. Hebhel
“bolha de sabão” aponta para o fato de que a vida brilha, seu brilho traz
fascínio por breve tempo, e logo desaparece. Heine classifica este livro como
“a canção do ceticismo”- Das hohelied der
skepsis.
Este livro possui uma profunda
similaridade com um livro traduzido como “a insustentável leveza do Ser” de Milan
Kundera, onde o autor inicia sua reflexão dizendo: “sempre me fascinou o
conceito de eterno retorno do qual Nietzsche afirma”.
Esta vaidade (vazio) existencial nos
coloca numa linha de desespero: Este vazio é desgastante e aflitivo, gera
profundo desespero e desilusão. Entramos na área em que não há esperança.
Albert Camus, filósofo existencialista no seu clássico “O Mito de sísifo” afirma:
“Se há um problema filosófico
verdadeiramente sério é o suicídio”.
Eclesiastes nos apresenta o vazio de
todas as coisas:
1. O vazio de todo
esforço após a sabedoria – 1.12-18
2. O vazio da
alegria – 2.1-12
3. O vazio do
conhecimento – 2.12-17
4. O vazio do
trabalho – 2.18-23
Esta leitura desemboca em três visões:
1. O vazio da vida – O mito de sísifo na mitologia
grega fala de um homem, condenado por Zeus, que é eternamente condenado a
carregar uma pedra para o alto de uma montanha, e quando ele está quase
alcançando, Zeus com um dedo a faz desmoronar, obrigando o homem a recomeçar
esta árdua tarefa, renovando indefinidamente seu ato sem sentido.
Kundera diz: “O mito do eterno retorno,
nos diz, por negação, que a vida é sem peso e que está morta desde hoje, e que
por mais atroz, mais bela, mais esplêndida que seja, essa beleza, esse horror,
este esplendor - não tem o menor sentido”.
Do ponto de vista da história, esta é a
visão cíclica da velha disputa entre a teoria platônica x cristã. Esta é a
visão que Platão preconiza. A história não tem continuidade, ela anda em
círculos - não tem objetivos. O autor de Eclesiastes enxerga a vida neste
prisma: “O que foi é o que há de ser, e o que se fez, isto se tornará a fazer,
nada há pois, novo, debaixo do sol” (Ec 1.9), ou como diz a Bíblia Viva: “A
história sempre se repete”.
Os dois livros mais negados das
Escrituras são o livro de Gênesis e Apocalipse, porque revelam a consistência da
história na perspectiva de um Deus que se revela. A história humanista perdeu a
referência do Sagrado, e a interpreta como algo cíclico, num interminável ir-e-vir, sem conexão alguma com algo
que seja concreto. Tudo é vazio. Tudo é vaidade.
Veja como este relato de Bernardo Élis[1]
reflete este dilema do vazio.
Quando
percebeu que a morte o espreitava mais de perto do que nunca, se tornou
contundente: “Eu sempre pensei em suicídio. E acho que a vida é uma besteira”. Ao
fato de não ser possível compreender como alguém tão produtivo como ele podia
ter a idéia de morte tão constante em sua vida, Bernardo se tornava mais frio
ainda na resposta: “É porque você é colocado contra a parede: ou você morre ou
você vive. Há muito preconceito contra a morte, sendo que a morte para mim não
é nada. São os minerais que estão organizados em forma orgânica e vital que
voltam à natureza. Mas é difícil acabar com a vida. O ser humano é muito duro,
é difícil de morrer”. Fonte, O popular,
dia 01/12/97, por ocasião de sua morte. Escritor Goiano, autor de “Ermos e
Gerais” década de 70, “Veranico de
Janeiro”,” a enxada”e “O Tronco”.
Um
dia, Élis confessou a vontade de morrer. Revelou que o pensamento suicida o
acompanhou ao longo da vida ao ponto de fazê-lo manter, quando jovem, um frasco
de veneno no criado-mudo, ao lado da cama. Não queria se enforcar e ficar com
aspecto feio depois de morto. A cena da confissão não era tenebrosa, nem o
momento era de dor. Parecia mais obra ficcional surgida na mente fértil de um
homem cujo ofício era criar imagens e histórias com as palavras. A confissão se
deu durante uma entrevista descontraída à jornalista Britz Lopes, na biblioteca
da casa de Bernardo, no Jardim América, em 1992. Ele confessou seu desejo de
morte enquanto mostrava livros, correspondências e escritos inéditos à
repórter. A revelação, provavelmente, foi a mais impressionante do escrito. “A
velhice é um palavrão. Você fica impossibilitado de tudo. É uma coisa idiota,
sobretudo esperar sentado que a morte chegue, é muito difícil...
2. Monotonia – O autor de Eclesiastes narra a vida como
uma grande chatice. Nada é novo! Todo
esforço da natureza ou do homem é realizar algo do que já havia sido realizado.
A vida é uma eterna mesmice: “ Geração vai, geração vem, mas a terra
permanece para sempre” (Ec 1.4). Do vs. 5 em diante, a história é revelada
com algo caótica e sem propósito: “Geração vai e
geração vem; mas a terra permanece para sempre. Levanta-se o sol, e põe-se o
sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo. O vento vai para o sul e faz o
seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e retorna aos
seus circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar
para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr. Todas as coisas são
canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver,
nem se enchem os ouvidos de ouvir. O que foi é o que há de ser; e o que se fez,
isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol. Há alguma coisa de
que se possa dizer: Vê, isto é novo? Não! Já foi nos séculos que foram antes de
nós” (Ec 1.5-10).
Existe um interminável movimento de
repetição que inclui:
Sol: nascendo e se pondo todos os dias.
Vento, que gira
e se movimenta sem direção e propósito.
A natureza no
seu movimento cíclico e interminável: Rios - mar - rio
Ocorre aqui uma simetria hebraica. Há
uma nota de desencanto nestes eventos naturais. O que poderia se tornar
fascinante, agora se tornam uma chatice, porque não há um sentido mais profundo
em tudo que acontece. O pregador não consegue perceber a mão de Deus nestes
movimentos, nem é capaz de perceber algo que dê sentido a tudo o que acontece.
3. Canseira – O resultado disto é canseira: “Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os olhos
não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir” (Ec 1.8).
Nietzsche afirma: “A ideia do eterno
retorno é o mais pesados dos fardos”. A questão filosófica se resume à seguinte
síntese: “Se a vida é uma droga, tudo que advém dela é angustiante: “O que é já foi, e o que há de ser também já foi” (Ec 3.15). O trabalho é
fadiga e canseira (Ec 3.9 e 2.20). Muito estudar é enfado da carne (Ec 12.12). A
vida é náusea (Sartre) e a pergunta mais relevante é a seguinte: “Que proveito
tem?... (Ec 2.22), afinal, tudo é “correr atrás do vento” (Ec 2.11).
O
que levou Salomão a perceber a vida de forma tão pessimista?
1. O afastamento de Deus: Salomão conhecia
profundamente a Deus, e desfrutou da rica companhia de Deus no início do seu
reinado, mas posteriormente veio a apartar-se dele. Conheceu muitas mulheres
estrangeiras, das quais o Senhor havia dito para o povo de Deus não se envolver
com elas, e começou a seguir outros deuses e o seu coração deixou ser de todo
fiel a Deus. Não perseverou em seguir ao Senhor e seguiu a Astarote, deusa dos
sidônios, e a Milcom, abominação dos amonitas (1 Rs 11.5), chegando ao cúmulo
de edificar santuário a Camos (deus dos moabitas) e a Moloque (Deus dos amonitas),
que exigia sacrifícios de crianças (1 Rs 11.8).
Sem o Deus verdadeiro, o mundo se torna
lúgubre e vazio. Salomão começou a experimentar este vazio na alma, e este
texto relato a dura experiência de viver longe do Senhor. A verdade é que só
existe uma alternativa fora da esperança: O desespero.
Jean Paul Sartre, filósofo
existencialista, entendeu corretamente esta questão ao dizer: “A vida é um
absurdo, Deus dá ordem ao absurdo, mas Deus não existe”, noutro lugar diz:
“Nenhum ponto finito pode ter significado, se não tiver relação com um ponto
infinito”. Através do profeta Jeremias, Deus mostra ao seu povo as
conseqüências do afastamento: “Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me
deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que
não retêm as águas” (Jr 2.13). O homem sem Deus procura
sentido em coisas que são incapazes de saciar sua sede. Assim aconteceu com
Salomão.
2. Uma equivocada visão da história – Salomão encontra
dificuldade em ver que a história tem uma perspectiva ascensional, não cíclica,
por isto afirma: “O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso
se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol “ (Ec 1.9).
Salomão, longe de Deus, perde a visão do
propósito de todas as coisas é vazio, e vê que o esforço humano é inútil.
Gerações humanas vão e vem; os dias e as noites se sucedem, num ciclo
interminável de rotina; os fatos da natureza são repetitivos e as estradas são
as mesmas. Esta também é a base de toda leitura secularista da vida, tudo é mera
repetição. O pregador demonstra familiaridade com as leis da natureza, mas as
vê como limitadores da experiência humana.
Quando se é incapaz de enxergar o dedo
de Deus para dar sentido a este absurdo histórico, a vida passa a ser canseira
“tais que ninguém as pode exprimir” (Ec 1.8).
O uso freqüente da frase “debaixo do sol”, demonstra que o pregador
está olhando a vida numa perspectiva existencial. O resultado é um só: canseira
e enfado. O trabalho torna-se angustiante, a sabedoria é um peso, a vida um
absoluto vazio, um angustiante “já te vi”. Tudo é monotonia, mesmice e rotina.
A história está em movimento, saindo do nada para lugar algum. “O que foi é o
que há de ser, e o que se fez, isto se tornará a fazer”.
A visão de Eclesiastes possui o mesmo
fundamento platônico. Tudo na história é cíclico! A visão da história nas
Escrituras Sagradas possui uma perspectiva ascensional. A história cristã não
vê a vida em departamentos estanques, mas a percebe no seu todo. Por isto ela
possui princípio, meio e fim.
Para os existencialistas a visão é
fragmentada. Percebe o aqui e agora, mas não identifica o sentido da vida
(origem), não vê Deus, nem razão em nascer, e não vislumbra esperança
(escatologia), a vida está sendo conduzida num arrastão existencial e somos
levados como folhas. Deus não é perceptível na história e nem mesmo age nela. Os
fatos são desordenados e mera sucessão de acasos. Afinal, “tudo depende do tempo e do acaso”. (Ec 9.11).
A vida é “mesmice” vs. 4. Esta simetria
hebraica pode ser considerada com uma poesia de Chico Buarque que diz:
“Roda moinho,
roda gigante,
roda moinho,
roda pilão,
o tempo rodou
num instante, nas rodas do meu coração”
Onde
está o dedo de Deus?
Vinicius
assim se expressa na sua belíssima música “Aquarela”:
“O futuro é uma
astronave, que devemos pilotar
não tem tempo,
nem piedade, nem tem hora de chegar,
sem pedir
licença,muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar,
e no fim de
tudo, descolorirá”.
3. A incapacidade de perceber um Deus pessoal
regendo a vida. “Pois que tem o homem de todo o seu trabalho e da
fadiga do seu coração, em que ele anda trabalhando debaixo do sol? Porque todos
os seus dias são dores, e o seu trabalho, desgosto; até de noite não descansa o
seu coração; também isto é vaidade” (Ec 2.22,23). Esta é uma das grandes
questões humanas: Que
proveito tem o homem de todo o seu trabalho?
Você faz, produz, realiza, se torna respeitado para descobrir no final
que tudo isto é “ouro de tolo” (Raul Seixas).
No hebraico, existem vários nomes para
Deus, cada um deles expressa atributos e o caráter de Deus. Por exemplo ”El Shaddai significa “Deus Poderoso”.
Três termos são comuns para considerarmos os nomes de Deus: “El”; “Elohim” e “Yahweh”.
·
“El”
significa Deus num sentido mais lato, verdadeiro ou falso, ou mesmo uma imagem
que é tratada como Deus, como no caso de Gênesis 35.2;
·
“Elohim”,
embora seja o plural da palavra “elohá”, pode ser tratado como singular, e significa
a grande e suprema divindade que nossa visão traduz por “Deus”. Transmite a
noção de tudo quanto pertence o conceito de “deidade”.
·
“Yahweh”,
no hebraico, estritamente falando é único nome de Deus, era o Deus pessoal, o
Deus dos patriarcas: Abraão, Isaque e Jacó. Ao contrário de Elohim, que
apresenta uma dimensão cósmica, mas nunca o Deus dos patriarcas. O livro de
Eclesiastes é um livro que não emprega a
palavra “Jeová”, apenas o termo “Elohim”, que é um Deus criador (deísmo). O
nome “Jeová”, Deus do Pacto, não é aqui empregado. O Deus que é apresentado
“impõe” tarefas e atividades à humanidade (Ec 1.13); exige prestação de contas
(Ec 11.9), e você deve temê-lo porque é “dever”
de todo homem (Ec 12.13). O trabalho é o instrumento mais comum de Deus para os
afligir (Ec 1.13, 3.10). Em contrapartida é também um Deus que dá condições ao
homem para sua alegria (Ec 2.24): comer, beber, e desfrutar o bem de todo o seu
trabalho é um dom de Deus (Ec 3.13); estar atento às obras de Deus é importante
porque ninguém pode “endireitar” o que ele torceu” (Ec 7.13). Apesar desta
afirmação, Deus não é visto como a causa do desatino da humanidade, pois Deus
fez o homem reto e ele se meteu em muitas astúcias (Ec 7.29); a despeito de
todo emaranhado de contradições que se perpetuam na existência humana, ele tem
a impressão de que Deus abençoa os que fazem o bem, ao passo que o perverso
será como sombra por não temer a Deus (Ec 8.12,13).
O tema central de Eclesiastes é
“vaidade”, referindo-se não à presunção, mas ao vazio de toda uma vida sem
Deus. Vaidade significa “futilidade”.
Nascer, lutar, viver, sofrer, experimentar alguma alegria transitória
que é nada à vista da eternidade, deixar tudo e morrer. Por isto é uma “bolha
de sabão”
Conclusão:
O livro de Eclesiastes termina mostrando
o fim de todo o problema: “De tudo o que se tem
ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os seus mandamentos; porque isto é o
dever de todo homem”
(12:13). A síntese e essência da humanidade é o temor a Deus. Se existe algo
que pode dar sentido, este algo é Deus. Embora o pregador não tenha uma
perspectiva tão boa de Deus, pois o vê como alguém que julga e impõe trabalhos,
afirma corretamente que a razão, o logos, a síntese da existência humana está
em alguém maior do que nós: Deus. Pode-se buscar as mais criativas e diferentes
soluções, mas os problemas existenciais mais profundos não estarão sarados. Só
em Deus a vida pode ser encontrada.
Jesus afirmou: “Eu vim para que tenham
vida, e a tenham em abundância” (Jo10.10). O mito de sísifo não é conclusivo. A
vida pode ter outras rotas. As notas do Evangelho são vivas, cheias de vida e
esperança. Ás pessoas desesperançadas Jesus sempre se aproximava com uma
resposta específica, como podemos ver no Evangelho de João:
·
Para
os religiosos – Jesus fala do novo
nascimento: nova vibração do ser, um novo ser criado por Deus.
·
Para
os sedentos de afeto, atenção, sentido, Jesus afirma: “Se tu soubesses quem é o que te pede, tu lhe pedirias e ele te daria
água viva”.
·
Ao
cansados, prostrados e desesperançados convida a levantar-se, tomar seu leito e
andar.
·
À
multidão faminta, Jesus faz milagre e alimenta, multiplicando os pães.
·
Aos
pecaminosos afirma: “Nem eu te condeno, vai e não peques mais”
Sem Deus a vida é caótica. Quando o
excluímos a história se torna absurda, afinal, se tudo termina num túmulo frio,
somos os mais infelizes dos homens.
[1] Bernardo Elis. Bernardo Élis
Fleury de Campos Curado, nascido em
Corumbá de Goiás, no dia 15 de novembro de 1915, foi o primeiro goiano a
integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL) foi considerado pelos estudiosos
da literatura como um dos introdutores da fala caipira no conto brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário