domingo, 30 de agosto de 2015

Jr 38.1-13; 39.15-18 O Bom uso da Profissão





Introdução:

Um dos grandes desafios que o povo de Deus tem é penetrar na cultura e se imiscuir no mundo da arte, música e política de um país, fazendo bom uso destas poderosas ferramentas para dar sinais do Reino de Deus entre os homens. Uma pessoa apenas, usando corretamente os recursos históricos, certamente não fará surgir a primavera, mas pode plantar flores, talvez não consiga gerar uma revolução, mas pode ser um valioso instrumento nas mãos de Deus para salvação de muitas vidas e promoção do ser humano.

Os teólogos chamam isto de “Mandato cultural”. Quando Deus colocou o homem no Éden, ele não apenas o criou para relacionar-se com ele próprio, mas para cuidar e guardar o jardim. Ele deveria olhar para tudo que acontecia e administrar estas coisas com os olhos de Deus. Pois bem, todos sabemos que o homem falhou, mas esta ordem nunca foi retirada. Deus nos colocou no mundo para cuidar de tudo aquilo que nos contingencia.

Na época da Reforma Protestante no Século XX, outra doutrina foi resgatada: O Sacerdócio Universal dos crentes. Todos somos chamados para a obra de Deus, seja qual for a nossa profissão e tarefa. A vocação clerical não é mais importante que a “secular”. Todas é importante para Deus. Portanto, um jurista, professor, mecânico, enfermeiro, deve se perceber como agente de transformação no mundo que o rodeia.

A história de Ebede-Meleque

Neste texto temos a narrativa de um homem que é citado apenas neste livro da Bíblia. Ele não era alguém importante, e nem mesmo judeu, vivendo em dias maus, no meio de um sistema corrupto e de grave crise política fez enorme diferença, mas apesar de sua humildade, há quase um capitulo inteiro na Bíblia falando sobre ele.

Ele era um eunuco procedente da Etiópia, e isto já fala muito da sua história. Eunucos geralmente eram escravos trazidos ainda jovens e castrados, para servirem nos palácios. Foi o que fizeram com Daniel, Hananias, Misael e Azarias, que também foram trazidos da Judeia e colocados à serviço do rei da Babilônia no tempo do exílio do povo de Israel (Dn 1.1-7).

Jeremias estava insistentemente profetizando que Jerusalém seria invadida pelos caldeus, por causa da desobediência e rebeldia daquela cidade contra Deus. O Povo judeu, porém, tinha alguns pressupostos que levavam a ignorar as advertências. Um deles era que, por ser a cidade onde estava o templo do Senhor, ele interviria na hora certa e o livramento aconteceria; outro, eram as falsas profecias. Jeremias está constantemente advertindo contra os falsos profetas trazendo falsas mensagens de esperança da parte de Deus. Existem embates notáveis neste livro entre os falsos profetas e os profetas de Iahweh, dentre eles, Jeremias.

Jeremias adverte contra estas mensagens falsas: “Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: paz, paz; quando não há paz” (Jr 8.11). Todo o capitulo 23 de Jeremias é dedicado a advertir contra os falsos profetas, “que entre vós profetizam e falam as visões do seu coração, não a que vem da boca do Senhor” (Jr 23.16). Apesar de tudo, o povo não queria ouvir a Palavra do Senhor, antes aquilo que lhes trazia mais prazer e satisfacao imediata.

Colocando seu cargo a serviço do Reino

Pela insistência de Jeremias em anunciar a Palavra do Senhor, carregada de juízo contra a cidade infiel, alguns homens foram até o rei dizer que com tal mensagem, o profeta desencorajava o povo, porque ele falava: “Assim diz o Senhor: O que ficar nesta cidade morrerá à espada, à fome e de peste; mas o que passar para os caldeus viverá; porque a vida lhe será como despojo, e viverá” (Jr 38.2). Estando a cidade cercada pelos inimigos, esta palavra era desanimadora. Quem quer lutar numa guerra sabendo de antemão que vai perdê-la? O problema foi levado ao rei, que deu ordem aos homens para que fizessem com Jeremias o que achassem melhor. Então, tomaram a Jeremias e o lançaram na cisterna de Malquias, filho do rei. Uma cisterna lamacenta na qual aquele velho profeta teria que ficar, atolado de barro até a cintura.

Neste momento é que Ebede-Meleque entra em cena.

Ao ouvir o que havia acontecido ao profeta, o eunuco saiu da casa do rei, vai até a Porta de Benjamin para lutar a favor de sua vida. O rei havia autorizado outros líderes que fizessem o que bem quisessem com Jeremias, mesmo assim, ele não hesitou em sair da defesa de um homem que considerava inocente, e obteve favor do rei, que o autorizou a remover Jeremias daquele lugar lúgubre e frio, e salvar a sua vida.

O que este homem fez de especial é o que podemos fazer ainda hoje. Algumas lições aqui são muito importantes:

Primeiro, ele colocou sua função em prol da vida.

Lamentavelmente todas as civilizações tem uma característica em comum: Elas desvalorizavam a vida humana. Eventualmente religiões, mitos e tabus se juntam nesta tarefa insana. Vejamos alguns exemplos:

As parteiras do Egito

Nos dias de Moisés, em nome de uma defesa do estado, houve um decreto para que se matasse todas as crianças do sexo masculino que nascessem. As parteiras foram instruídas a verificar o sexo das crianças, e se fosse homem, deveriam matá-lo. Moisés nasce nos dias em que este decreto fora dado. Sua mãe, Joquebede, se esforça para manter a integridade do seu filho e Deus lhe concede favor, no entanto, a realidade brutal não era assim tão romântica quanto costumamos ensinar às crianças na Escola Dominical. Centenas, talvez, milhares de crianças foram executadas. A vida se tornou um martírio. Ali, no meio de um decreto desumano, porém, um grupo de mulheres se levantou em prol da vida, com risco de morrerem por causa disto. A Bíblia diz que elas “temeram a Deus, e não fizeram como lhes ordenara o rei do Egito; antes, deixaram viver os meninos” (Ex 1.17). “Deus fez bem às parteiras; e o povo aumentou e se tornou forte” (Ex 1.20).

Obadias

Outro exemplo bíblico notável foi o de Obadias (apesar da similaridade com o nome, ele não o profeta bíblico). Este era o mordomo de um dos reis mais perversos de Israel, Acabe, que era casado com uma rainha cruel, Jezabel, e eram dias muito difíceis em todos os aspectos: Econômico e político/religioso. A Bíblia diz que “a fome era extrema em Samaria” (1 Rs 18.2), e Jezabel exterminava intencional e cruelmente, os profetas do Senhor (1 Rs 18.4). Neste contexto tão maligno, Obadias se atreveu a esconder 100 profetas, e os mantinha em dois grupos separados em uma cova, alimentando-os num longo período de pão e água. A logística tinha que ser perfeita, qualquer denúncia seria fatal para sua vida e para a vida daqueles homens, no entanto, Deus o preservou.

Ebede-Meleque

Neste texto encontramos mais um personagem que coloca sua função pública, a benefício da vida. Este etíope, portanto um gentio; escravo, portanto sem muita influência; e eunuco, uma pessoa com todo background necessário para ser um homem cruel em razão da violência sofrida, é aquele que se desponta neste texto para proteger uma pessoa em situação de sofrimento e exclusão. Ele luta pela vida de Jeremias. Muito provavelmente eles sequer se conheciam, mas este homem sai do palácio, onde exercia sua função, e vai até o local onde se encontrava o rei, na Porta de Benjamin, uma das entradas da cidade, para denunciar os maus tratos contra Jeremias e pedir benevolência do rei. O rei não apenas atende seu pedido, como destaca um grupo de 30 homens para ajudar na operação de resgate em favor do profeta. Com humanidade, ele vai até a tesouraria do rei, encontra roupas velhas e farrapos, e pede para o frágil profeta colocá-las debaixo do braço e o puxa novamente para fora.

Estes três casos: As parteiras do Egito, Obadias, o mordomo de Acabe; e Ebede-Meleque, são pessoas que colocam suas funções em defesa da vida humana.

Segundo, 
não temeu a própria vida nem a possibilidade da perda dos privilégios de sua função

Em todos estes casos acima, existe uma linha clara de pessoas que correm risco, sem se importarem com as consequências de seus atos corajosos e humanitários. Se ficarmos com muito medo do que pode nos acontecer, não poderemos lutar pelos que se perdem, são injustiçados, perseguidos e massacrados.

As parteiras do Egito seriam executadas sumariamente se fossem pegas, os risco e as suspeitas eram enormes, elas chegaram, inclusive, a serem chamadas para se explicar diante das autoridades constituídas por faraó. “Por que fizestes isso e deixastes viver os meninos?” (Ex 1.19). O grau de periculosidade era imenso...

Para Obadias, o mordomo, a situação também não era fácil. Como enviar comida para 100 homens, diariamente? Como providenciar o pão e água necessários? Quem levaria estas comidas sem ser percebido? Quantas pessoas realmente eram confiáveis para participar deste plano digno do FBI? Se seu plano fosse descoberto, ele estaria morto.

Infelizmente temos muito medo de perder não a nossa vida, mas a posição, a função, o status. A preocupação com a segurança torna-se mais importante que a glória de Deus, o valor da vida, a integridade. Preferimos nos silenciar diante da morte. Martin Luther King Jr disse que “Deus vai julgar não apenas a maldade dos maus, mas o silêncio dos bons”. Muitas vezes poderiam ser poupadas, muitos esquemas de corrupção poderiam ser desmantelados, se tivéssemos mais pessoas com menos medo de perderem privilégios.

A Bíblia fala ainda de outro personagem. Ester (ou Hadassa, nome judeu). Ela se tornou rainha num episódio no qual houve um levante dos machos contra o primeiro movimento feminista da história. Aquela menina pobre, órfã, exilada, é colocada na função de rainha de todo um vasto império. Na posição política que ocupa, é desafiada a lutar pelo seu povo, e ela, visivelmente, teme. Seu tio Mordecai, mentor e conselheiro, contudo, manda um recado direto e duro para ela. “Não imagines que, por estares na casa do rei, só tu escaparás entre todos os judeus. Porque, se de todo te calares agora, de outra parte se levantará para os judeus socorro e livramento, mas tu e a casa de teu pai perecereis; e quem sabe se para tal conjuntura como esta é que foste elevada à rainha?” (Et 4.13-14).

Ester resolve falar com o rei, mas seu “atrevimento”, poderia custar-lhe a vida. Nenhuma mulher poderia se aproximar do rei sem ser convidada. Na lei dos persos e médios, esta atitude poderia custar a vida. No entanto, ela ora, jejua, convoca o seu povo também a fazer o mesmo, e Deus concede favor. O povo judeu é libertado do decreto de morte que havia sido emitido.

Não há confrontação sem risco. Milhares de pessoas como Schindler, Corrie Ten Boom, o rei da Dinamarca, fizeram o mesmo diante do holocausto judeu impetrado pelos alemães na II Guerra Mundial. É necessário ter coragem e ousadia, para não temer nada, a não ser o seu próprio medo, e lutar em favor daqueles que são explorados e desumanizados. Lutar a favor da vida, dispondo a sua própria vida para isto.

Terceiro, espere bênçãos de Deus, e não benesses humanas.

Em todos estes casos citados, uma verdade se manifesta: Todas estas pessoas foram honradas por Deus, e libertas. No entanto, a história nem sempre nos mostra a mesma coisa. Muitos morreram exatamente por serem fieis, e por não temeram perder a própria vida porque temiam a Deus. Nestes se aplicava a compreensão das palavras de Cristo. “Não temam os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10.28).

As parteiras foram abençoadas a Deus por terem defendido a vida das crianças diante da ordem do poderoso Egípcio. A Bíblia afirma que Deus as abençoou, e, apesar de serem estéreis, Deus as tornou prósperas mães de filhos. Ester obteve a benevolência do rei e a vitória a favor do povo judeu. Esta vitória foi tão grande que ainda hoje os judeus celebram o dia de Purim, uma referência à libertação e intervenção maravilhosa de Deus a favor deste povo. Obadias, posteriormente se encontra com Elias, e foi poupado por causa de sua piedade conhecida no meio dos profetas de Israel. Ebede-Meleque conseguiu escapar da tragédia que se deu em Jerusalém depois da invasão dos caldeus, destruição esta que veio no ano 607 a.C., quando os judeus foram levados para a Babilônia.

Deus deu uma palavra específica a Jeremias, a favor deste homem: “Vai e fala a Ebede-Meleque, o etíope, dizendo: Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: eis que eu trarei as minhas palavras sobre esta cidade para mal e não para bem; e se cumprirão diante de ti, naquele dia. A ti, porém, eu livrarei, naquele dia, diz o Senhor, e não serás entregue nas mãos dos homens a quem temes. Pois certamente te salvarei, e não cairás à espada, porque a tua vida te será como despojo, porquanto confiaste em mim” (Jr 39.18). Maior do que o livramento da própria vida, é receber a afirmação de que Deus nos conhece, sabe o que fazemos, sabe dos nossos medos. Ter a graça de Deus, nos chamando pelo nosso nome, que conhece a nossa história, é, certamente, o maior de todos os troféus.

Quarto, o exemplo de Cristo

Concluímos com o exemplo de Cristo. Jesus nunca considerou sua vida como preciosa a si mesmo. Sua vida era holocausto, oferenda e oferta a Deus. Não era para ser preservada, mas repartida. “Quem quiser preservar sua vida, perdê-la-á, mas quem quiser perder a sua vida por minha causa, achá-la-á”. A vida dada por Deus, não é para preservação a todo custo, mas para doação a todo custo.

Assim ele segue para a cruz. Cordeiro de Deus para ser imolado. “Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados” (Is 53.5). Foi levado como uma ovelha muda perante seus tosquiadores, oprimido e humilhado, mas ele não abriu a sua boca.

Sua missão era clara: A vida como doação.

Hoje ocupamos cargos públicos: Professores, psicólogos, médicos, oficiais de justiça, magistrados, juízes, advogados, procuradores, conselheiros, funções políticas, e somos desafiados a defender a causa da vida, seja esta pessoa de que raça for, independentemente de sua cor, religião, opção sexual. A vida é preciosa.

Onde houver movimentos em favor da vida, contra a morte, eutanásia, aborto, ou sistemas opressivos que massacram, machucam e ferem as pessoas, devemos colocar nossos dons, posições, funções, a serviço do Senhor e da obra do Mestre. Imitando a Jesus, sua luta contra as pessoas marginalizadas e sofridas, a favor de prostitutas, dos marginalizados da Galileia, de leprosos e cegos, ali estava Jesus, salvando, curando, redimindo, promovendo a vida, anunciando a Deus, trazendo redenção e cura.

Nosso chamado é para seguir o exemplo de Cristo. Isto eventualmente vai custar nossa vida, cargos e benesses. Mas nosso medo não deve ser dos que podem nos matar e perseguir, mas de perecer no inferno, tanto a alma como o corpo.

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